Valor Econômico
A obra musical e poética desse grande e
criativo compositor contém desafios poderosos porque é uma obra de insurgência
contra o convencional
Na noite do mesmo dia em que recebi a
biografia de Tom Zé, comecei a lê-la. Com voracidade. (“Tom Zé: Fiz meu berço
na viração”, texto de Ivo Mineiro Teixeira, conversas com Tom Zé por Giuliana
Simões e Flávio Desgranges, ed. Hucitec.) Sem poder parar. O livro desvenda a
sonoridade do avesso que é o de nossa realidade e de nossa mentalidade
conformista, da lógica de ocultação dos segredos sonoros e poéticos que nesse
avesso há.
A biografia de Tom Zé é a da descoberta da
oposição reveladora que há entre Salvador, a cidade, e o interior da Bahia, o
sertão. Porque mundos de lógicas diferentes e antagônicas, cujo desencontro
deixou em nossa história um monturo de resíduos sonoros estigmatizados e
desprezados. O lixo da lógica.
A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios poderosos porque obra de insurgência contra o convencional, contra o que mede o que só tem sentido se não for medido. O que não parece ser o que é.
Não é um livro para simplesmente ler, mas um
livro para ouvir. Na leitura, Tom Zé estava falando comigo. Seu livro é um
livro da tradição oral, invertido em relação à tradição escrita.
Na língua falada há sempre muito mais do que
se diz por escrito. Há silêncios, ruídos, gestos inaudíveis, tudo componente de
uma língua que é outra. Língua dos que foram calados ao longo da história pelas
formas de expressão da lógica aristotélica, como ele a define.
Tom Zé é um erudito garimpeiro que percorre o
monturo das sonoridades e sons inaudíveis no ensurdecimento que decorre das
convenções. Ele vasculha e encontra, cria instrumentos estranhos, produz com
eles a música anômala do harmônico desarmônico, das músicas nunca ouvidas,
nunca tocadas porque nunca catadas na dispersão de sons num mundo cuja
racionalidade é a do logicamente restritivo.
Há uma filosofia brasileira por trás desses
resíduos dispersos no limbo contraditório e anômalo de sonoridades
desconhecidas, concebidas como ruídos e dejetos sonoros. As descobertas e
invenções de Tom Zé me lembram do único preto operário da fábrica em que
trabalhei na adolescência.
Ele trabalhava solitariamente num grande
galpão a remover carvão de lenha de um lado a outro para evitar sua combustão
espontânea. Quando por lá passava não o via, só o sorriso branco suspenso na
escuridão do recinto. Ele era o ruído seco e ritmado do carvão jogado sobre o
carvão. Era o baterista da linha de produção, de bateria invisível e de
estranha sonoridade. Recebia salário de operário sem saber que era músico.
Passou a vida tocando aquele solo triste.
A obra de Tom Zé revela também uma
arqueologia da força das palavras, de palavras que dominam o dizer, em que o
final de uma já engendra a outra que é de outra ideia, a do duplo dizer. Como
no vernáculo peculiar em “Menina Jesus”, uma incongruência congruente. A
exclamação popular, cotidiana e mística que se revela no título da música,
“Menina Jesus!”, redutiva, de um implorar misericórdia em face da adversidade:
“Acode minha menina, Jesus!”. E não designação de um Jesus menina.
Ou o notável “São São Paulo” para designar a
cidade que é uma bênção para o migrante, mas é contradição e adversidade
vivencial ao mesmo tempo. Acolhedora sem ser hospitaleira. Revelação do
conteúdo inverso do que musical e socialmente desafina. Encontro no
desencontro. Andar para trás quando se caminha para a frente, despiste,
estratégia de sobrevivência. Curupira vivencial de um país que caminha sempre
sem chegar nunca.
É um dizer do avesso, revelação de uma
sociedade que se empobrece não só porque reduz o pão nosso de cada dia, mas
limita também o canto nosso de cada instante. O discurso como travessia, em
que, com Guimarães Rosa, a importância do dizer está no meio, e não no começo
nem no fim, um dizer inconcluso.
Tom Zé, nos sons que descobre e inventa,
exuma dessa prisão da travessia inacabada o que somos como povo e não sabíamos.
O dizer dos subalternos tem sido aqui o dizer contido por temor a quem manda.
Coisa de uma sociedade de escravos.
Nas composições de Tom Zé, a insurreição dos
ínfimos contra a sujeição do medo. Como lhe escrevi: “nas fábricas em que
trabalhei desde criança, ouvia sons e ruídos, variados dependendo da secção,
das máquinas, das ferramentas e da matéria prima, o dia inteiro. Eles ficaram
grudados na minha memória. Tenho consciência de que era uma sinfonia nunca
composta, só ouvida, não tocada, resíduos musicais do trabalho e das máquinas”.
Se soubesse música, eu poderia ter transcrito
toda aquela imensa sonoridade pós-moderna para Tom Zé. E nela ele me mostraria
que eu era um menino de fábrica que ouvia música sem saber que era música, como
tantos de nós.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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