quinta-feira, 10 de abril de 2025

E agora, José? - Jorge Arbache

Valor Econômico

Caberá ao governo e às elites entenderem o momento histórico e as oportunidades que têm diante de si e agir com foco, ousadia, ambição e determinação

“A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?”

Este trecho de poesia do genial Carlos Drummond de Andrade expressa angústia, vazio existencial e sensação de não haver saída. Este talvez seja o sentimento daqueles que apostaram tudo na globalização e com ela cresceram, expandiram e até se tornaram protagonistas, mas que agora olham para o futuro com preocupação. Exemplos de frustração com o fim da globalização não faltam - pense na República de Cingapura e na empresa Apple, aos quais retornaremos à frente.

De fato, o “Liberation Day” enterrou de vez a globalização. O sistema de comércio e investimentos baseados em regras e instituições multilaterais está dando lugar a sistemas arbitrários, intervencionistas, protecionistas, discriminatórios e que ferem princípios de jurisdição internacional. O rechaço da Organização Mundial de Comércio (OMC) é apenas a imagem mais visível desse tormento.

A guerra comercial alterará profundamente as relações econômicas internacionais e provavelmente nos levará para uma recessão global. As relações comerciais passarão a ser regidas caso-por-caso e de acordo com interesses imediatos e estreitos, consolidando o desmonte de toda uma institucionalidade que requereu décadas para ser construída e firmada.

Países mais dependentes do comércio e da economia internacional possivelmente serão os mais afetados. Voltemos para Cingapura. O país foi um dos maiores beneficiários da ordem liberal estabelecida pelos Estados Unidos a partir do final da Segunda Guerra Mundial, aproveitando-se, como poucos, do livre comércio, do império da lei, do multilateralismo e das cadeias globais de valor. Com isto, a ilha, com extensão territorial menor que a do município de São Paulo, logrou crescer com elevadíssimo nível de desenvolvimento.

Mas, com o fim da globalização, o país deverá enfrentar desafios significativos, já que o mercado doméstico é muito pequeno para os negócios que ali estão ancorados. Além das barreiras comerciais, o país deverá enfrentar fantasmas como a elevadíssima dependência da importação de energia, alimentos, água, insumos e tantos outros recursos fundamentais para a sua população e economia. Num mundo cada vez mais caótico e imprevisível, tudo isto cria vulnerabilidades e temores que podem até colocar o país de joelhos.

Sim, o país tem imensas reservas internacionais, multibilionários fundos soberanos e coesão política, o que conforma um poderoso escudo de proteção. Mas, no atual contexto, essas fortalezas devem ser relativizadas. Da mesma forma que Cingapura se beneficiou enormemente da globalização, também poderá ser um dos países mais penalizados pelo seu colapso.

Pense, agora, no caso da Apple. A empresa se beneficiou extraordinariamente das cadeias globais de valor, ferramenta determinante para o seu crescimento e consolidação. A empresa expandiu terceirizando a produção para a China, beneficiou-se de talentos internacionais, da especialização para a produção de chips e peças em dezenas de países, de imensos subsídios locais e de estratégias fiscais para pagar pouco imposto. O amplo acesso aos mercados consumidores globais também foi decisivo. Nessa engenharia, à Apple tocava desenhar e desenvolver tecnologias, orquestrar e integrar a cadeia de valor global e gerir o marketing, a marca, estoques e a comercialização. Os custos baixos e as gigantescas margens de lucros levaram a empresa a ser uma das mais valiosas do mundo.

Com guerra comercial, Brasil tem diante de si oportunidade única para atacar as suas chagas de desenvolvimento

Mas os ventos do “Liberation Day” também chegaram para a Apple e estima-se que o valor de um iPhone deverá aumentar ao menos 43% em razão das barreiras, mas a produção em território americano, como quer o presidente Donald Trump, tornaria a Apple inviável. Para além do preço mais alto, a fragmentação do mercado global, a eventual relativização da proteção de patentes, o tratamento de regras de origem e tantas outras medidas de proteção já em gestação deverão atingir em cheio o coração da empresa: as cadeias de valor.

Desde o início da atual administração Trump, a empresa já perdeu quase US$ 1 trilhão de valor de mercado, mas estima-se que as perdas serão ainda maiores. Assim como a Apple se beneficiou muito da globalização, também deverá ser bastante prejudicada pela nova ordem. Não será surpresa vermos consumidores americanos comprando iPhone mais barato em viagens internacionais do que em casa, algo impensável. Não há dúvida: tanto países como Cingapura como empresas como a Apple terão que se reinventar para seguirem adiante.

E como fica o Brasil? O país também será prejudicado. Afinal, depende do comércio, serviços, investimentos e tecnologias estrangeiros. Mas, olhando para o copo meio cheio, o país poderá até se beneficiar em termos relativos. Isto porque está geograficamente distante dos polos de conflito geopolítico e é um dos poucos países que tem relação com praticamente todas as nações; é um dos poucos países que garante a própria segurança energética e alimentar; tem mercado interno grande e ainda com elevado potencial de crescimento; e tem imensos recursos e capital natural.

O Brasil adentra, portanto, aquela nova fase relativamente protegido, em condições de colaborar com terceiros países e participar pela porta da frente de cadeias de produção industrial e powershoring baseados nas suas vantagens comparativas e competitivas, ali incluídos biocombustíveis, bioeconomia, alimentos, energias, minerais e outros.

Cingapura, Europa, Japão, Coreia do Sul e outros países têm muito a se beneficiar com o estreitamento de relações econômicas com o Brasil. Talvez não por acaso, o velho continente esteja reavaliando o acordo Mercosul-UE, e também talvez não por acaso, vemos aumento do interesse de bancos, fundos, corporações e investidores internacionais por negócios e investimentos no país. Tudo isto reposiciona o Brasil e lhe dá credencial e poder de negociação.

O Brasil tem diante de si oportunidade única para atacar as suas chagas de desenvolvimento e para mirar os milhões de “Josés” espalhados pelas zonas deprimidas país afora. Caberá ao governo e às elites entenderem o momento histórico e as oportunidades que têm diante de si e agir com foco, ousadia, ambição e determinação.

*Jorge Arbache é professor de economia da Universidade de Brasília (UnB) 

 

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