CartaCapital
A aliança entre o bolsonarismo e o Centrão
protege aliados que migraram do setor público para o privado
Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central de 2019 a 2024 por obra de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, descolou um novo emprego. Será vice-presidente do Nubank, uma das instituições financeiras digitais bastante incentivadas pelo BC que comandava. Assumirá em julho, ao fim da quarentena de seis meses prevista na Lei de Conflito de Interesses. Antes de entrar no governo, trabalhara no Santander. Caso clássico de “porta giratória” entre o setor privado e o público, e viceversa, com presumíveis consequências nocivas para a coletividade. “Quando os funcionários que têm a responsabilidade de formular as políticas para o setor financeiro provêm do próprio setor financeiro, por que haveríamos de esperar que eles incorporem pontos de vista marcadamente diferentes daqueles que o setor deseja?”, pergunta o economista norte-americano Joseph Stiglitz em um livro de 2010, O Mundo em Queda Livre.
Nos corredores do BC, comenta-se que outro
ex-diretor, Bruno Serra Fernandes, embolsou 10 milhões de reais do Itaú ao
voltar para a instituição em 2023, após quatro anos na autoridade monetária.
Seria uma forma de compensá-lo pelo salário menor em Brasília. Paul Krugman,
outro economista norte-americano crítico da “porta giratória”, anotou em um
texto de 2023 que “antigos políticos e funcionários públicos que apoiaram os
interesses dos ricos encontram cômodas garantias de sinecura” ao regressarem ao
ninho privado. Num artigo de 2017, tascou: “Quando legisladores deixam seus
postos, voluntariamente ou não, os empregos que obtêm em seguida muitas vezes
envolvem lobby de alguma espécie. Isso lhes oferece incentivo para que
mantenham felizes os caras do dinheiro grosso, pouco importa o que pensem os
eleitores”.
A Comissão de Ética Pública tem fechado os
olhos para casos bem duvidosos
No governo do capitão, o bolsonarismo subiu
ao altar com o “Centrão”, aquela massa direitista que manda no Congresso, e o
casamento produz até hoje portas giratórias em série, não raro com o
beneplácito da Comissão de Ética Pública, que deveria zelar pela Lei de
Conflito de Interesses. São histórias com indícios de negócios indecorosos
feitos ou por fazer e a envolver servidores públicos que colaboraram com Guedes
e com outro ex-ministro de Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, atual governador de
São Paulo.
Funcionário concursado do Ministério Público
da União, Vitor Saback foi assessor especial de Guedes em 2019. Em 2020, o
governo o indicou para a diretoria da Agência Nacional de Águas. Ficou na ANA
até 2023, início da gestão Lula. Renunciou para assumir, no Ministério de Minas
e Energia, a Secretaria Nacional de Geologia, Mineração e Transformação
Mineral. Alexandre Silveira, o ministro, é do PSD, partido do “Centrão”. Saback
deixou a secretaria em 2 de abril deste ano. No mesmo dia, foi contratado como
presidente da Paranapanema, fabricante de produtos à base de cobre. A empresa
entrou em recuperação judicial após a eleição de 2022. Paulo Amador da Cunha
Bueno, um dos advogados de Bolsonaro, é do conselho de administração e
participou da reunião de abril que aprovou a admissão do ex-secretário.
Saback tinha consultado a Comissão de Ética
Pública em fevereiro sobre a mudança de emprego e teve sinal verde no relatório
de Bruno Espiñeira Lemos, conselheiro nomeado no governo Lula. A consulta é
praxe, devido à Lei de Conflito de Interesses, que busca coibir o uso de
informações privilegiadas. A CartaCapital, o ex-secretário afirmou que “todas
as informações necessárias para a análise da existência ou inexistência de
conflito de interesses foram devidamente encaminhadas e examinadas pela
Comissão de Ética Pública”. Será?
A comissão entregou uma cópia da consulta à reportagem, em resposta a um pedido de esclarecimentos. No documento, Saback dizia não ver conflito de interesses, pois a Paranapanema seria do ramo da metalurgia, alvo de políticas públicas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, não da secretaria que ele ocupava. O ex-secretário enviou um link do decreto que define as atribuições da secretaria, sem destacar que cabe a ela implementar políticas relativas à “transformação mineral”. Metalurgia é “transformação mineral”. Também remeteu um link com a cópia do estatuto social da Paranapanema, sem destacar que entre os objetos da companhia estão “pesquisa e lavra de minerais”. Não informou que a metalúrgica tem dois sócios mineradores (a Buritirama e a multinacional Glencore), nem que possui requerimentos na Agência Nacional de Mineração.
