domingo, 20 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O que diz a agenda do presidente – Opinião | O Estado de S. Paulo

Ali se verifica que Jair Bolsonaro tem muitas prioridades e que a saúde dos brasileiros definitivamente não está entre elas

O presidente da República, Jair Bolsonaro, como se não tivesse nada mais importante com o que se ocupar em meio a uma pandemia e a uma grave crise econômica e social, encontrou tempo em sua agenda para reinaugurar a Torre do Relógio da Ceagesp, na zona oeste da capital paulista, na terça-feira passada. 

O monumento foi reformado e pintado de verde e amarelo pelos comerciantes da Ceagesp – cujo presidente, Ricardo Mello Araújo, um coronel da reserva da Polícia Militar nomeado por Bolsonaro, mandou que os funcionários recebessem o presidente vestindo verde e amarelo, bem ao gosto do ufanismo bolsonarista. 

Bolsonaro gosta de inaugurações. Vem se dedicando a elas bem mais do que às reuniões com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, supostamente responsável pelos esforços federais de combate à pandemia de covid-19. 

Na agenda de Bolsonaro, disponível no site da Presidência, observa-se que até o dia 15 passado o presidente teve apenas 5 audiências com o ministro desde 16 de setembro, quando foi oficializado como titular da Saúde. Em compensação, Bolsonaro esteve presente a 10 inaugurações nesse período, em várias partes do País – numa delas, no Rio Grande do Sul, ficou mais de dez minutos acenando a motoristas na beira da estrada.

Mas o presidente não vive só de inaugurações. A agenda mostra que Bolsonaro tem especial preferência por cerimônias de caráter militar – foram 10 desde a posse do ministro Pazuello – e também por eventos que reúnem policiais – contam-se 4 desses encontros no período. No último deles, dia 14 passado, prestigiou a formatura de delegados da Polícia Federal, em que estava especialmente confortável – à plateia embevecida contou que teve que se empenhar muito para conseguir os recursos necessários para autorizar a convocação dos concursados, pois “o pessoal lá (no Ministério da Economia) só tem cifrão na frente dos olhos”.

Compreende-se que Bolsonaro se sinta muito mais à vontade sendo adulado e inaugurando obras que podem lhe dar votos do que em reuniões para falar do desastre da pandemia, sobre o qual o presidente recusa qualquer responsabilidade. Mas a agenda presidencial revela bem mais que isso: ali se verifica, na prática, que Bolsonaro tem muitas prioridades e que a saúde dos brasileiros definitivamente não está entre elas.

O presidente, por exemplo, dedicou cinco dias de sua agenda desde 16 de setembro a encontros com líderes evangélicos. Além disso, no mesmo dia em que finalmente dava alguma atenção ao ministro Pazuello, Bolsonaro encontrou uma brecha para conversar, durante meia hora, com um lutador de MMA. Em outra ocasião, que já tem lugar assegurado na antologia dos maiores vexames da história presidencial, Bolsonaro inaugurou uma exposição dos trajes que ele e a primeira-dama usaram na posse.

Se isso não basta para determinar quais são as preocupações do presidente, a agenda fornece mais algumas pistas: enquanto o ministro Pazuello foi praticamente esquecido por Bolsonaro, outros ministros receberam atenção especial. Paulo Guedes, da Economia, por exemplo, foi recebido 24 vezes pelo presidente no período, uma ilustração da preferência de Bolsonaro pela economia na crise causada pela pandemia.

Se o desastre econômico talvez sirva como desculpa para a maior atenção de Bolsonaro a Paulo Guedes, não há justificativa plausível para que o presidente tenha realizado 10 reuniões com seu chanceler Ernesto Araújo, o dobro do número de reuniões que teve com o ministro Pazuello, sem qualquer resultado prático além do crescente isolamento do Brasil no exterior. Também é difícil entender por que razão Bolsonaro se reuniu mais vezes com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo – foram 11 encontros –, sendo que a maior ameaça ao Brasil é o vírus, e não um agressor externo.

O ministro Pazuello já é o terceiro a ocupar o cargo no governo Bolsonaro. Malgrado seu imenso despreparo – ou talvez em razão disso –, foi colocado lá para não atrapalhar os projetos eleitorais do presidente. Assim, sendo apenas um ministro decorativo, recebe do presidente a atenção que merece. 

