Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Não haverá terceira via, Ciro Gomes,
candidatura lulista ou mesmo uma democracia a defender se o projeto autoritário
de Bolsonaro prosseguir sem contenção de seus atos e discursos
O Brasil viveu 21 anos de regime autoritário
comandado por militares apoiados por uma elite civil. Naquele período, pessoas
foram torturadas e mortas, houve censura à imprensa e às artes, funcionários
públicos perderam empregos por conta de suas ideias, a educação virou um lugar
de doutrinação e falta de liberdade e, por fim, escondeu-se uma gigantesca
epidemia de meningite que matou milhares de crianças. Passado esse pesadelo, o
Brasil construiu instituições democráticas que têm sobrevivido por quase quatro
décadas, com alternância de poder nos três níveis de governo, garantia de
controles democráticos sobre os governantes e expansão dos direitos dos
cidadãos.
As últimas pesquisas têm mostrado que a
imensa maioria da população brasileira prefere a democracia, mas,
paradoxalmente, os autoritários cresceram e não estão sendo barrados pela
política e pelas elites do país.
Dito de outro modo, a existência de
instituições democráticas é fundamental para manter o sistema político longe do
autoritarismo, porém, sua efetividade depende da capacidade de punir e evitar o
crescimento de sentimentos e atitudes autoritárias. A punição cabe aos três
Poderes, ao passo que a contenção de discursos e práticas antidemocráticas
depende mais da ação das lideranças políticas e sociais. É bom lembrar que leis
e instituições são movidas por gente, e a inação dos atores não será corrigida
por uma bela Constituição.
A chegada do bolsonarismo ao poder significou o crescimento do discurso e de práticas autoritárias, tanto dos que ocupam postos de poder como também de atores sociais que vendem o autoritarismo por diversos espaços da sociedade brasileira como solução para nossos males. Na verdade, mesmo se alimentando das fontes da nova extrema direita internacional, especialmente por meio do conceito de guerra cultural, os bolsonaristas trouxeram à tona valores já arraigados em parte da população, os quais, infelizmente, sobreviveram às quase quatro décadas de democracia.
Trata-se daquilo que Paulo Sérgio Pinheiro
chamou de autoritarismo socialmente implantado, que envolve valores sociais e
práticas estatais autoritárias, mesmo quando as leis garantem o Estado de
Direito. O interessante é que esse conceito foi criado logo no início da
redemocratização, marcada por muito otimismo e que, de fato, trouxe enormes
avanços democráticos a partir da Constituição de 1988.
Paulo Sérgio Pinheiro nunca negou o salto
civilizatório que o Brasil teve com essa mudança política; no entanto, sempre
deixou claro que havia algo mais profundo na sociedade brasileira: a
desigualdade, o racismo e outras formas estruturais de discriminação (num país
recordista em feminicídio), além do uso da violência estatal contra os direitos
humanos.
O bolsonarismo conseguiu, então, combinar
um ideário iliberal e autoritário presente na extrema direita internacional, como
no governo de Viktor Orbán na Hungria (seu maior ídolo), com valores e práticas
difusas presentes no autoritarismo socialmente implantado. Há uma novidade
aqui: pela primeira vez desde a redemocratização, há lideranças autoritárias
com espaço privilegiado na política brasileira. E o líder maior de tudo isso é
o presidente Bolsonaro, que age em prol do fortalecimento do autoritarismo com
pouco controle sobre suas ações.
Esse projeto autoritário no bolsonarismo
está ganhando cada vez mais força e se ancora em três elementos: o uso do poder
institucional do Executivo Federal em prol de um governo autocrático, a
campanha presidencial de Jair Bolsonaro terá no autoritarismo um eixo central
e, como grande ponto de interrogação, a incapacidade de as elites do país
(econômicas, políticas e sociais) reagirem ao crescimento de lideranças
antidemocráticas comandadas pelo próprio presidente da República.
O primeiro elemento dessa empreitada
autoritária reside numa série de ações realizadas pelo governo Bolsonaro, cujo
objetivo é aumentar o caráter autocrático de seu poder, como tem ocorrido
recentemente noutros países que paulatinamente deixaram de ser democráticos.
Tudo começa com a redução da participação da sociedade em fóruns criados desde
a Constituição de 1988. O bolsonarismo só quer o “seu povo” dialogando com o
presidente, no cercadinho do Palácio da Alvorada ou em suas redes sociais, tudo
de maneira completamente controlada. Afinal, o “Mito” não pode ser questionado,
rompendo-se aqui um princípio básico da democracia liberal: os governantes
precisam ser inquiridos constantemente pelos eleitores.