No documento, Saback diz ter recebido uma
proposta para trabalhar na Paranapanema por meio de um telefonema do presidente
da Caixa Econômica Federal, Carlos Antônio Vieira Fernandes. A Caixa é o
segundo maior acionista da empresa, com 9% das ações. Fernandes está no banco
público desde outubro de 2023, por força do deputado Arthur Lira, do PP de
Alagoas, à época presidente da Câmara. Na gestão Temer, Saback trabalhou na
área do Palácio do Planalto que lida com o Congresso, a subchefia de Assuntos
Parlamentares. Era da equipe de Mariângela Fialek, integrante do Conselho
Fiscal da Caixa desde 2022. Fialek, conhecida como “Tuca”, foi do gabinete
presidencial de Lira na Câmara de 2021 a 2025. Sabe tudo de “orçamento
secreto”.
Um observador privilegiado do setor mineral
em Brasília aposta que a missão de Saback será vender a preço de banana as
ações da Caixa na Paranapanema. Esta fez muitos negócios com mineração durante
a ditadura. Nos anos 1970, foi comprada pelo BNDES. A participação estatal
começou a ser reduzida na década de 1990. Em 2019, início do governo
Bolsonaro, um sócio da empresa, Luiz Barsi, falou publicamente de um plano de
venda das ações da Caixa. Barsi ampliou sua fatia na Paranapanema após a
chegada de Saback, para 5%. Os papéis dobraram de preço logo após a contratação
do ex-secretário.
O Centrão quer manter intacta a partilha de
indicações nas agências reguladoras
Quem poderia comprar as ações da Caixa na
Paranapanema? A Arábia Saudita, aposta o observador. Mineração é atividade cada
vez mais valiosa, graças à transição energética. São cobiçados os minerais
críticos, como o lítio, usado em bateria de carros elétricos. O governo saudita
tem uma das maiores mineradoras do mundo, a Ma’aden. Como secretário de
Geologia e Mineração, Saback teve contatos com autoridades árabes do setor. Em
julho de 2024, recebeu o ministro da Indústria e Recursos Minerais saudita e o
vice-ministro para Assuntos de Mineração. Em janeiro de 2025, visitou o país.
Recorde-se: os sauditas presentearam com joias Bolsonaro, inclusive por
intermédio do então ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque.
O advogado Cunha Bueno, do conselho de administração da Paranapanema, defende o
ex-presidente no rolo das joias.
O secretário-executivo de Minas e Energia no
tempo de Albuquerque é mais um caso de “porta giratória”. Engenheiro civil e
servidor de carreira da área de infraestrutura, Bruno Eustáquio de Carvalho é o
atual diretor de Relações Institucionais da Eletrobras, vulgo “lobista”. Ao
lado do almirante, participou do processo de privatização da empresa em 2022.
Antes da venda, era do conselho de administração da holding, como representante
do governo. Em janeiro de 2021, o conselho reuniu-se e discutiu formas de pagar
ao poder público pelo direito de manter ou obter concessões na área elétrica.
Carvalho deu dicas de como usar precatórios, ou seja, moeda podre, para comprar
as outorgas. Segundo ele, a Eletrobras poderia poupar 2,5 bilhões de reais. Ou
seja, o Estado ficaria com o prejuízo. Repita-se: o secretário integrava o
conselho como voz do governo. Em Brasília, há quem diga que Carvalho foi
secretário-executivo informal de Minas e Energia em 2023. Só não teria sido
nomeado de fato pelo ministro Silveira por conta da pressão de funcionários da
Eletrobras e da bronca de Lula com a privatização. A não nomeação possibilitou
o cumprimento da quarentena antes de se tornar diretor da companhia, com
salário perto de 80 mil reais. Bela “sinecura”.
No último ano de Bolsonaro, Carvalho trocou a
pasta de Minas e Energia pela de Infraestrutura. Foi ser o secretário-executivo
desta última, quando o então ocupante do posto, Marcelo Sampaio, virou ministro
no lugar de Freitas. Sampaio é servidor da carreira de analista de
infraestrutura. Foi pinçado pelo então ministro de Infraestrutura para ser o
número 2 da pasta desde o início. Como ministro, negociou a renovação
antecipada da concessão da Ferrovia Centro-Atlântica, que corta oito estados. A
concessão, que vence em 2026, pertence à VLI, sociedade da Vale com a japonesa
Mitsui e a canadense Brookfield. Na transição do governo passado para o atual,
a equipe de Lula encontrou um cálculo de 13 bilhões deixado por Sampaio como a
quantia que a VLI deveria pagar pela renovação. Acredita-se, porém, que o
valor deveria ser maior, 20 bilhões. À época, o secretário-executivo consultou
a Comissão de Ética Pública sobre deixar o governo e entrar na Vale sem
quarentena. Conseguiu.
