Correio Braziliense
Ex-presidente uruguaio faleceu nesta
terça-feira, aos 89 anos, no sítio onde vivia, nos arredores de Montevidéu.
Liderou pela palavra e pelo exemplo, com diálogo e sem ressentimentos
A morte do ex-presidente José Mujica, nesta
terça-feira, foi anunciada pelo presidente do Uruguai, Yamandú Orsi, em
mensagem pelo X (antigo Twitter). A esquerda latino-americana perdeu o líder
político mais carismático de sua geração, que talvez só possa ser equiparado ao
ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, que liderou a luta contra o
apartheid por mais de duas décadas, mesmo estando preso.
José Alberto “Pepe” Mujica Cordano nasceu em
20 de maio de 1935, em Montevidéu, Uruguai. Ex-guerrilheiro, agricultor e
político, presidiu o país entre 2010 e 2015, sendo amplamente reconhecido por
seu estilo de vida austero, sua retórica humanista e sua atuação firme em
defesa da democracia, dos direitos sociais e da soberania popular.
Pepe Mujica deixa um legado de integridade, coerência e compromisso com os valores humanos. Sua trajetória inspira líderes e cidadãos ao redor do mundo a repensarem as prioridades da vida e da política, valorizando a simplicidade, a empatia e a justiça social. Como presidente, manteve a simplicidade e as críticas ao consumismo. Em 2013, fez um discurso marcante na ONU, em que criticou o consumismo e a lógica do crescimento econômico sem limites. “Desenvolvimento não é consumir mais. É ser mais feliz com menos”, afirmou Mujica. O discurso viralizou nas redes sociais.
Durante seu mandato, implementou políticas
progressistas que colocaram o Uruguai na vanguarda social da América Latina,
como a legalização do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da
maconha. Mujica também ficou conhecido por doar cerca de 90% de seu salário
presidencial para instituições de caridade e viver em sua modesta chácara nos
arredores de Montevidéu, recusando os luxos do cargo. Não se mudou para a
residência presidencial, continuou morando numa casa modesta, junto com a
esposa, Lucía Topolansky, sem empregados domésticos e com pouca segurança. O
casal nunca teve filhos.
Seu estilo informal de se vestir, o hábito de
dirigir um velho Fusca azul-celeste de 1987 e a decisão de viver com muito
pouco lhe renderam o título na imprensa de “o presidente mais pobre do mundo”.
Entretanto, Mujica nunca foi um outsider, embora tivesse um perfil fora do
padrão da política tradicional, mesmo a de esquerda. Basta comparar sua
trajetória e seu comportamento com os de outros líderes de sua geração. Por
isso, mesmo sendo o presidente de um pequeno país, conquistou o respeito e a
admiração internacionais, inclusive aqui no Brasil, onde foi aclamado após ter
deixado o poder, num evento na concha acústica da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, em 2015.
Amigo de Lula
Mujica era amigo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, visitou-o quando ainda estava preso na Superintendência da
Polícia Federal (PF) em Curitiba, em junho de 2018. Antes da visita, que durou
15 minutos, discursou em um megafone aos militantes que estavam acampados perto
da PF: “Os homens e as mulheres podem estar presos ao corpo, mas as causas dos
homens e das mulheres nunca estão presas, porque caminham com as pernas e os
braços dos companheiros”. Ao sair, disse que Lula estava com “muito bom humor,
alguns quilos a menos, lendo muitos livros e preocupado com o destino do
Brasil”. Não se imaginava que Lula voltaria ao poder em 2022.
Por sua coerência política e seu
comportamento, Mujica destacou-se no universo de grandes líderes de esquerda da
América Latina, como Fidel Castro (Cuba, 1926-2016), Daniel Ortega (Nicarágua,
1945), Salvador Allende (Chile, 1908-1973), Lúcio Gutiérrez (Equador, 1957),
Evo Morales (Bolívia, 1959), Hugo Chávez (Venezuela, 1954-2013) e políticos
mais moderados, como o que viria também a se tornar, entre os quais Ricardo
Lagos (Chile, 1938), Tabaré Vázquez (Uruguai, 1940-2020) e Michelle Bachelet
(Chile, 1951).
Mujica cresceu em uma família de pequenos
proprietários agrícolas de origem basca e italiana. Desde jovem, envolveu-se em
atividades políticas, inicialmente nas juventudes do Partido Nacional. Na
década de 1960, integrou o Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, grupo
guerrilheiro de esquerda que combatia a ditadura uruguaia. Durante esse
período, foi preso e passou cerca de 14 anos encarcerado, muitos deles em
regime de isolamento. Não fazia apologia do passado de guerrilheiro,
considerava a luta armada um erro.
Com a redemocratização do Uruguai, foi eleito
deputado em 1995 e senador em 2000 pelo partido Frente Ampla. Entre 2005 e
2008, ocupou o cargo de ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca. Em 2009, foi
eleito presidente do Uruguai, assumindo o cargo em 1º de março de 2010.
Em abril de 2024, Mujica foi diagnosticado
com câncer de esôfago. Em janeiro de 2025, informou que a doença havia se
espalhado para o fígado e que, devido à sua idade e a outras condições de
saúde, decidiu não continuar com os tratamentos. Encontrava-se em fase terminal
da doença, recebendo cuidados paliativos em sua residência em Rincón del Cerro,
próximo a Montevidéu.
O ex-presidente uruguaio pediu para ser
sepultado lá mesmo, sob uma árvore, onde também foi enterrada sua cadela
Manuela, que tinha apenas três patas. O animal era tratado como parte da
família e simbolizava seu apego à vida simples e afetiva. Mujica morreu com a
mesma simplicidade e popularidade com que chegou ao poder.
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