- O Estado de S. Paulo
Na política brasileira, este não será um tempo revolucionário, em que os acontecimentos adquirem velocidade imprevista e transformações qualitativamente decisivas parecem concentrar-se em poucas horas ou semanas. Dito isso, a forma como se manifesta o fim da “hegemonia” lulopetista e se decide o destino do segundo governo Dilma, precoce e irremediavelmente envelhecido, não dará aos dias que correm a monótona sensação de serem um longo e único dia, como acontece aos períodos de relativa calmaria social e normalidade política.
Por mais áspero que seja o conflito - e por mais deletérias que sejam as possibilidades de regresso, já atingindo a mobilidade ascendente que se costuma associar erroneamente só aos governos petistas -, o fim daquela “hegemonia” não contém elementos catastróficos. O petista mais fervoroso não argumentará que os governos de Lula e Dilma significaram ruptura na formação histórico-social, da qual não é possível recuar a não ser tragicamente, com mortos e feridos em barricadas imaginárias. E o tucano menos afeito à dimensão social-democrata da própria sigla não se colocará contra a expansão do consumo privado (e, portanto, de relações mercantis) na primeira década do século. De fato, é caricata a imagem do opositor elitista ou racista a reclamar de aeroportos superlotados ou do caráter popular que, enfim, teria assumido o ensino na pátria educadora.
Extravagância retórica à parte, o fim de qualquer ciclo e a forte turbulência em torno do mandato de um governante eleito implicam emoções garantidas, torcidas organizadas e vaivéns inesperados. O palco de um drama desta natureza - de todo modo, bem menos agudo do que uma tragédia - nunca é unidimensional, envolvendo ao mesmo tempo cenas de rua e ambientes institucionais. Em tela de juízo, por força das coisas, um importante ator da esquerda realmente existente, não daquela que idealmente poderia ter-se constituído no correr da redemocratização, mais permeável às exigências de uma sociedade que recusa simplificações e que, pelo menos em tese, todos descrevem como a caminho de se tornar majoritariamente de classe média.
A legítima aspiração daquele ator a dirigir a sociedade, o que numa sociedade livre se disputa em última análise nas urnas e está sempre posto em questão, geralmente não recorreu às formas altas de hegemonia. Esta, corretamente entendida, ainda que modifique equilíbrios políticos, decisões econômicas e orientações de valor, requer a plena explicitação da dialética da democracia, respeitando-se invariavelmente a identidade dos adversários. Nada mais distante, pois, de uma estratégia de cooptação e decapitação das forças antagônicas, neutralizadas ou postas em posição subordinada, como vimos nos últimos anos.
Força organizada em torno de uma liderança carismática, com capacidade de domínio, certamente, mas longe de se pôr em condições de efetivamente dirigir a sociedade, o petismo recorreu, nos anos dourados, à tentativa de construção de um sistema de poder em que se entrelaçaram fundos de pensão, empresas públicas e partidos aliados (subalternos). Bem verdade que pôde contar com oposições que não entenderam (e já terão entendido?) o desafio de um partido de massas relativamente bem estruturado e continuaram a praticar um tipo tradicional de política, com escassos vínculos “orgânicos” com um mundo social em veloz transformação, como é próprio deste tempo de redes e de sobreposição de velhos e novos problemas.
Uma tentação autoritária sempre esteve claramente presente. Para decifrá-la recorreu-se em diferentes momentos a experiências como a do PRI mexicano ou a da safra recente de autoritarismos latino-americanos eleitoralmente competitivos. Mas não é verdade, em absoluto, que esse tipo de tentação só floresça “à esquerda”. O desmonte em curso do sistema de poder, efetuado por instâncias de controle externas ao mecanismo propriamente político, tem ocorrido mediante uma operação que só parece ter semelhança, em termos contemporâneos, com a Mani Pulite italiana, acontecida há pouco mais de 20 anos. E neste caso se tratava de esquema sedimentado em torno da tradicionalíssima Democracia Cristã e do Partido Socialista para manter uma espécie de “democracia bloqueada”, uma vez que, desde o segundo pós-guerra, não se reconheciam credenciais de governo ao partido (comunista) de oposição.
Agita-se, como desdobramento da Mãos Limpas, o espantalho da antipolítica, que logo se teria manifestado por meio de um personagem burlesco e autoritário, como Berlusconi. Mas também se mantiveram, com capacidade de governo, o PCI e suas várias metamorfoses, garantindo um mínimo de respostas razoáveis à crise italiana.
Entre nós, ao contrário, os petardos da operação judicial sobre os partidos ainda não explodiram com toda a força e ameaçam até uma formação estrategicamente relevante como o PMDB. Expressão de um “centro democrático” que os setores radicalizados jamais entenderam - haja vista, numa infinidade de outros exemplos, a recusa do apoio de um herói como Ulysses à candidatura de Luiz Inácio da Silva no segundo turno de 1989 -, a incorporação subalterna desse partido ao sistema petista supunha seu declínio e, ao mesmo tempo, marcaria um estágio mais grave de seu esvaziamento.
A oxigenação programática deste centro, que vai muito além do PMDB, pode ser um dos acontecimentos mais interessantes do fim de ciclo petista, quando menos como estímulo para abandonar este período de contraposições simplórias e deseducadoras. Num horizonte amplo, tal centro se tornaria, quem sabe, desafio produtivo para uma esquerda autorreformada, que assimilasse os valores da política democrática e largasse, como um molambo qualquer, a fantasia autoritária.
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* Luiz Sérgio Henriques: tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil
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