Sampaio é genro do general Luiz Eduardo
Baptista Ramos, ministro de Bolsonaro em três pastas. Tem um irmão também
servidor (do Ministério Público da União) na área de infraestrutura. Em 2020,
Filipe Sampaio foi assessor de Guedes e em 2022 foi indicado para a diretoria
da Agência Nacional de Águas. O mandato na ANA terminou em janeiro passado.
Pouco antes, havia acertado sua contratação pela Companhia de Saneamento das
Américas. Consultou antes a Comissão de Ética. Não obteve a dispensa da
quarentena.
Quem deveria zelar pelo bem público acaba por
atuar, no governo, como lobista de empresa
No caso de Rafael Vitale Rodrigues, a
comissão dispensou. Foi em fevereiro deste ano. Rodrigues é engenheiro civil.
Em 2012, trocou o setor privado pelo público. Entrou no Departamento Nacional
de Infraestrutura de Transportes, o DNIT, então comandado por Freitas. Quando
este virou ministro da Infraestrutura, em 2019, ingressou na assessoria
especial da pasta. De lá, pulou, em 2020, para a Casa Civil da Presidência, que
tinha à frente o general Walter Braga Netto. No ano seguinte, o governo o
indicou para a diretoria da Agência Nacional de Transportes Terrestres. Seu
mandato na ANTT venceu em 2025. Saiu de lá e foi para a CSN. É o diretor de
Relações Institucionais.
A siderúrgica é dona de ferrovias como a
Transnordestina e desenvolve outros projetos no setor. A Comissão de Ética
Pública não viu problema. Em fevereiro, liberou Rodrigues para entrar na
empresa sem esperar os seis meses da Lei de Conflito de Interesses. O parecer
da comissão coube a um nomeado de Bolsonaro, Edivaldo Nilo Batista. Na consulta
à comissão, Rodrigues negou ter tido “relação relevante” com a CSN quando na
ANTT. Não teve? Ele foi responsável por um acordo da agência com a empresa,
assinado no apagar das luzes do governo Bolsonaro, que encurtou o traçado da
Transnordestina. Exclui-se um trecho de 520 quilômetros (restaram 1,2 mil) que
levaria a estrada férrea até o porto de Suape, em Pernambuco. A CSN ficou livre
de gastar uma nota na obra. Em Brasília, estima-se uma economia de 3 bilhões de
reais.
Para a vaga de Rodrigues na ANTT, o governo
Lula indicou Guilherme Theo Rodrigues da Rocha Sampaio, na agência desde 2021 e
outro exemplo de “porta giratória”. Antes da ANTT, Sampaio era chefe de
gabinete da presidência da Confederação Nacional do Transporte. Sua indicação
faz parte de um pacote de 17 nomes enviado em dezembro pelo governo ao Senado,
a quem cabe aprovar ou não as escolhas. O pacote está parado. O motivo? O
toma lá dá cá do Congresso, diz um assessor do Senado. Bolsonaro, comenta o assessor,
conseguiu apoio parlamentar à base de “orçamento secreto” e da divisão com o
“Centrão” de postos em órgãos reguladores. O “Centrão” até hoje não “desmamou”,
quer que a divisão prossiga. Escolhas que significam influência política hoje e
porta giratória amanhã. Nem todas as indicações de dezembro agradaram a essa
turma, que tem como porta-voz da queixa o comandante do Senado, Davi
Alcolumbre.
Uma prova de que a divisão de escolhas e o
casamento do bolsonarismo com o “Centrão” ainda rendem frutos é o mentor
de uma das indicações para a ANA, a agência das águas, o líder da oposição,
Rogério Marinho, do PL potiguar. O senador indicou Larissa Oliveira Rêgo,
ex-diretora na Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura
na gestão Bolsonaro. Marinho, segundo se ouve, é cotado para ministro da
Fazenda em um governo direitista que surgisse da derrota de Lula em 2026. Tem
tido a colaboração, na elaboração de propostas, de uma economista neoliberal
que é mãe de uma filha de Carlos Bolsonaro. Trata-se de Martha Seillier,
diretora do Banco Interamericano de Desenvolvimento entre 2022 e 2023 por
indicação de Guedes e hoje lotada no gabinete da liderança da minoria no Senado
exercida por Ciro Nogueira, outro ex-ministro de Bolsonaro. Foi professora de
um curso de pós-graduação em governança e infraestrutura promovido em Brasília
em 2022 pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. O coordenador do curso era
Sampaio, ex-ministro da Infraestrutura. O corpo docente tinha ainda Bruno
Eustáquio.
Compadrio, familismo e portas giratórias correm soltos à luz do dia em Brasília.
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital,
em 14 de maio de 2025.
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