sexta-feira, 16 de maio de 2025

A lição de Mujica - Bernardo Mello Franco

O Globo

Pepe Mujica havia acabado de tomar posse quando um de seus antecessores o aconselhou a ser mais formal. “O presidente precisa criar uma aura de mistério ao seu redor”, justificou Luis Alberto Lacalle. Na visão do conservador, era necessário “manter a distância” para exercer o poder.

“Nem lhe dei bola”, contou Mujica, tempos depois. Ele respeitava o adversário, mas não tolerava a ideia de subir num pedestal. Acreditava que o presidente era um cidadão como outro qualquer. Por isso dispensou mordomias, manteve seu Fusca azul e continuou a viver numa modesta chácara na periferia de Montevidéu.

Ex-guerrilheiro, preso por 14 anos, Mujica foi um presidente improvável. Dirigentes da Frente Ampla tentaram barrar sua candidatura. Marqueteiros e assessores buscaram domesticá-lo. Ele ignorou os palpites e apostou no próprio instinto. “Em que confusão nos metemos, velha!”, brincou com a mulher, a também ex-tupamara Lucía Topolansky, na manhã seguinte à vitória nas urnas.

Leitor de Marx, Mujica se definia como um “anarquista crônico”. Desiludira-se com a experiência soviética no início dos anos 60, ao visitar Moscou e ver que os chefes do partido fruíam o conforto negado aos trabalhadores. “A ideia do socialismo não pode se opor à liberdade”, repetia.

Eleito com discurso contra a desigualdade, fez o que pregava. Em cinco anos, reduziu a pobreza pela metade e aumentou o salário mínimo em 250% sem descuidar das contas públicas. Um jornal espanhol o apelidou de “o presidente mais pobre do mundo”. Ele explicou que não era pobre: era austero. Para se manter livre, preferia “andar com pouca bagagem”.

No front externo, Mujica pôs seu pequeno país no mapa global. Ajudou a mediar conflitos e chegou a ser cotado para o Prêmio Nobel da Paz. Ateu, aproximou-se do Papa Francisco, com quem partilhava a visão humanista.

Eleito presidente aos 75 anos, o velho tupamaro virou ídolo dos jovens ao encampar a legalização do aborto, da maconha e do casamento igualitário. No livro “Uma ovelha negra no poder”, de Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, ele diz que desejava ver o Uruguai na vanguarda, mas não considerava isso o mais importante.

O depoimento vale como lição para a esquerda latino-americana, que chorou sua morte na terça-feira: “A agenda são os ricos e os pobres. É preciso colocar no centro aqueles que estão no fundo do tacho”.

 

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