sexta-feira, 8 de abril de 2022

Hélio Schwartsman: Câmeras divinas

Folha de S. Paulo

Religiões criaram a figura de um Deus que tudo vê e tudo registra

Estudo de Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indica que a adoção de câmeras corporais nos uniformes de policiais de 18 batalhões de São Paulo evitou a morte de 88 pessoas entre 2020 e 2021.

Sempre fui fã das câmeras. Não digo que deveriam ser espalhadas por todos os cantos. Há lugares (o leito conjugal) e situações (a mesa de bar após o terceiro drink) que devem ser preservados como esferas de privacidade. Mas não vejo como sustentar que não possam ser instaladas em espaços públicos densamente povoados ou para monitorar a ação de agentes públicos.

Como já observou o filósofo Emrys Westacott, a mágica das câmeras está em fazer com que o interesse público (o cumprimento de regras) e o interesse próprio (não ser flagrado cometendo um delito), que muitas vezes andam separados, convirjam. Funciona. É só apertar "play" que as pessoas já começam a se comportar melhor. E é curioso notar que essa estratégia de controle social não é inédita.

Muito antes de a tecnologia das câmeras surgir, religiões criaram a figura de um Deus que tudo vê e mantém registro do que cada um de nós faz para efeitos de castigo/recompensa futuros. Esse Deus onividente é, se quisermos, uma câmera virtual que religiões instalam nas cabeças dos fiéis com o intuito de fazê-los comportar-se melhor. Funciona. Há toda uma família de experimentos psicológicos que mostram que as pessoas, quando lembradas ("primed") da ideia de Deus, adotam atitudes mais pró-sociais em jogos econômicos.

A vantagem das câmeras reais sobre as virtuais é que elas produzem imagens que podem, em caso de necessidade, converter-se em provas judiciais, o que certamente ajudou a derrubar a letalidade policial em São Paulo. Tarcísio de Freitas, o candidato de Bolsonaro ao governo paulista, já disse que, se eleito, acabará com as câmeras. Não sei por que, mas a notícia não surpreende.

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