A destruição da política externa – Opinião | O Estado de S. Paulo

O País nunca esteve tão isolado e os interesses nacionais nunca foram tão mal defendidos

A primeira metade do mandato do presidente Bolsonaro foi marcada, entre outras notas negativas, pela incapacidade de realização. Jair Bolsonaro simplesmente não entregou o que prometeu. Essa ineficácia é evidente, por exemplo, nas anunciadas privatizações, que não saíram do papel, e no cada vez mais distante equilíbrio fiscal, outra promessa de campanha. Incapaz de construir o que quer que seja, o governo de Jair Bolsonaro tem sido, no entanto, eficiente na destruição de importantes legados nacionais, como é o caso da política externa.

O País nunca esteve tão isolado internacionalmente e, o mais grave, os interesses nacionais nunca foram tão mal defendidos. Essa infeliz proeza do presidente Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ficou evidente por dois fatos recentes.

De forma reiterada, o governo brasileiro deixou de cumprir suas obrigações financeiras com a Organização das Nações Unidas (ONU) e outros organismos internacionais. Só a dívida com as Nações Unidas soma cerca de US$ 390 milhões. A situação chegou a tal ponto que, para continuar exercendo seu direito de voto na ONU em 2021, o governo tem de pagar ao menos US$ 113,5 milhões à entidade até o fim de 2020.

Atualmente, apenas três países-membros da ONU encontram-se na situação de endividamento capaz de afetar o direito de voto: Somália, Ilhas Comores e São Tomé e Príncipe. Mais do que da falta de dinheiro, a situação constrangedora de endividamento é fruto do descaso do governo federal com os compromissos internacionais. Imbuído do seu engodo isolacionista, o presidente Bolsonaro simplesmente não atuou para obter do Legislativo as devidas autorizações orçamentárias.

No dia 17 de dezembro, o Legislativo socorreu a desídia do Executivo e liberou crédito suplementar para pagar R$ 917 milhões em dívidas com organismos internacionais. A ação do Congresso evitou, assim, um vexame internacional. Seria a primeira vez que o Brasil, por não honrar seu compromisso, perderia seu direito de voto na ONU.

O segundo episódio refere-se à rejeição do Senado à indicação do embaixador Fabio Mendes Marzano para ocupar a posição de delegado permanente do Brasil nas Nações Unidas, na Suíça. A reprovação em si é um fato raro. O Senado tem histórico de especial tolerância com as escolhas do Palácio do Planalto, seja quem for o seu ocupante.

Mas a rejeição do nome indicado por Jair Bolsonaro foi ainda mais insólita em razão da ampla diferença de votos. Foram 37 votos contrários e 9 favoráveis, evidenciando a profunda insatisfação do Legislativo com a política externa do governo Bolsonaro. “Isso indica recado político, uma indicação de um humor político do Senado em relação à política externa brasileira”, disse Aloysio Nunes, que foi senador e ministro das Relações Exteriores no governo de Michel Temer.

A sujeição da política externa à chamada pauta ideológica bolsonarista – desde a adesão a teorias da conspiração e a submissão a interesses de Donald Trump até o puro negacionismo de questões ambientais – tem criado sérios problemas aos interesses nacionais. O agronegócio é um dos setores que sentem diretamente os efeitos desse absurdo enviesamento da política externa, que, em vez de ampliar a inserção do Brasil no mercado e nas cadeias produtivas internacionais, cria, por exemplo, problemas desnecessários com a China, maior parceiro comercial do País.

A rejeição do Senado ao nome indicado por Jair Bolsonaro é, portanto, manifesta tentativa de dar um basta ao despropósito instaurado no Itamaraty. “Foi um sinal político inequívoco”, disse Celso Lafer, que foi ministro das Relações Exteriores no governo de FHC.

O País não tem condições de seguir arcando com os altos custos da política externa de Jair Bolsonaro, que vem causando insistentemente prejuízo aos interesses nacionais. A necessária mudança de rumo e de propósito – construir em vez de destruir – passa inequivocamente pela substituição do atual ministro das Relações Exteriores. Seu intento de tornar o País um pária internacional precisa ser interrompido o quanto antes.

A maldição dos dois por cento – Opinião | O Estado de S. Paulo

Só reformas livrarão o Brasil da praga do baixo crescimento, repetem CNI e OCDE

O Brasil estará condenado a um crescimento medíocre, raramente acima da casa dos 2%, enquanto faltarem reformas para tornar o País mais eficiente e mais competitivo. Sobre isso concordam analistas do mercado e de entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE). Com baixo potencial produtivo, a economia brasileira até poderá, de vez em quando, correr na faixa de 3% a 4%, talvez um pouco acima disso, mas será incapaz de sustentar esse ritmo por vários anos. Essa avaliação, confirmada pelos fatos há muito tempo, acaba de ser reiterada por economistas da CNI e da OCDE.

