sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Fernando Abrucio: Constituição Cidadã não pode ser esquecida

-Valor Econômico / Eu & Fim de Semana


Todos sabem que o próximo ano será importante porque haverá eleição presidencial em um momento decisivo do país. Praticamente perdemos o último quadriênio em meio a uma crise política, econômica e social. Quem for eleito terá a legitimidade para fazer as mudanças necessárias em prol da retomada do desenvolvimento. Mas 2018 também será marcado por uma comemoração importante: o trigésimo aniversário da Constituição de 1988. Seu legado histórico estará nas mãos dos eleitores brasileiros, que escolherão o modelo de cidadania que desejam ter e a maneira de implementar essa proposta. Trata-se de uma discussão central que os presidenciáveis terão de fazer.

Logo em sua promulgação, Ulysses Guimarães definiu o novo ordenamento institucional do país como "Constituição cidadã". Foram garantidos os mais variados direitos, individuais e coletivos, e propostos modelos institucionais gerais para construir um Estado de Bem-Estar Social. A maioria das conquistas não veio de imediato. Foram necessárias legislações de natureza complementar ou ordinária para efetivar o espírito constitucional.

O sucesso dessa empreitada, obviamente, não foi absoluto, pois a desigualdade e outras carências permanecem no país. Porém, é inegável que houve avanços extraordinários, especialmente pelo curto período de tempo em que foram alcançados. Os indicadores sociais melhoram significativamente em várias áreas: universalização do ensino fundamental, redução da mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida, expansão da rede elétrica instalada, entre muitos exemplos que poderiam ser citados. Além disso, a participação da sociedade nos assuntos coletivos ampliou-se, com eleições regulares, conselhos de políticas públicas e garantia de acesso à informação pública.

O Brasil tornou-se uma democracia como nunca fora e pôde desfrutar, pelo menos entre 1993 e 2013, de uma tríplice conjugação virtuosa: jogo democrático em expansão e respeitado por todos, estabilidade econômica e inclusão social. Cabe reforçar que esse sucesso, ancorado na ideia de Constituição Cidadã, foi obtido fazendo revisões ao longo do caminho, baseadas, geralmente, no aprendizado em relação ao desempenho governamental. Foram feitas muitas mudanças legais, com destaque para as 103 Emendas Constitucionais aprovadas (contando inclusive as aprovadas no período de Revisão Constitucional em 1994). Também foram realizados aperfeiçoamentos no funcionamento do Estado para dar sustentabilidade financeira e gerencial à expansão dos direitos.

Em outras palavras, mesmo com alterações e reformas no seu arcabouço, o modelo de cidadania propugnado pela Constituição de 1988, de cunho democrático e inclusivo, nunca foi colocado em xeque pelas forças políticas majoritárias do país. A questão é saber se esse consenso maior vai ser mantido no debate das eleições de 2018 e, sobretudo, na agenda dos novos governantes e legisladores eleitos.

Evidentemente que a crise fiscal atual vai exigir algum tipo de reordenamento de gastos. Mas esse processo de mudança pode priorizar exatamente as despesas que favorecem a construção de desigualdades. Boa parte da reforma da Previdência, contida na definição de idade mínima e na equiparação dos sistemas público e privado, coaduna-se com a Constituição Cidadã. Afinal, embora ela fosse movida pelo ideal da igualdade entre todos, alguns de seus dispositivos continuaram favorecendo certos grupos em detrimento da maioria da população brasileira.

Já alterações no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria rural aumentarão as disparidades entre os cidadãos. Basta retirar grande parte dos subsídios tributários a grandes empresas, sem que isso gere mais investimento nem mais empregos, para conseguir a receita necessária para financiar quem não terá Previdência digna em qualquer hipótese. Criar mecanismos para montar um modelo previdenciário sustentável perante à mudança demográfica está em linha com uma sociedade democrática madura, todavia, não garantir uma renda básica aos idosos mais pobres é indecência.

O modelo de Saúde criado pelo SUS precisa evidentemente melhorar seu modelo de gestão, tornando-o mais eficiente e mais efetivo. Há muito desperdício, burocratismo, regras de isonomia que engessam a gestão como um todo, além da dificuldade de ter um conjunto maior de profissionais engajados na defesa do fortalecimento da saúde preventiva.

