O Globo
Enquanto ex-presidente condiciona apoio a
submissão completa a teses inadmissíveis como a do indulto, governo segue preso
a um labirinto de crises reais e outras autoimpostas
A direita brasileira saiu do armário e ganhou
corpo graças à arrancada e à vitória de Jair Bolsonaro em 2018, mas, desde
então, demonstra incapacidade de se livrar de sua tutela, mesmo depois da
inédita derrota de um presidente no cargo e da debacle judicial enfrentada por
ele desde que deixou (a contragosto) o poder.
Bolsonaro trata o eleitorado e os aliados que
se convencionou chamar de bolsonaristas como gado. Que faça isso não surpreende
ninguém, pois condiz com a maneira autoritária com que sempre se conduziu na
vida pública. O constrangedor é que políticos que hoje detêm mandatos
—conferidos, portanto, por voto popular— se submetam a esse jugo que nem faz
sentido nem parece ser condição determinante para seu futuro eleitoral.
Bastou verificar que governadores de seu campo ideológico começaram a ensaiar conversas para uma candidatura única da direita no ano que vem para que Bolsonaro pulasse na frente para interditar o campo e dizer que o candidato tem de ser ele ou, no limite, alguém de sua família designado por ele.
O filhotismo é uma das principais características do bolsonarismo desde que Jair lançou o filho Carlos, então menor de idade, para enfrentar a própria mãe na disputa pela vereança no Rio, uma vez que ela, à época já divorciada do chefe do clã, tinha cometido a audácia de achar que o mandato lhe pertencia e pleiteava a possibilidade de se reeleger. É dessa forma desrespeitosa que Bolsonaro segue tratando aqueles que ajudou a impulsionar politicamente, como se, uma vez apoiados por ele, mantivessem a marca a ferro do capitão no couro para sempre.
Ainda que reservadamente esses mandatários
reconheçam que existe boa chance para um candidato de centro-direita vencer
Lula no ano que vem, na hora em que Bolsonaro estrila, ninguém ousa
enfrentá-lo. Está óbvio que a prioridade do ex-presidente, hoje inelegível e
réu no processo da trama golpista, não é a vitória de alguém de seu campo. Isso
só interessaria se o ungido se comprometesse de papel passado com um indulto
para Bolsonaro e os seus, como fez o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, em
plena Nova York nesta semana, expondo diante dos holofotes uma costura que
antecipei neste espaço há mais de um mês.
Os que não são tão explícitos recebem de
Bolsonaro o castigo das ameaças, como uma chapa pura do clã para travar a
disputa e atrasar que a fila ande. Caciques que reverenciam Bolsonaro em
público, mas adorariam ver essa página virada, andavam cabisbaixos na
quarta-feira pelas avenidas nova-iorquinas depois do ultimato do capitão. Sem
coragem para romper o jugo, faziam um complicado cálculo de que, a esta altura,
seria melhor que Lula recuperasse parte de sua popularidade para que chegasse
competitivo no ano que vem. Isso daria a Bolsonaro menos cacife para dar as
cartas da direita, uma vez que uma nova vitória do petista enterraria toda a
indecente costura por indulto, anistia ou qualquer forma de socorro a quem
tramou contra a democracia.
A indigência da política brasileira numa das
quadras mais desafiadoras da História global fica ainda mais evidente em
episódios como esse, mas não é exclusividade da direita submissa a Bolsonaro.
Basta ver que, enquanto o escândalo do INSS segue irresoluto, o presidente, a
primeira-dama e seus principais ministros se dão ao desplante de protagonizar
um vexatório incidente diplomático com direito a caça às bruxas de vazadores
numa viagem de Estado à China.
A direita e a esquerda brasileiras, com um
centro superlotado, mas acéfalo, seguem atreladas a líderes personalistas, em
maior ou menor grau de declínio, mas sem coragem de romper a tutela. A última
vez em que se viu um cenário assim não foi há muito tempo, basta voltar algumas
páginas e rememorar a eleição dos Estados Unidos.
Quando Tony Tornado cerra o punho e levanta o
braço, a luta dos afrodescendentes se fortalece
O Globo
Tony Tornado adentrou o palco do Festival
Negritudes e, antes de dizer qualquer palavra, ao lado do filho, Lincoln,
ergueu o punho direito. O gesto, sinal de resistência, união, identidade
negras, remete ao movimento dos Panteras Negras, nos Estados Unidos, e a Nelson
Mandela, líder e ex-presidente da África do Sul. No Brasil, está eternizado no
cantor e ator, que no próximo dia 26 completa 95 anos. Quando Seu Tony cerra o
punho e levanta o braço, a luta dos afrodescendentes por direitos e bem-viver
se reenergiza.
