O Globo
Não
tente discutir esse tema com um militante: ele não está interessado no fim do
preconceito, mas em instituir uma discriminação reversa
No
dia da eleição da jornalista Míriam Leitão para a Academia Brasileira de
Letras, duas postagens apareceram, em sequência, no meu feed, numa rede social.
Uma comemorava a chegada da primeira mulher mineira à ABL; a segunda lamentava
que mais uma mulher branca tivesse sido escolhida.
Em ambos os casos, nem uma palavra sobre os méritos da jornalista, sobre sua qualificação para ocupar a cadeira que um dia foi de Euclides da Cunha, Dinah Silveira de Queiroz, Nélson Pereira dos Santos, Cacá Diegues – e cujo patrono é ninguém menos que Castro Alves. A economista e escritora foi reduzida, para o bem e para o mal, a seus cromossomos, a sua procedência e à quantidade de melanina disponível em sua epiderme.
Esse
é um dos vícios do identitarismo: a obsessão por características que caíram de
paraquedas na nossa biografia. Ser mulher, homem, preto, branco, mulato, homo
ou hétero, tudo isso faz parte da loteria genética; nascer em Minas não é mais
que um (feliz) acaso geográfico. Ter se posicionado contra a ditadura militar e
manter a mesma postura crítica aos governos Dilma, Bolsonaro e Lula — tão
diferentes entre si e tão igualmente nefastos em seus projetos políticos e
econômicos —, isso sim, diz algo a respeito de alguém.
Mas
não tente discutir esse tema com um militante. Ele não está interessado no fim
do preconceito, mas em instituir uma discriminação reversa. Sua proposta é,
como se dizia décadas atrás, acirrar as contradições. Não quer a quitação da
“dívida histórica”, mas torná-la impagável. Seu foco está nos privilégios e
compensações que possa obter. É um gigolô das dores dos seus antepassados. Daí
o becape diário dos ressentimentos — vai que a memória apaga algum, sem
querer...
Ainda
neste mês, Míriam Leitão sairá da mira dessa patrulha: se o poeta, professor e
tradutor Paulo Henriques Britto for eleito para a vaga deixada por Heloisa
Teixeira, haveremos de ouvir que venceu o “pacto da branquitude”, que um
macho-branco-hétero ocupou o lugar de uma mulher. Caso a Academia prefira o
poeta e compositor Salgado Maranhão, a carta do racismo será poupada, mas
permanecerá a da misoginia. Houvesse uma mulher negra candidata (não há), os
mais virtuosos dos identitários apontariam que, de novo, se deixou de fora uma
trans, periférica, imigrante, que escreva num idioma que não o do colonizador
etc. etc. etc. Não há para onde fugir.
Em
“Viva o povo brasileiro”, João Ubaldo Ribeiro criou uma metáfora deliciosa
sobre nossa identidade. Vu, filha do caboco Capiroba, engravida de um holandês
que havia sido capturado e aguardava o abate (carne de holandês era iguaria
muito apreciada, por ser bem mais tenra que a dos portugueses). A dúvida é se a
criança nascida dessa mistura seria gente (como os cabocos) ou comida (como os
europeus). E aí voltamos à provocação do título desta coluna: o identitarismo é
ótimo se você for um sommelier de melanina, um gourmet de gordura corporal, um
fiscal de pronome, um bedel de libido. E péssimo se, como o holandês da saga
ubaldiana (e todo o resto da Humanidade), você for comida. A criança mestiça?
Esta, na maloca do caboco Capiroba em 1647 ou na aldeia global de 2025, terá de
escolher entre devorar ou ser devorada.
Diz Eli Vieira, em seu ótimo livro “Mais iguais que os outros”, que o gordoativismo “está fadado a desmoronar sob o próprio peso”. Autofágico, o identitarismo há de morrer de indigestão.
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