Carta Capital
O Congresso não pode, a pretexto de salvaguardar a função pública, deslegitimar a atividade do STF em face do mais severo desafio imposto à democracia brasileira
O Supremo Tribunal Federal tem impulsionado
as denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra o
ex-presidente da República Jair
Bolsonaro e outros 33 acusados dos crimes de organização criminosa
armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado,
dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Por essas razões, estão
se intensificando as discussões relativas à concessão
de anistia e, mais recentemente, a sustação das ações penais nos
termos do parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição.
O dispositivo constitucional prevê que, recebida a denúncia contra um senador ou deputado por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus integrantes, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.
Rememoremos que Bolsonaro proliferou
desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso,
o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e
estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Também não podemos
esquecer da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito de
impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto
Internacional de Brasília, em dezembro de 2022, e do fatídico dia 8 de janeiro
de 2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos da República
brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.
E se, antes, a palavra “golpe” pudesse, no
âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão
político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de
um crime contra as instituições democráticas: “golpe de Estado”, com todos os
elementos do tipo constantes do artigo 359-M do Código Penal.
É a primeira vez na nossa história que um
ex-presidente da República, ex-ministros, parlamentares, militares e outros
servidores públicos da alta administração são denunciados por tentativa de
golpe de Estado. A finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser
estritamente punir: precisamos deixar claro para as próximas gerações que a
sociedade brasileira não aceita ataques violentos à Constituição e à
democracia.
A gradual fragilização dos espaços e dos
sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade ocorreu por
meio de específicos artifícios enfraquecedores do pacto civilizatório e das
instituições democráticas. Entretanto, para além de mera estratégia política de
reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além. As provas são claras,
consistentes e revelam a gravidade dos crimes cometidos contra a nossa
democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de
Direito. Não estamos falando apenas de discursos golpistas, mas de ações
concretas, como planos de sequestro e assassinato de autoridades, que colocaram
em risco a própria democracia brasileira.
Nesse cenário, a eventual sustação das ações
penais em face de parlamentares não deve, em hipótese alguma, beneficiar
terceiros. A previsão constante do parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição
incide para, em benefício da função pública e não do indivíduo considerado,
salvaguardar a atividade parlamentar. Não se trata, portanto, de um privilégio
ou de uma benesse individual, mas uma garantia atrelada à função.
Subvertendo a lógica constitucional, o
Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da
Constituição em face de terceiros estranhos à atividade parlamentar. Não se
pode, a pretexto de salvaguardar a função pública, deslegitimar a atividade do
Supremo Tribunal Federal em face do mais severo desafio imposto à democracia
brasileira em sua história recente.
Se, de um lado, a realização do Estado
constitucional implica preservação da esfera de livre decisão política do
legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão
entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia
deve ocorrer. Ao Legislativo não compete a determinação dos limites, bem como a
extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o STF em seu papel de
intérprete final e guardião. As garantias parlamentares não podem ser utilizadas
como meio de esvaziamento da atividade jurisdicional suprema. •
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital,
em 14 de maio de 2025.
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