Para coroar essa forma autocrática de
governar, Bolsonaro tornou o Poder Executivo menos transparente. Muitas
informações governamentais ficaram menos acessíveis à sociedade, chegando-se ao
cúmulo de se criar, em parceria com o presidente da Câmara, Arthur Lira, um
Orçamento secreto, cuja soma neste ano pode ultrapassar os R$ 30 bilhões. Uma
enorme corrupção está passando por esses canais opacos, onde um governo paralelo
e desconhecido dos eleitores se faz presente. Mas, como dizia o filósofo
Norberto Bobbio, não se pode controlar o poder invisível, uma das marcas da
gestão bolsonarista.
O enfraquecimento dos órgãos incumbidos do
controle dos atos do Executivo completa essa forma autocrática de governar. O
bolsonarismo dominou a Polícia Federal, a Controladoria-Geral da União e a
Procuradoria-Geral da República, diminuiu o impacto das ações do Tribunal de
Contas da União e ameaça constantemente o Supremo Tribunal Federal. Como o STF,
mais do que o Congresso, tem sido o principal anteparo ao autoritarismo
bolsonarista, o objetivo é conquistar suas cadeiras. Duas delas já foram
tomadas pelas escolhas de Bolsonaro, e os votos de seus novos ministros provam
o acerto da estratégia. No próximo mandato, a meta é ocupar mais alguns espaços
na Justiça e ainda ter um domínio majoritário do Senado, outra instituição que
em alguns momentos barrou o projeto autocrático do presidente.
Se comparado ao mandato dos outros
presidentes eleitos democraticamente, é evidente que Bolsonaro conseguiu
reduzir sensivelmente o controle institucional e social sobre seu governo. O
Brasil é uma democracia, mas menos democrático do que era antes da posse do
atual presidente. O modelo autocrático do bolsonarismo, ademais, libera forças
autoritárias espalhadas pela sociedade e pelo corpo estatal.
Isso pode ser visto em movimentos recentes
de policiais militares em vários estados, no fortalecimento das milícias, no
crescimento do discurso relativista em relação à democracia e aos direitos
humanos no debate público - a defesa da existência de um partido nazista é dos
sintomas disso - e, por fim, numa atuação deliberada para apagar a violência do
regime militar.
Entra aqui o segundo elemento que revela o
crescimento do projeto autoritário do bolsonarismo: a campanha de Bolsonaro
terá na defesa de uma lógica autoritária de poder uma de suas âncoras. Basta
lembrar que o presidente homenageou o coronel Ustra, um dos mais famosos
torturadores do regime militar, no discurso que inaugurou sua caminhada na
disputa presidencial. A crueldade de Ustra tem como exemplo máximo o episódio
em que torturou um casal com seus filhos assistindo.
Para quem achou que foi só um aceno
secundário aos eleitores radicais, a família Bolsonaro, na figura do deputado
Eduardo, reforçou o sentido do bolsonarismo tempos depois ao ridicularizar,
cruelmente, a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão.
O elogio à tortura tem dois sentidos no
bolsonarismo. No primeiro está uma visão incivilizada de sociedade, na qual é
permitido quebrar os direitos humanos mais básicos em nome de um projeto de
poder. Desse modo, bolsonaristas não são só autoritários; eles representam a
barbárie, a mesma vista recentemente na cena com centenas de civis mortos e jogados
nas ruas da Ucrânia. Mas fazer loas a um regime autoritário tem também um
significado mais estratégico: Bolsonaro sabe que precisa pedir ao eleitorado
uma quantidade de poder bem maior do que recebeu democraticamente das urnas em
2018.
O que chama mais a atenção no crescimento
do poder do líder autoritário que é Bolsonaro, que tem um projeto político
muito forte e consistente, é o silêncio ou a incapacidade de as elites
brasileiras reagirem a esse processo. Alguns devem achar que na hora H as instituições
democráticas salvarão o país, como se imaginava na Hungria de tempos atrás.
Outros devem estar mais preocupados com seus ganhos políticos e econômicos mais
imediatos e acreditam na manutenção de seu status quo - e quando forem presos,
calados ou tiverem sua liberdade restringida, já será tarde. Há aqueles que já
me disseram que se tudo der errado, podem se exilar, quem sabe em Portugal -
aquele país governado por um grupo político que gosta de lembrar do horror que
foi a ditadura salazarista.
Não haverá terceira via, Ciro Gomes,
candidatura lulista ou mesmo uma democracia a defender se o projeto autoritário
de Bolsonaro prosseguir sem uma ação contundente de punição e contenção a seus
atos e discursos. Como em quase todos os regimes autoritários contemporâneos,
eles se instalam porque a maioria acreditava que a democracia estava
consolidada, e num piscar de olhos o eleito torna-se um ditador sem controles.
Chegou a hora de dar um basta no autoritarismo bolsonarista, antes que seja
tarde.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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