Valor Econômico
Resta saber se tanta alegria irá sobreviver aos problemas domésticos
O riso era considerado uma arma poderosa na
Idade Média. No enredo de “O nome da Rosa”, clássico de Umberto Eco, uma obra
de Aristóteles sobre a comédia é guardada a sete-chaves na biblioteca de
restrito acesso de um mosteiro beneditino na Itália, para que jamais fosse
consultada ou manuseada. “O riso sacode o corpo, deforma as linhas do rosto,
torna o homem semelhante ao macaco”, acusou em determinado trecho o abade
Jorge, guardião do acervo e vilão da trama, que se passa no século XIV.
No livro, o monge franciscano Guilherme de Baskerville é chamado para investigar uma série de assassinatos de religiosos em pleno mosteiro, mortos após manusearem o livro proibido. Naqueles tempos, a Igreja Católica era hegemônica e impunha com rigor seus dogmas aos plebeus, sem brechas para questionamentos ou reflexão. A indisciplina era punida pela Inquisição.
Na passagem em que confronta Jorge sobre o
livro de Aristóteles ocultado na biblioteca, o vilão protesta contra o
ensinamento do filósofo grego de que se deve “desmantelar a seriedade dos
adversários com o riso”. Ao que Baskerville retrucou que Licurgo, respeitado
filósofo e influente político que viveu no século III antes de Cristo, mandou
erguer uma estátua ao riso em Atenas, berço da democracia ocidental.
O prólogo sobre o riso e os dogmas na Idade
Média ilustra os acontecimentos dos últimos dias, relativos à viagem do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China. Reconhecido e criticado pela
espontaneidade nas palavras e ações, Lula afirmou, durante entrevista à
imprensa, que tem um jeito próprio de compreender a política. “Política é
relação humana”, argumentou. Na sequência, defendeu a quebra de protocolos:
“Tem gente que cria uma certa liturgia de que você não pode chegar perto de
ninguém (...) não tem coisa entre chefe de Estado de que não pode fazer isso,
não pode fazer aquilo, você pode fazer tudo!”
O mandatário relatou que ao embarcar para o
Japão, no final de março, foi advertido pelos assessores de que o imperador
daquele país é considerado uma figura sagrada, na qual não se pode tocar. Ato
contínuo, narrou que ao se encontrar com o imperador Naruhito, a primeira coisa
que fez foi “agarrar e dar um abraço nele”. Foi aplaudido.
O presidente ainda citou episódio envolvendo
o ex-presidente da China Hu Jintao, antecessor de Xi Jinping, com quem conviveu
em seus mandatos anteriores. Relembrou, com ironia, que Jintao usava os cabelos
com brilhantina, e toda hora, ao encontrá-lo, cumprimentava-o passando a mão na
cabeça, e desarrumando os cabelos do chinês. “É assim que eu faço política, é
assim que eu trato as pessoas e é assim que eu gosto de ser tratado”, concluiu.
“Lula é uma pessoa cinestésica”, disse à
coluna um atento observador da cena política, a fim de traduzir o estilo do
petista de, para além dos discursos, fazer política com o tato e com os
movimentos. Lula estava falando de si, mas em reflexão que poderia se aplicar à
primeira-dama Rosângela da Silva, Janja foi bombardeada por críticas após a
revelação ao G1 de que teria quebrado o protocolo diplomático ao se dirigir ao
presidente chinês Xi Jinping para reclamar dos excessos da plataforma chinesa
TikTok no Brasil. Na entrevista, Lula saiu em defesa de Janja, afirmou que o
assunto partiu dele, e que a primeira-dama manifestou-se após pedir a palavra,
e o fez em seu direito, porque não é “cidadã de segunda classe”.
Um diplomata experiente ouvido pela coluna
ponderou que as quebras de protocolo na diplomacia nem sempre são consideradas
graves. No caso de Lula, avalia que o presidente recorre à informalidade como
recursos de narrativa pessoal, e acredita que, em algumas situações, isso
torna-se até mesmo “especial”.
Este diplomata ressalva que o ideal é
respeitar o protocolo. No caso dos chineses, a formalidade é a regra do jogo
porque eles dominam esse ambiente rígido. Contudo, se Lula chega e introduz um
elemento surpresa, como tocar no braço do interlocutor, ele desarma a
autoridade com quem está dialogando. “Ele joga o jogo dele ao invés de jogar o
dos outros, isso é legítimo e saudável”, analisou.
Integrantes da comitiva que retornou da China
na madrugada de quinta-feira disseram à coluna que há tempos não viam Lula tão
bem-humorado e sorridente. Resta saber se tanta alegria sobreviverá aos
problemas domésticos. A começar pelo escândalo dos desvios nas pensões e
aposentadorias do INSS, que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio
Dino chamou de “tragédia social”. A quinta-feira marcou mais um capítulo da
crise, em que o ministro da Previdência Social, Wolney Queiroz, e o senador
Sergio Moro (União Brasil-PR) protagonizaram um bate-boca na audiência na
Comissão de Transparência do Senado.
Nos próximos dias, serão divulgadas novas
pesquisas de avaliação do governo e do desempenho de Lula, que não devem trazer
boas notícias para o Palácio do Planalto. Ao mesmo tempo, a economia continua
adversa, com a inflação alta e resiliente, e taxa Selic de 14,75%.
“Acho que o riso é bom remédio, como os
banhos, para curar os humores e as outras afecções do corpo”, filosofa
Baskerville. Lula só tem que tomar cuidado para não deixar a oposição rir por
último.
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