Contração de 4,3% neste ano e crescimento de 4% no próximo são as novas estimativas da CNI. São números parecidos com os do governo. As avaliações apresentadas pela OCDE no relatório anual a respeito do Brasil são mais sombrias, pelo menos à primeira vista. Segundo esses cálculos, o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano deve ser 5% menor que o de 2019. Para 2021 se projeta expansão de 2,6%.

O balanço de 2020 é apresentado em termos positivos pelas duas instituições. Políticas de apoio ao setor privado e às famílias mais vulneráveis evitaram um desastre maior. Mas essas políticas tiveram enorme custo fiscal. O déficit primário (calculado sem juros) aumentou muito, a dívida pública ultrapassou 90% do PIB e essa relação deverá crescer nos próximos anos. Será preciso, ao mesmo tempo, consertar finanças públicas severamente avariadas em 2020 e cuidar das condições de crescimento econômico.

A recuperação em 2021 será marcada, segundo o estudo da CNI, por avanço na pauta de reformas e continuação da retomada econômica. Nesse quadro, o PIB já seria 2,8% maior que o de 2020 se a atividade se mantivesse no nível deste fim de ano. Seria o efeito do chamado carregamento estatístico. Mas deve haver, além disso, um pouco mais de dinamismo, e isso levará à expansão de 4%. Mas como ficarão os anos seguintes?

O desafio, responde o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, é a transição da retomada para o crescimento sustentável acima de 2%. Essa transição tem de começar já em 2021. A passagem dependerá da eliminação do custo Brasil e do fim da insegurança jurídica e de outras barreiras. A pauta mencionada pelo dirigente inclui a reforma tributária e a administrativa.

A maldição dos 2% aparece também, e de modo até mais claro, no documento da OCDE. Vencida a recessão de 2020, a economia deve crescer 2,7% em 2021 e 2,2% em 2022. Os dois números indicam uma compensação parcial do tombo de 2020 e um retorno ao padrão regular de crescimento. Esse padrão, com taxas em torno de 2,5% e em geral mais próximas de 2%, tem predominado nas projeções de longo prazo do FMI. Nas projeções do mercado brasileiro, a mediana para o longo prazo tem ficado normalmente em 2,5%.

Só mudanças importantes na política econômica permitirão escapar desse atoleiro, segundo a OCDE. A economia brasileira terá de avançar sem depender da expansão da força de trabalho, porque a tendência demográfica mudou, e dos preços das commodities. A produtividade terá de ser o motor do crescimento.

Os ganhos de eficiência deverão incluir mudanças nos gastos públicos, com desindexação das despesas, desvinculação de verbas, maior controle da folha salarial e melhor destinação do dinheiro público. Será possível combinar conquistas de produtividade com o ajuste fiscal, por meio da eliminação de subsídios ineficientes e da melhora dos padrões administrativos. A consolidação dos impostos sobre consumo em um único imposto sobre valor agregado deve ser parte da renovação tributária. Abertura econômica e prioridade à educação e à formação profissional podem combinar ganhos de eficiência e redução das desigualdades. Tudo isso envolve redução de privilégios, é politicamente complicado e requer um governo competente e voltado para as grandes questões sociais. Estes detalhes, no entanto, ultrapassam o poder e as atribuições da OCDE.

Fique em casa nas festas de fim de ano – Opinião | O Globo

No encerramento de um 2020 tisnado pela pandemia mortífera, não há espaço para comemorações feéricas

É tempo de Papai Noel — e de coronavírus. As festas de fim de ano se aproximam. Sempre motivo para júbilo, tornaram-se uma enorme preocupação. No encerramento de um 2020 tisnado pela mais devastadora pandemia em cem anos, não há espaço para comemorações feéricas. A Covid-19 já matou mais de 185 mil brasileiros. Uma nova e mortífera onda de contágio já mata mais de mil por dia. A situação do país é crítica e, embora a vacina esteja num horizonte não tão distante, não há espaço para brincar com vidas humanas.

O Observatório Covid-19 BR, iniciativa independente que reúne cerca de 80 cientistas ligados às principais instituições brasileiras de pesquisa, lançou um alerta: “A catástrofe que se anuncia não vai se reverter de forma natural. A lógica de multiplicação de casos é simples e incomplacente: novos casos geram outros novos casos”. No estado do Rio, afirma a análise, as internações aumentam desde outubro. Não há leitos de UTI disponíveis para novos pacientes da doença. Em São Paulo, os índices de lotação já são semelhantes aos registrados em setembro — e crescem. Em Salvador, a ocupação das UTIs está em 75%. Em Santa Catarina, o número de mortes aumentou 300% desde o início de novembro. Minas, Paraná e Rio Grande do Sul têm registrado aumentos diários superiores a 1% nas mortes — um crescimento explosivo.

