O Globo
Pepe Mujica havia acabado de tomar posse
quando um de seus antecessores o aconselhou a ser mais formal. “O presidente
precisa criar uma aura de mistério ao seu redor”, justificou Luis Alberto
Lacalle. Na visão do conservador, era necessário “manter a distância” para
exercer o poder.
“Nem lhe dei bola”, contou Mujica, tempos depois. Ele respeitava o adversário, mas não tolerava a ideia de subir num pedestal. Acreditava que o presidente era um cidadão como outro qualquer. Por isso dispensou mordomias, manteve seu Fusca azul e continuou a viver numa modesta chácara na periferia de Montevidéu.
Ex-guerrilheiro, preso por 14 anos, Mujica
foi um presidente improvável. Dirigentes da Frente Ampla tentaram barrar sua
candidatura. Marqueteiros e assessores buscaram domesticá-lo. Ele ignorou os
palpites e apostou no próprio instinto. “Em que confusão nos metemos, velha!”,
brincou com a mulher, a também ex-tupamara Lucía Topolansky, na manhã seguinte
à vitória nas urnas.
Leitor de Marx, Mujica se definia como um
“anarquista crônico”. Desiludira-se com a experiência soviética no início dos
anos 60, ao visitar Moscou e ver que os chefes do partido fruíam o conforto
negado aos trabalhadores. “A ideia do socialismo não pode se opor à liberdade”,
repetia.
Eleito com discurso contra a desigualdade,
fez o que pregava. Em cinco anos, reduziu a pobreza pela metade e aumentou o
salário mínimo em 250% sem descuidar das contas públicas. Um jornal espanhol o
apelidou de “o presidente mais pobre do mundo”. Ele explicou que não era pobre:
era austero. Para se manter livre, preferia “andar com pouca bagagem”.
No front externo, Mujica pôs seu pequeno país
no mapa global. Ajudou a mediar conflitos e chegou a ser cotado para o Prêmio
Nobel da Paz. Ateu, aproximou-se do Papa
Francisco, com quem partilhava a visão humanista.
Eleito presidente aos 75 anos, o velho
tupamaro virou ídolo dos jovens ao encampar a legalização do aborto, da maconha
e do casamento igualitário. No livro “Uma ovelha negra no poder”, de Andrés
Danza e Ernesto Tulbovitz, ele diz que desejava ver o Uruguai na
vanguarda, mas não considerava isso o mais importante.
O depoimento vale como lição para a esquerda
latino-americana, que chorou
sua morte na terça-feira: “A agenda são os ricos e os pobres. É
preciso colocar no centro aqueles que estão no fundo do tacho”.
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