sexta-feira, 8 de abril de 2022

Humberto Saccomandi: Guerra trará agitação social nos emergentes

Valor Econômico

Protestos contra inflação e escassez de alimentos e combustíveis já estão ocorrendo no Peru e em outros países. E devem se espalhar. Isso deixará governos acuados

A deterioração do cenário econômico global, devido principalmente (mas não apenas) à guerra na Ucrânia, já está causando agitação social e instabilidade política em vários países. Governos, investidores e empresas precisam se preparar para uma fase de turbulência, especialmente nos emergentes.

Como disse nesta semana a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, os efeitos econômicos do conflito na Ucrânia serão enormes e “o alastramento global da crise está colocando em evidência as vulnerabilidades de muitos países que já enfrentam uma carga de dívida maior e opções de políticas limitadas, num momento em que se recuperam da [crise da] covid-19”.

Esse alastramento da crise está ocorrendo de várias formas.

A mais imediata é o aumento dos preços dos combustíveis e dos alimentos, o que está elevando a inflação em todo o mundo. Nesta semana, a Turquia assumiu a liderança do ranking de maiores inflações entre as principais economias, com 61,14% (dado anual) em março, o maior nível em 20 anos. Na Argentina, a inflação anual ficou em 52,3% em fevereiro, também em alta. O Brasil vem em seguida, com 9,68% em 12 meses.

Em todo o mundo, os governos estão buscando formas de atenuar esse impacto nos preços, reduzindo impostos e criando ou ampliando subsídios. Ou então proibindo reajustes, o que costuma funcionar apenas no curtíssimo prazo, pois acaba gerando desabastecimento.

Países europeus estão gastando dezenas de bilhões de euros para conter a alta dos preços de combustíveis. Mas a maioria dos emergentes têm pouca margem fiscal para isso, até porque o mundo está saindo de um período de mais de dois anos de gastos públicos excepcionais relacionados à pandemia de covid-19.

Esse processo de aumento de preços está causando uma onda mais acelerada e agressiva de alta das taxas de juros, o que eleva o custo de financiamento, para consumidores, empresas e governos, deprimindo mais a atividade econômica.

Essa alta global dos juros deve fazer com que países emergentes, especialmente aqueles que são grandes importadores de energia e/ou de alimentos, tenham piora nas contas externa e dificuldade de refinanciar a sua dívida.

O crescente risco econômico e político pressiona o câmbio, o que agrava ainda mais a crise.

A combinação de demanda por mais gasto público com dificuldade de financiamento externo e pressão no câmbio é um coquetel perigoso, que ameaça gerar crises de balanço de pagamentos. Países como Líbano, Tunísia e Egito estão negociando pacotes de ajuda com o FMI. Economistas alertam para o risco de uma nova onda de crise da dívida nos emergentes.

A guerra deve jogar a Rússia numa depressão econômica, mas é muito provável que a União Europeia e os EUA tenham um período de crescimento baixo ou mesmo de recessão, dependendo de como o conflito evoluir.

Uma queda simultânea na demanda nos dois maiores mercados do mundo afetará toda e economia global, mesmo aqueles países exportadores de commodities (como o Brasil) que neste primeiro momento estão ampliando as suas exportações.

Tudo isso trouxe incertezas e volatilidade nos mercados.

Com a deterioração econômica, está crescendo o mal-estar social no países. E isso ameaça gerar crises políticas.

O caso mais próximo é o do Peru, onde o governo enfrenta uma violenta onda de protestos contra a alta dos preços dos combustíveis e dos alimentos, que já causou a morte de sete pessoas. As manifestações elevaram a pressão pela renúncia do presidente esquerdista Pedro Castillo. Sem uma base sólida de apoio no Congresso, Castillo já vinha sofrendo forte oposição e sobreviveu a duas tentativas de afastamento no Legislativo. Seu futuro agora é incerto.

O Peru importa cerca de 75% do petróleo que consome e depende muito também de grãos importados, o que o torna particularmente vulnerável à alta atual dessas commodities. Além disso, foi um dos países mais duramente atingidos pela pandemia de covid-19.

Mesmo as eleições francesas podem estar sendo afetadas pela piora no humor da população. Até poucas semanas atrás, as pesquisas de intenção de voto indicavam uma reeleição tranquila para o presidente centrista Emmanuel Macron. Ele deve vencer o primeiro turno, neste domingo, e provavelmente enfrentará a candidata de extrema-direita Marine Le Pen no segundo turno, em 24 de abril.

Mas nas últimas semanas Macron vem caindo nas pesquisas, e Le Pen, subindo. Pesquisa Atlas divulgada ontem coloca os dois em empate técnico no segundo turno.

Não está claro ainda se a alta da inflação está por trás da queda recente de Macron, mas é bem provável. O presidente vinha com popularidade crescente nos meses que antecederam a guerra na Ucrânia, por suas tentativas de mediação. E Le Pen estava acuada pela sua relação próxima com o presidente russo, Vladimir Putin, que certamente é o político mais odiado na Europa hoje.

Apesar de a expectativa com a economia francesa ainda ser positiva (crescimento de 2,8% neste ano, segundo o BCE) e de o desemprego estar no menor nível em 13 anos (7,4%), a alta inflação (que ficou em 4,5%, taxa anual em março, abaixo da média da UE) está corroendo o poder de compra dos franceses.

Mas é nos países mais pobres que o risco de agitação social e política é maior. Até pelo risco de escassez de alimentos, devido à alta dos preços. O secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou em março para a ameaça de um “furação de fome” pelo mundo.

Um desses casos é Sri Lanka, país insular de 22 milhões de habitantes, ao sul da Índia. Nesta semana, o presidente do Parlamento local, Mahinda Yapa Abeywardana, alertou: “A escassez de comida, gasolina e energia elétrica vai piorar. A falta de comida será aguda e haverá fome”. O país está ficando sem reservas em moeda estrangeira para bancar suas importações. Nos últimos dias houve protestos violentos, com tentativa de invasão da residência de várias autoridades. O governo também está em negociação com o FMI.

Como sugeriu Yellen, países com mais vulnerabilidades devem sofrer mais, e primeiro. Mas é provável que esse mal-estar com a deterioração da economia se espalhe. A guerra na Ucrânia causará danos colaterais pelo mundo, difíceis de prever e de enfrentar. Castillo tentou barrar os protestos com um toque de recolher. Não funcionou.

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