No Paraná, um dos estados mais atingidos, o Natal será sob toque de recolher. Desde ontem, a medida, que vigorará até o dia 28, restringe a circulação entre 23h e 5h, preservados os serviços essenciais. O governador Ratinho Júnior justificou a decisão apresentando a demanda por leitos exclusivos de Covid-19, superior à capacidade disponível.

As tradicionais comemorações da virada do ano, com aglomerações e gestos de confraternização, representam um risco temerário num momento em que o contágio volta a acelerar em quase todo o país. De forma sensata, cidades suspenderam suas festas oficiais de réveillon. Ainda em julho, a prefeitura de São Paulo anunciou o cancelamento do evento na Avenida Paulista. Naquele mesmo mês, a prefeitura do Rio informou que a tradicional queima de fogos na Praia de Copacabana estava descartada. A ideia era realizar pequenos shows em diferentes pontos da cidade, sem presença de público, transmitidos pela TV e internet. No último dia 15, porém, o prefeito Marcelo Crivella mudou de ideia e disse que não haverá mais comemoração oficial. Mesmo assim, quiosques da orla já preparavam suas festas de réveillon, autorizadas pela prefeitura. O Ministério Público Federal pôs água no champanhe: entrou com uma ação civil contra as autoridades, e a própria prefeitura tratou de proibi-las.

Melhor assim. Nada há para festejar, a não ser o encerramento de um ano que ficará marcado como um dos mais trágicos de nossa história. O Rio já perdeu quase 25 mil vidas para a Covid-19 e registra a maior taxa de mortalidade do país, de acordo com levantamento do MonitoraCovid-19, da Fiocruz (131 óbitos por cem mil habitantes). O aumento nos casos e nas mortes, bem como a dramática falta de leitos para Covid-19 nos hospitais têm sido tratados de forma amadora pelo governador Cláudio Castro e pelo prefeito Crivella. As medidas de restrição para deter a transmissão do vírus foram tímidas e questionáveis.

Mesmo com o cancelamento de eventos, persiste a preocupação com festas particulares e reuniões familiares de Natal e Ano Novo. Não custa lembrar o exemplo dos Estados Unidos, onde os casos explodiram após o tradicional Dia De Ação de Graças. O país já soma mais de 300 mil mortos — quase o total das vítimas das guerras do Vietnã e da Coreia. Na última semana, um só dia registrou 3.611 mortes (nos atentados de 11 de Setembro, morreram 2.977 ao todo). A perspectiva para o Brasil não é menos trágica. “Teremos o janeiro mais triste de nossa história, porque falhamos em trazer uma consciência cívica da gravidade do que estamos vivendo”, afirmou a pneumologista Margareth Dalcolmo no debate “E Agora, Brasil?”.

Não há dúvida de que as reuniões familiares são uma tradição nesta época do ano e de que o cancelamento de festas de réveillon traz prejuízos irrecuperáveis a cidades como o Rio. Mas vive-se um 2020 atípico. Para tomar a vacina que está chegando, será preciso sobreviver. Aglomerações devem ser evitadas a todo custo, e as normas de prevenção, respeitadas para que não se amplie a catástrofe.

Se a festa for inevitável, é fundamental seguir as orientações da Fiocruz para reduzir o risco de contágio em reuniões familiares: limitar as comemorações a quem mora na mesma casa. Para quem for sair, a recomendação é usar máscaras quando não estiver comendo ou bebendo, manter distância de pelo menos dois metros, preferir ambientes ao ar livre, lavar as mãos após usar objetos compartilhados etc.

“Não podemos colocar a perder todo o esforço feito até agora. Com o aumento de casos e a saturação do sistema de saúde em vários estados, somados às festas de final de ano que se aproximam, é imperativo que medidas sejam tomadas com a urgência necessária, de modo que possamos reduzir o número de vidas perdidas”, afirmam os cientistas do Observatório Covid-19 BR. “Fiquemos em casa nesta época que se aproxima. Podemos estabelecer um novo calendário para nossas festas. Fazendo isso, teremos reencontros seguros e felizes em breve, e cada um de nós poderá dizer, às gerações futuras, que fez sua parte na luta contra esta epidemia que tanto nos ameaça.”

