sexta-feira, 16 de maio de 2025

A Tropicália libertadora de Tom Zé - José de Souza Martins*

Valor Econômico

A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios poderosos porque é uma obra de insurgência contra o convencional

Na noite do mesmo dia em que recebi a biografia de Tom Zé, comecei a lê-la. Com voracidade. (“Tom Zé: Fiz meu berço na viração”, texto de Ivo Mineiro Teixeira, conversas com Tom Zé por Giuliana Simões e Flávio Desgranges, ed. Hucitec.) Sem poder parar. O livro desvenda a sonoridade do avesso que é o de nossa realidade e de nossa mentalidade conformista, da lógica de ocultação dos segredos sonoros e poéticos que nesse avesso há.

A biografia de Tom Zé é a da descoberta da oposição reveladora que há entre Salvador, a cidade, e o interior da Bahia, o sertão. Porque mundos de lógicas diferentes e antagônicas, cujo desencontro deixou em nossa história um monturo de resíduos sonoros estigmatizados e desprezados. O lixo da lógica.

A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios poderosos porque obra de insurgência contra o convencional, contra o que mede o que só tem sentido se não for medido. O que não parece ser o que é.

Não é um livro para simplesmente ler, mas um livro para ouvir. Na leitura, Tom Zé estava falando comigo. Seu livro é um livro da tradição oral, invertido em relação à tradição escrita.

Na língua falada há sempre muito mais do que se diz por escrito. Há silêncios, ruídos, gestos inaudíveis, tudo componente de uma língua que é outra. Língua dos que foram calados ao longo da história pelas formas de expressão da lógica aristotélica, como ele a define.

Tom Zé é um erudito garimpeiro que percorre o monturo das sonoridades e sons inaudíveis no ensurdecimento que decorre das convenções. Ele vasculha e encontra, cria instrumentos estranhos, produz com eles a música anômala do harmônico desarmônico, das músicas nunca ouvidas, nunca tocadas porque nunca catadas na dispersão de sons num mundo cuja racionalidade é a do logicamente restritivo.

Há uma filosofia brasileira por trás desses resíduos dispersos no limbo contraditório e anômalo de sonoridades desconhecidas, concebidas como ruídos e dejetos sonoros. As descobertas e invenções de Tom Zé me lembram do único preto operário da fábrica em que trabalhei na adolescência.

Ele trabalhava solitariamente num grande galpão a remover carvão de lenha de um lado a outro para evitar sua combustão espontânea. Quando por lá passava não o via, só o sorriso branco suspenso na escuridão do recinto. Ele era o ruído seco e ritmado do carvão jogado sobre o carvão. Era o baterista da linha de produção, de bateria invisível e de estranha sonoridade. Recebia salário de operário sem saber que era músico. Passou a vida tocando aquele solo triste.

A obra de Tom Zé revela também uma arqueologia da força das palavras, de palavras que dominam o dizer, em que o final de uma já engendra a outra que é de outra ideia, a do duplo dizer. Como no vernáculo peculiar em “Menina Jesus”, uma incongruência congruente. A exclamação popular, cotidiana e mística que se revela no título da música, “Menina Jesus!”, redutiva, de um implorar misericórdia em face da adversidade: “Acode minha menina, Jesus!”. E não designação de um Jesus menina.

Ou o notável “São São Paulo” para designar a cidade que é uma bênção para o migrante, mas é contradição e adversidade vivencial ao mesmo tempo. Acolhedora sem ser hospitaleira. Revelação do conteúdo inverso do que musical e socialmente desafina. Encontro no desencontro. Andar para trás quando se caminha para a frente, despiste, estratégia de sobrevivência. Curupira vivencial de um país que caminha sempre sem chegar nunca.

É um dizer do avesso, revelação de uma sociedade que se empobrece não só porque reduz o pão nosso de cada dia, mas limita também o canto nosso de cada instante. O discurso como travessia, em que, com Guimarães Rosa, a importância do dizer está no meio, e não no começo nem no fim, um dizer inconcluso.

Tom Zé, nos sons que descobre e inventa, exuma dessa prisão da travessia inacabada o que somos como povo e não sabíamos. O dizer dos subalternos tem sido aqui o dizer contido por temor a quem manda. Coisa de uma sociedade de escravos.

Nas composições de Tom Zé, a insurreição dos ínfimos contra a sujeição do medo. Como lhe escrevi: “nas fábricas em que trabalhei desde criança, ouvia sons e ruídos, variados dependendo da secção, das máquinas, das ferramentas e da matéria prima, o dia inteiro. Eles ficaram grudados na minha memória. Tenho consciência de que era uma sinfonia nunca composta, só ouvida, não tocada, resíduos musicais do trabalho e das máquinas”.

Se soubesse música, eu poderia ter transcrito toda aquela imensa sonoridade pós-moderna para Tom Zé. E nela ele me mostraria que eu era um menino de fábrica que ouvia música sem saber que era música, como tantos de nós.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

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