sábado, 10 de maio de 2025

Manobras pela anistia - Pedro Serrano

Carta Capital

O Congresso não pode, a pretexto de salvaguardar a função pública, deslegitimar a atividade do STF em face do mais severo desafio imposto à democracia brasileira

O Supremo Tribunal Federal tem impulsionado as denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e outros 33 acusados dos crimes de organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Por essas razões, estão se intensificando as discussões relativas à concessão de anistia e, mais recentemente, a sustação das ações penais nos termos do parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição.

O dispositivo constitucional prevê que, recebida a denúncia contra um senador ou deputado por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus integrantes, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.

Rememoremos que Bolsonaro proliferou desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso, o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Também não podemos esquecer da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito de impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto Internacional de Brasília, em dezembro de 2022, e do fatídico dia 8 de janeiro de 2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos da República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.

E se, antes, a palavra “golpe” pudesse, no âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas: “golpe de Estado”, com todos os elementos do tipo constantes do artigo 359-M do Código Penal.

É a primeira vez na nossa história que um ex-presidente da República, ex-ministros, parlamentares, militares e outros servidores públicos da alta administração são denunciados por tentativa de golpe de Estado. A finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente punir: precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira não aceita ataques violentos à Constituição e à democracia.

A gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade ocorreu por meio de específicos artifícios enfraquecedores do pacto civilizatório e das instituições democráticas. Entretanto, para além de mera estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além. As provas são claras, consistentes e revelam a gravidade dos crimes cometidos contra a nossa democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito. Não estamos falando apenas de discursos golpistas, mas de ações concretas, como planos de sequestro e assassinato de autoridades, que colocaram em risco a própria democracia brasileira.

Nesse cenário, a eventual sustação das ações penais em face de parlamentares não deve, em hipótese alguma, beneficiar terceiros. A previsão constante do parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição incide para, em benefício da função pública e não do indivíduo considerado, salvaguardar a atividade parlamentar. Não se trata, portanto, de um privilégio ou de uma benesse individual, mas uma garantia atrelada à função.

Subvertendo a lógica constitucional, o Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da Constituição em face de terceiros estranhos à atividade parlamentar. Não se pode, a pretexto de salvaguardar a função pública, deslegitimar a atividade do Supremo Tribunal Federal em face do mais severo desafio imposto à democracia brasileira em sua história recente.

Se, de um lado, a realização do Estado constitucional implica preservação da esfera de livre decisão política do legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia deve ocorrer. Ao Legislativo não compete a determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o STF em seu papel de intérprete final e guardião. As garantias parlamentares não podem ser utilizadas como meio de esvaziamento da atividade jurisdicional suprema. •

Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.

 

 

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