Houve um tempo em que festivais de música
apresentavam ao país os seus ídolos. Foi assim com Tony Tornado. Ele ganhou
projeção nacional ao vencer o Festival Internacional da Canção de 1970 cantando
“BR-3”, com o Trio Ternura e o Quarteto Osmar Milito. A composição de Antonio
Adolfo e Tibério Gaspar, que conquistou público e júri, fazia da estrada que
levava do Rio de Janeiro a Belo Horizonte, hoje BR-040, metáfora das travessias
e percalços da vida. Em plena ditadura militar, Ato Institucional Número 5 (AI-5)
instalado, o Maracanãzinho cantou: A gente corre na BR-3 /E a gente morre na
BR-3. Na semana dos 137 anos de uma abolição ainda incompleta, inspira.
No ano seguinte, Elis
Regina, cantora tão imensa quando saudosa, presidia o júri do festival e se
apresentou. Entre as canções, “Black is beautiful”, de Marcos e Paulo Sérgio
Valle: Hoje cedo, na Rua do Ouvidor/Quantos brancos horríveis eu vi/Eu quero um
homem de cor. Foi a senha para Tornado entrar no palco, se postar ao lado da
cantora, cerrar o punho, erguer o braço... e ser preso. Ele mesmo contou em
entrevista ao gshow, às vésperas do Dia da Consciência Negra, em 2022:
— Quando ela cantou “Eu quero um homem de
cor”, pensei: “Sou eu”. Subi ao palco, fiquei do lado da Elis Regina, ergui o
braço e o punho. E, claro, já desci com ele algemado. Apesar da truculência, eu
tinha conseguido meu intento, que era o esclarecimento geral de que o negro é
lindo, né? Tenho muito orgulho de ser negro. Fui preso, mas com muito prazer,
muita satisfação.
Preso no passado, o protagonista desta
história — e em plena atividade — foi aplaudido de pé pelo mesmo gesto, ontem,
pela biografia, pela franqueza e pela sensibilidade com que tratou da parceria
profissional com o filho caçula, que se encontrou no ofício do pai. Na mesa que
dividiu comigo e Isabela Reis, minha filha e parceira no podcast Angu de Grilo,
e com o casal Aline e Igor, juntos no musical, Tornado disse que Lincoln o
“tirou do asilo”. A frase, dita bem ali no Galpão da Cidadania, região da Pequena
África, onde o Rio nasceu, calou fundo em quem se acostumou a saber de idosos a
caminho de retiros. O Negritudes reverenciou também a cantora Alcione,
77 anos; Gilberto
Gil, 82, cantor, compositor e imortal da Academia Brasileira de Letras
(ABL); e Neguinho da Beija-Flor, 75, cantor e compositor.
O Brasil é um país que envelhece. De 2000 a
2023, a proporção de habitantes com 60 anos ou mais quase duplicou: de 8,7%
para 15,6%. Em 2070, segundo o IBGE, praticamente quatro em cada dez
brasileiros serão idosos; 75 milhões ao todo. A esperança de vida ao nascer,
que estava em 71 anos há duas décadas, hoje beira 76. Bem antes do fim do
século, passará de 83 anos. Aqui, a longevidade é negada a porções numerosas da
população, em particular a mulheres e homens negros, expostos historicamente a
más condições de habitação, trabalho, alimentação, saúde. E à violência
homicida.
No início da semana, Ipea e Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP) apresentaram mais uma edição do Atlas da Violência.
A publicação, referente a 2023, festejou o menor número de homicídios em 11
anos. O país somou em um ano 45.747 assassinatos; 35.213 mortos tinham pele
preta ou parda; um em cada três, de 15 a 29 anos. Em média, 60 jovens perdem a
vida por dia no Brasil. Uma pessoa negra, informaram os pesquisadores, tem
quase três vezes mais chance de ser vítima de homicídio. Dois terços das mulheres
alvo da violência letal são negras. A taxa de mortalidade de idosos é de 14,2
por 100 mil habitantes para homens pretos e pardos; e de 8,8 para os não
negros.
Por isso, ver Tony Tornado, quase 95, mais
uma vez, erguer o punho em sinal de altivez, resiliência e luta, em plena
semana de aniversário da Lei Áurea, faz bem. Encontrar, ouvir e reverenciar
Tornado, Alcione, Gil e Neguinho — cada um com uma história de talento,
superação e sucesso — inspira, alimenta, conforta. Aos 137 anos de uma abolição
até hoje incompleta, são promessa de vida em nossos corações.
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