Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Oportunismo descarado remexeu o sistema
político e já assegurou que a vontade da maioria será convertida nos truques do
nosso partidarismo anômalo
As notórias e mal disfarçadas piruetas
eleitorais das últimas semanas indicam o estreitamento da via de revitalização
da democracia no Brasil. Sempre fomos frágeis e mesmo relutantes no compromisso
com a possibilidade de uma ordem política democrática. Especialmente depois do golpe
militar de 15 de novembro de 1889, o Exército passou a pressupor que na falta
do imperador deposto, que personificava a nação, cabia-lhe agora assumir a
função de tutor da pátria.
Tutor da pátria é o povo, a massa dos
desfardados. Têm todos, gostem ou não, o dever cívico de curvar a cabeça à
vontade soberana que daí decorre. Os fardados estão lá para servir e não para
ser servidos. O país é governado pela Constituição e não por portarias
administrativas nem por falações de porta de palácio. Quando alguém se equivoca
quanto a isso, o STF toma a providência das decisões jurídicas que acordam
ignorantes e distraídos.
Desde a eleição de 2018, a expressão eleitoral da vontade do povo tem sido interpretada por uma só pessoa e seus coadjuvantes sem mandato, os dos núcleos paralelos de poder. E, também, os que têm mandato, mas não têm pelo mandato o respeito que a lei prescreve. Um subjetivismo impressionista é hoje o senhor do poder no Brasil, com a cumplicidade do sistema político de joelhos e em boa parte motivado por interesses pessoais e não pelos interesses soberanos da nação.
Os episódios destes dias incluem a
manifestação do Ministério da Para dizer o que não aconteceu e justificar o que
está acontecendo. Um modo de ignorar o que ocorreu no escuro daquela noite de
1º de abril.
Uma narrativa fundamentada teria que
começar pela revelação dos detalhes do andamento do golpe, com a voz do
presidente americano Lyndon Johnson aprovando a derrubada do governo
constitucional em conversa com espiões e articuladores americanos baseados no
Rio de Janeiro. Um porta-aviões dos EUA estava posicionado no Atlântico Sul
para eventual interferência militar aqui no Brasil. Uma das conversas é sobre o
deslocamento dessa nave para assegurar aqui o golpe estrangeiro.
Um balanço sério do que foi o regime
militar implica considerar alguns avanços importantes na atenuação do direito
de propriedade para viabilizar uma reforma agrária se não tivesse sido ela
técnica política de contenção de uma presumível, mas não provável revolução camponesa.
Direito obsoleto, produto das
circunstâncias do encaminhamento da abolição da escravatura, tornou-se o
fundamento da posse territorial da pátria por uma minoria social e racial que
bloqueava o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
O manifesto de agora omite esse fato. Não
eram os comunistas que ameaçavam o país. Eram e o foram os que, usando o
pretexto do combate ao comunismo, combatiam o desenvolvimento capitalista
também como desenvolvimento social. Bloquearam o desenvolvimento possível de um
país industrializado para transformá-lo num país rentista, que fabrica
desmesuradas fortunas pessoais e desmesuradas misérias pessoais ao mesmo tempo.
Somos hoje colônia disfarçada em cuja
reprodução contínua a ignorância é um instrumento fundamental. Narrativas como
a do pronunciamento militar, não só de um membro do governo mas de vários,
constituem uma técnica de produção da ignorância como instrumento de uma
estrutura de poder destinada a mascarar os desvios autoritários do governo e o
despistamento do eleitorado.
Isso tudo recobre de incertezas o caminho
da urgente e necessária substituição do governante e do que ele representa como
personificação do atraso social e político. Nesta altura, o país precisa quase
desesperadamente de um projeto de superação dos retrocessos sociais, políticos
e econômicos daquela tormentosa e retrógrada concepção de Brasil que saiu
numericamente vitoriosa nas eleições de 2018.
Em face desses mecanismos de inviabilização
da eficácia eleitoral do voto, o Brasil só tem a alternativa de uma grande
frente política, uma coalizão que junte, na convergência das diferenças e dos
diferentes, a construção de uma verdadeira e sólida democracia. É preciso, com
urgência, desconstruir a desconstrução das instituições.
Lutar pela democracia no Brasil de hoje
significa o prioritário combate à mentira na forma de governar pelo engano,
desmentir os mentirosos para superar a ignorância.
Não há nenhum sinal nesse sentido. Muito ao
contrário, nos últimos dias, nos arranjos pré-eleitorais, um descarado
oportunismo remexeu todo o sistema político e de vários modos já assegurou que
a vontade da maioria será convertida nos truques e ciladas do nosso
partidarismo anômalo para assegurar que o ruim fique pior e que tudo mude para
permanecer.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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