Valor Econômico
Caberá ao governo e às elites entenderem o momento histórico e as oportunidades que têm diante de si e agir com foco, ousadia, ambição e determinação
“A festa
acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?”
Este trecho de poesia do genial Carlos
Drummond de Andrade expressa angústia, vazio existencial e sensação de não
haver saída. Este talvez seja o sentimento daqueles que apostaram tudo na
globalização e com ela cresceram, expandiram e até se tornaram protagonistas,
mas que agora olham para o futuro com preocupação. Exemplos de frustração com o
fim da globalização não faltam - pense na República de Cingapura e na empresa
Apple, aos quais retornaremos à frente.
De fato, o “Liberation Day” enterrou de vez a globalização. O sistema de comércio e investimentos baseados em regras e instituições multilaterais está dando lugar a sistemas arbitrários, intervencionistas, protecionistas, discriminatórios e que ferem princípios de jurisdição internacional. O rechaço da Organização Mundial de Comércio (OMC) é apenas a imagem mais visível desse tormento.
A guerra comercial alterará profundamente as
relações econômicas internacionais e provavelmente nos levará para uma recessão
global. As relações comerciais passarão a ser regidas caso-por-caso e de acordo
com interesses imediatos e estreitos, consolidando o desmonte de toda uma
institucionalidade que requereu décadas para ser construída e firmada.
Países mais dependentes do comércio e da
economia internacional possivelmente serão os mais afetados. Voltemos para
Cingapura. O país foi um dos maiores beneficiários da ordem liberal
estabelecida pelos Estados Unidos a partir do final da Segunda Guerra Mundial,
aproveitando-se, como poucos, do livre comércio, do império da lei, do
multilateralismo e das cadeias globais de valor. Com isto, a ilha, com extensão
territorial menor que a do município de São Paulo, logrou crescer com
elevadíssimo nível de desenvolvimento.
Mas, com o fim da globalização, o país deverá
enfrentar desafios significativos, já que o mercado doméstico é muito pequeno
para os negócios que ali estão ancorados. Além das barreiras comerciais, o país
deverá enfrentar fantasmas como a elevadíssima dependência da importação de
energia, alimentos, água, insumos e tantos outros recursos fundamentais para a
sua população e economia. Num mundo cada vez mais caótico e imprevisível, tudo
isto cria vulnerabilidades e temores que podem até colocar o país de joelhos.
Sim, o país tem imensas reservas
internacionais, multibilionários fundos soberanos e coesão política, o que
conforma um poderoso escudo de proteção. Mas, no atual contexto, essas
fortalezas devem ser relativizadas. Da mesma forma que Cingapura se beneficiou
enormemente da globalização, também poderá ser um dos países mais penalizados
pelo seu colapso.
Pense, agora, no caso da Apple. A empresa se
beneficiou extraordinariamente das cadeias globais de valor, ferramenta
determinante para o seu crescimento e consolidação. A empresa expandiu
terceirizando a produção para a China, beneficiou-se de talentos internacionais,
da especialização para a produção de chips e peças em dezenas de países, de
imensos subsídios locais e de estratégias fiscais para pagar pouco imposto. O
amplo acesso aos mercados consumidores globais também foi decisivo. Nessa
engenharia, à Apple tocava desenhar e desenvolver tecnologias, orquestrar e
integrar a cadeia de valor global e gerir o marketing, a marca, estoques e a
comercialização. Os custos baixos e as gigantescas margens de lucros levaram a
empresa a ser uma das mais valiosas do mundo.
Com guerra comercial, Brasil tem diante de si
oportunidade única para atacar as suas chagas de desenvolvimento
Mas os ventos do “Liberation Day” também
chegaram para a Apple e estima-se que o valor de um iPhone deverá aumentar ao
menos 43% em razão das barreiras, mas a produção em território americano, como
quer o presidente Donald Trump, tornaria a Apple inviável. Para além do preço
mais alto, a fragmentação do mercado global, a eventual relativização da
proteção de patentes, o tratamento de regras de origem e tantas outras medidas
de proteção já em gestação deverão atingir em cheio o coração da empresa: as
cadeias de valor.
Desde o início da atual administração Trump,
a empresa já perdeu quase US$ 1 trilhão de valor de mercado, mas estima-se que
as perdas serão ainda maiores. Assim como a Apple se beneficiou muito da
globalização, também deverá ser bastante prejudicada pela nova ordem. Não será
surpresa vermos consumidores americanos comprando iPhone mais barato em viagens
internacionais do que em casa, algo impensável. Não há dúvida: tanto países
como Cingapura como empresas como a Apple terão que se reinventar para seguirem
adiante.
E como fica o Brasil? O país também será
prejudicado. Afinal, depende do comércio, serviços, investimentos e tecnologias
estrangeiros. Mas, olhando para o copo meio cheio, o país poderá até se
beneficiar em termos relativos. Isto porque está geograficamente distante dos
polos de conflito geopolítico e é um dos poucos países que tem relação com
praticamente todas as nações; é um dos poucos países que garante a própria
segurança energética e alimentar; tem mercado interno grande e ainda com
elevado potencial de crescimento; e tem imensos recursos e capital natural.
O Brasil adentra, portanto, aquela nova fase
relativamente protegido, em condições de colaborar com terceiros países e
participar pela porta da frente de cadeias de produção industrial e
powershoring baseados nas suas vantagens comparativas e competitivas, ali
incluídos biocombustíveis, bioeconomia, alimentos, energias, minerais e outros.
Cingapura, Europa, Japão, Coreia do Sul e
outros países têm muito a se beneficiar com o estreitamento de relações
econômicas com o Brasil. Talvez não por acaso, o velho continente esteja
reavaliando o acordo Mercosul-UE, e também talvez não por acaso, vemos aumento
do interesse de bancos, fundos, corporações e investidores internacionais por
negócios e investimentos no país. Tudo isto reposiciona o Brasil e lhe dá
credencial e poder de negociação.
O Brasil tem diante de si oportunidade única
para atacar as suas chagas de desenvolvimento e para mirar os milhões de
“Josés” espalhados pelas zonas deprimidas país afora. Caberá ao governo e às
elites entenderem o momento histórico e as oportunidades que têm diante de si e
agir com foco, ousadia, ambição e determinação.
*Jorge Arbache é professor de
economia da Universidade de Brasília (UnB)
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