Não obstante, qualquer mudança nesse modelo deve passar pela garantia do direito à Saúde a todos que precisarem, se os eleitores no ano que vem decidirem manter o pacto constitucional de 1988. E olhando para as pesquisas que medem os maiores problemas do país na visão da população, a Saúde continua no topo, e isso significa que se quer mais e melhores serviços públicos, e não o mero repasse ao setor privado, em Planos Populares que vão enfraquecer o sentido de igualdade entre os cidadãos.

Temos de seguir o exemplo britânico do National Health Service (NHS), orgulho nacional, como visto na homenagem que a Olimpíada de Londres fez a ele. Trata-se de um serviço público universal instalado num país fortemente capitalista, zeloso da liberdade de iniciativa e incentivador da competição, e onde o Sistema de Saúde é uma peça-chave para garantir a igualdade de oportunidades.

A educação brasileira avançou muito nas últimas décadas, principalmente em termos de acesso. Em comparação a 1988, muito mais gente está estudando e alcançando algum grau de ascensão social por intermédio do estudo, inclusive com a chegada à universidade de mais negros e pobres. Só que esse novo patamar não apaga os problemas ainda existentes. A qualidade da educação básica é sofrível quando comparada aos países que participam do exame internacional do Pisa, inclusive em relação a nossos vizinhos sul-americanos. A evasão no ensino médio virou uma epidemia, e quase metade dos jovens brasileiros abandona a escola nesse ciclo.

Os resultados são prejudicados pela má gestão do sistema educacional, por conta da falta de colaboração efetiva entre os entes federativos, da formação inadequada de professores e diretores. Também há uma distribuição injusta e ineficiente dos recursos existentes. As escolas e municípios que mais precisam não necessariamente são os que mais recebem verbas e apoio governamental. Uma parcela mais rica da sociedade que faz a universidade pública poderia pagar mais imposto de renda ou prestar serviços gratuitos à sociedade, como forma de reduzir a desigualdade inerente a essa situação.

A melhoria da educação é tão essencial ao país que precisaremos investir mais e melhor se quisermos atacar a desigualdade, formar cidadãos e garantir que a economia seja mais competitiva frente ao mundo. Para isso, será necessário ter uma carreira de professor mais atrativa, investir mais em ciência e tecnologia e ajudar os alunos mais pobres a romper as barreiras que os impedem de progredir no processo educacional. E, ademais, não podemos perder os avanços que obtivemos.

Por exemplo, no caso das cotas no ensino superior, é justo cobrar uma retribuição dos mais ricos a um serviço gratuito de qualidade, mas também é fundamental evitar o sucateamento da universidade, que poderia ser gerado com a expulsão de grande parte dos não-cotistas. Poderia ocorrer o mesmo fenômeno que aconteceu na educação básica faz décadas, quando a classe média abandonou as escolas públicas e começou a decadência destas.

Trocando em miúdos, será preciso melhorar a gestão e a qualidade do gasto público, em termos de eficiência, efetividade e equidade, mas o investimento em políticas sociais continuará sendo decisivo para o país. Acreditar em soluções meramente mercantis que não tiveram sucesso noutros países, sobretudo em realidades com desigualdade próxima à nossa, ou apostar na ideia de que a ampliação do crescimento econômico e dos empregos vai resolver nossas mazelas de cidadania, são formas de esquecer o que aprendemos com o passado recente: a garantia e expansão de direitos é essencial para a estabilidade política, econômica e social do Brasil.

O eleitor-padrão, mostram as pesquisas, quer mais e melhores políticas públicas, especialmente as de corte social. Aqueles candidatos que disserem que depois do ajuste automaticamente virá a melhoria do bem-estar, terão dificuldades de ganhar votos. Os que prometerem mundos e fundos para todos, particularmente para os mais pobres, sem dizer que modelo de gestão e financiamento dará conta disso, poderão ter mais eleitores, mas não governarão com esse discurso.

A alma que está por trás da "Constituição cidadã" melhorou o país, e a população, em sua maioria, almeja esse ideal. Só que é preciso reconstruir as condições que garantam a viabilidade dessa proposta. O centro do debate eleitoral se dará em torno disso. Tomara que ganhe o presidenciável capaz de entender a necessidade de combinar essas duas premissas, dando realismo a nosso sonho. Com essa frase dedico os meus melhores votos a todos, por um Feliz Natal e um Ano Novo que anuncie o início de um ciclo com mais desenvolvimento e democracia, e com menos desigualdade.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP

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