Correio Braziliense
Kissinger previu que a China e os Estados
Unidos — uma potência continental e uma potência marítima — travariam uma longa
disputa pelo controle do comércio mundial
O presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, escalou ainda mais a disputa comercial com a China e recuou em relação
aos demais países, numa manobra com objetivo de isolar o presidente chinês, Xi
Jinping, e forçar o gigante asiático a aceitar as exigências protecionistas
norte-americanas.
A China resolveu adotar uma política de
reciprocidade e taxou em 84% os produtos norte-americanos; em resposta, Trump
resolveu pausar seu tarifaço por 90 dias, cobrando apenas 10% de impostos sobre
os produtos de todos os países, menos da China, que aumentou para 125%, devido
às retaliações anunciadas por Pequim.
Os EUA haviam imposto uma taxa de 104% aos produtos chineses, que entraria em vigor nesta quarta. Em resposta, o Ministério das Finanças da China anunciou que subiria tarifas para 84% sobre os produtos americanos. "Com base na falta de respeito que a China demonstrou aos mercados mundiais, estou, por meio deste, aumentando a tarifa cobrada da China pelos Estados Unidos da América para 125%, com efeito imediato", escreveu Trump na Truth Social, sua própria rede.
Desde o início do tarifaço, anunciado no
último dia 2, a economia mundial está sob forte impacto de suas decisões.
"A China perceberá que os dias de exploração dos EUA e de outros países
não são mais sustentáveis ou aceitáveis", escreveu. A guerra comercial
entre os Estados Unidos e a China estava escrita nas estrelas, ou melhor,
prevista no livro Sobre a China (Objetiva), de 2011, no qual Henry Kissinger
analisa a história, a diplomacia e a estratégia chinesas na cena mundial.
Artífice da reaproximação entre os Estados
Unidos e o "Império do Meio", durante o governo de Richard Nixon,
Kissinger realizou mais de 50 visitas a Pequim e a diversas províncias
chinesas, encontrando-se com as principais lideranças que antecederam Xi
Jinping, o atual presidente chinês: Mao Zedong, Zhou Enlai e Deng Xiaoping.
A aproximação entre os dois países foi uma
cartada estratégica de Nixon para manter a hegemonia norte-americana, ao
enfraquecer a antiga União Soviética e conter, também, a ascensão econômica do
Japão, que havia se tornado a segunda economia do mundo. Ao romper com o
padrão-ouro do Acordo de Bretton Woods, de 1944, Nixon virou a mesa: suspendeu
a conversibilidade do dólar em ouro e regulou preços e salários nos EUA.
O câmbio passou a variar com base em oferta e
demanda, o que trouxe mais volatilidade ao comércio internacional. A confiança
no sistema monetário passou a depender da credibilidade dos governos. Alemanha,
França e Inglaterra, que eram as demais potências econômicas mundiais, também
arcaram com as consequências. A crise do sistema coincidiu com choques do
petróleo (1973 e 1979), que geraram "estagflação": alta inflação com
baixo crescimento.
Montanha-russa
Entretanto, Kissinger previu que a China e os
Estados Unidos — uma potência continental e uma potência marítima — travariam
uma longa disputa pelo controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocara do
Atlântico pelo Pacífico. Ele mostrou que essa disputa reproduziria o embate
entre a Inglaterra, uma potência marítima, e a Alemanha, uma potência
continental, pelo controle do comércio no Atlântico, o que provocou duas
guerras mundiais no século passado. Quais serão a forma e o desfecho desse
embate entre os Estados Unidos e a China? É a isso que vamos assistir daqui
para a frente.
O primeiro sinal dessa resposta protecionista
dos EUA ocorreu em fevereiro de 2012, com um anúncio da Chrysler, no intervalo
da Superbowl, a final do campeonato de futebol americano: "As pessoas
estão sem emprego e sofrendo… Detroit mostra-nos que dá para sair dessa. Este
país não pode ser derrubado com um soco". Começava ali a perspectiva dos
norte-americanos em relação à China que agora estamos assistindo.
A Chrysler traduzia o sentimento de milhões
de norte-americanos que responsabilizavam a China pela perda de seus empregos.
A empresa evocava o patriotismo ao dizer que comprar seus carros salvaria os
americanos. Colou a tal ponto que a tese embalou a eleição de Donald Trump em
2016 e sua volta ao poder, neste ano.
A discussão sobre o deficit comercial entre
os dois países é ainda mais antiga: em 2005, Ben Bernanke, então presidente do
Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, dizia que o deficit
da balança de pagamentos dos Estados Unidos havia subido bruscamente no final
dos anos 1990, atingindo US$ 640 bilhões, ou seja, 5,5% do PIB em 2004. A
poupança interna também havia caído 16,5% do PIB desde 1996.
O deficit só poderia ter sido financiado por
investimentos estrangeiros. Para Bernanke, havia uma "fartura de poupança
mundial", e os chineses, com um tremendo superavit comercial com os
Estados Unidos, não estavam investindo nem comprando produtos norte-americanos,
estavam aplicando os ganhos em poupança e reservas de moedas.
Ao subiu o tom e taxar a China em 125%, mas
paralisando as taxações acima de 10% sobre todos os demais países por 90 dias,
Trump revirou novamente o tabuleiro. A impressionante recuperação do mercado de
ações, após a surpreendente reversão de tarifas, já entrou para a história. O
S&P 500 disparou 9,52% em uma reação impulsiva ao anúncio de Trump de
suspender por 90 dias algumas das tarifas "recíprocas".
O ganho em um dia é o terceiro maior desde a
Segunda Guerra Mundial para o principal índice do mercado de ações, de acordo
com a FactSet. Já o Dow Jones Industrial Average avançou 2.962,86 pontos, ou
7,87%, registrando seu maior avanço desde março de 2020. Isso levou o dólar a
perder força em relação ao real e as bolsas de valores ainda abertas ao redor
do mundo a subirem com força, com o Ibovespa em alta de mais de 3%. É uma
montanha-russa, sem trocadilho, cuja estrutura ninguém sabe se aguenta o tranco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário