sábado, 9 de novembro de 2013

'O capitalismo como religião', de Walter Benjamin

Da política à arte, textos do pensador evidenciam seu método de colecionar imagens e fragmentos de ideias, apresentando-os em novos contextos

Por Márcio Seligmann-Silva

“O capitalismo como religião” é o título de um pequeno fragmento de Walter Benjamin, de 1921, deixado sob a forma de um rascunho. Também esse título foi escolhido por Michael Löwy para dar nome ao rico volume com textos coligidos de Benjamin, agora publicado pela editora Boitempo. Para o filósofo de Berlim, conforme lemos nesse fragmento, o capitalismo responderia às mesmas preocupações e anseios a que antes as religiões tentavam responder. Os santos dessa nova religião, que se alimenta de culpa, são as efígies das cédulas de dinheiro. Essa religiosidade, no entanto, não seria superada pelo comunismo, já que com Marx “o capitalismo impenitente se converte em socialismo, com juros e juros sobre juros”. Em alemão, vale lembrar, culpa e dívida estão unidos na mesma palavra: Schuld.

Ademais, no artigo-montagem “De cidadão do mundo a grão-burguês”, uma alucinante colagem de textos de língua alemã, Benjamin retoma a seguinte passagem de Adam Heinrich Müller, da virada do século XVIII para o XIX, que já mostra como as mazelas do capitalismo atual vêm de uma longa história: “Escravidão financeira, o tipo de escravidão reinante no momento, é o pior tipo porque está associada a sentimentos mentirosos de suposta liberdade.” E com as palavras de Johann G. Herder, o grande filósofo e teórico da História, Benjamin mostra que a prática da escravidão propriamente dita não é avessa à “moral” do capitalismo: “Na Europa”, escreveu Herder em 1794, “a escravidão foi abolida, porque se calculou quanto esses escravos custariam mais e produziriam menos que pessoas livres; só uma coisa ainda nos permitimos: usar três partes do mundo como escravos, negociá-los, bani-los para minas de prata e moinhos de açúcar.” Lembremos do Brasil de então.

Já com auxílio de Heinrich Heine, ficamos sabendo que até os comunistas são “cristãos”, só que “muito melhores” do que os nacionalistas alemães. Heine, de resto, estaria disposto a abrir mão de sua poesia a favor desse novo mundo comunista. Com entusiasmo revolucionário, em 1856, à beira da morte, ele declara: “Que seja demolido este velho mundo, onde morreu a inocência, onde vingou o egoísmo, onde o ser humano morreu de fome por ação do ser humano.” E conclui de forma lapidar: “Fiat justitia, pereat mundus!” — “faça-se justiça, pereça o mundo!”

Essa destruição também era cara a Benjamin e, da mesma forma, tingida em sua obra com o tom melancólico e ao mesmo tempo entusiasta que vemos em Heine. Essa postura tem a ver com o “novo romantismo” que Benjamin defende em outro artigo, no qual se encontram sobriedade e vontade para ação. Romantismo, aliás, que Benjamin faz questão de ver como o grande momento de “secularização da tradição mística” no pensamento europeu.

No âmbito da reflexão política e ética, o volume guarda várias preciosidades. Por exemplo, a ideia de que a pena de morte é parte da lógica econômica no Estado burguês. Uma citação estonteante de Otto von Bismarck, que defende a pena de morte (obviamente Benjamin a condenava), serve também para emplacar um raciocínio desconcertante: na nossa sociedade, a propriedade estaria acima da vida. Pode-se matar em legítima defesa da propriedade. Já a exclusão da pena capital com fundamentos humanitários seria hipócrita, porque se aceita a morte dos operários de maneira naturalizada e a problemática, pois a classe trabalhadora sofre e perece nas minas, ferrovias e é intoxicada por gases venenosos nas fábricas.

Benjamin sempre cultivou as citações desconcertantes, que nos tiram o chão. Este livro é uma contundente prova de seu método de trabalho: colecionar imagens e fragmentos da história do pensamento para apresentá-los em novos contextos, resignificando-os e gerando um impacto catártico no leitor. Da “Filosofia do Direito” de Hegel, ele cita uma passagem que justifica as guerras: o Estado é visto como um indivíduo e portanto, necessariamente geraria a sua negação, o seu inimigo. E Hegel desdobra essa sua lógica cristalina: “Os povos não só saem fortalecidos das guerras como as nações, inconciliáveis dentro de si mesmas, obtêm tranquilidade interna promovendo guerras externas.” Nada mais pragmático e — nada mais desoladoramente realista.

Benjamin, em outro ensaio deste volume, “As armas do futuro”, de 1925, previa que as estratégias militares seriam totalmente modificadas com a introdução da guerra química e do lançamento por via aérea desse tipo de armamento. Com isso, ele não só previu a utilização das câmaras de gás, por parte dos nazistas, mas sobretudo, inspirado pelo que já ocorreu na Primeira Guerra Mundial, anteviu bombardeios como os realizados pelos EUA com o veneno “napalm” no Vietnã, como ainda a atual crise desencadeada pelo uso de armas químicas.

Por fim, destaco a vigorosa teoria das imagens que Benjamin desenvolve a partir do “grande filósofo e antropólogo” Ludwig Klages. As imagens seriam arquivos de uma mitologia natural, milenar, esquecida; “almas” de coisas ou de seres humanos; uma ponte com um mundo mais profundo e apagado. No êxtase, esse mundo assumiria a forma dessas imagens. Aby Warburg e sua teoria das fórmulas patéticas, assim como a teoria freudiana da nossa herança de fatos violentos ocorridos nos primórdios da humanização devem ser confrontadas com essa teoria da imagem de Klages, que Benjamin nos recupera.

Márcio Seligmann-Silva é ensaísta e professor de teoria literária na Unicamp e é autor de "O local da diferença" (Editora 34).

Fonte: O Globo / Prosa

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