Décadas perdidas – Opinião | Folha de S. Paulo

Como nos 1980, país fica mais pobre; desta vez, conta com instituições melhores

O Brasil perdeu a década que chega ao fim. Em termos objetivos e mensuráveis, conforme reportagem publicada nesta Folha, é mais pobre hoje do que há dez anos, condição impensável para um país de tantos atrasos, carências e desigualdades. Entretanto um fracasso dessa magnitude não se limita aos aspectos econômicos.

A considerar só estes, o desastre de agora pode ser tido como menos traumático que o do período 1981-90, a primeira década a merecer o epíteto de perdida —aqui e no restante da América Latina.

Naquele decênio entrava em colapso um modelo de desenvolvimento que proporcionara, desde meados do século 20, taxas aceleradas de expansão industrial, urbanização e enriquecimento, ainda que com distorções e disparidades.

Agora, o país conta com protocolos econômicos para evitar uma explosão inflacionária como a que se seguiu à crise da dívida externa de 40 anos atrás —ao menos até a tempestade perfeita formada pela pandemia, por Jair Bolsonaro e pela necessidade de ajuste fiscal anterior até mesmo a este governo.

No mais, o Brasil se encontra integrado ao comércio e aos mercados financeiros globais; no decênio, ampliou o aparato de seguridade social para minorar os impactos da pobreza e do desemprego.

Rupturas na trajetória de desenvolvimento se correlacionam, de modo inevitável, com abalos nos alicerces políticos e institucionais.

Se a derrocada dos anos 1980 contribuiu para que o término da ditadura fosse menos lento, seguro e gradual do que gostariam os militares, a dos 2010 abrigou a pior recessão desde o restauro da democracia, gestada na desastrosa gestão de Dilma Rousseff.

Houve pane no que parecia um consenso mínimo para o funcionamento do país pós-Constituição de 1988 —a convivência entre um Estado amplo, com missões sociais, e o respeito a normas básicas de responsabilidade econômica, ambos geridos por coalizões partidárias que esvaziavam radicalismos.

Assim se deu ao longo de quatro mandatos presidenciais, divididos entre o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Esse aprendizado em governança, porém, não se mostrou sólido o bastante.

O primeiro pilar a ruir, já no final dos anos Lula, foi o da prudência orçamentária. Uma quadra de prosperidade, impulsionada pela fartura chinesa e global, inebriava o Planalto e encorajava o presidente a escolher uma sucessora que não deveria lhe fazer sombra.

O malogro estrepitoso da gestão Dilma, que converteu alquimia econômica em política pública, fez-se acompanhar da eclosão de mal-estares na sociedade —o que dificilmente terá sido mera coincidência.

As mais notórias e espantosas manifestações do fenômeno foram as jornadas de 2013, quando protestos contra o reajuste de tarifas de transporte coletivo deram origem a uma onda de atos populares, não raro violentos, com as mais difusas bandeiras.

A insatisfação caótica com governantes e legisladores ganharia contornos e alvos mais definidos a partir do ano seguinte, quando a Lava Jato devastou —com méritos indiscutíveis e excessos consideráveis— expressivas parcelas da elite dirigente acusada de corrupção.

No mesmo 2014, a disputa pelo poder se tornaria mais desleal com a reeleição de Dilma —que negou a crise e satanizou ajustes que ela própria proporia sem convicção em seu segundo mandato, atiçando seus cada vez mais numerosos adversários a promover boicotes e sabotagens no Congresso Nacional.

Sucedeu-se o processo de impeachment da petista, que, como temia esta Folha, manteve envenenado o ambiente político, com novas doses de ressentimento e polarização. Àquela altura, estava em curso uma recessão só comparável, talvez, à dos anos 1980.

Reformas urgentes e necessárias feitas surpreendentemente durante a breve gestão de Michel Temer (MDB) se viram prejudicadas pela carência de legitimidade do ex-vice, agravada pela revelação de uma conversa nada republicana sua com um grande empresário.

É notável que também a primeira década perdida tenha chegado aos estertores com a eleição de um aventureiro despreparado que renegava a política tradicional —muito embora Fernando Collor, deposto em 1992, pareça hoje um aprendiz comparado a Jair Bolsonaro.

A diferença entre aquela década e a atual é que esta se beneficia do legado da estabilidade econômica das gestões de FHC e de Lula. Sob o duo fortaleceu-se a democracia, que funciona, e aperfeiçoou-se o sistema de freios e contrapesos, que evoluíram quase ao nível de um país desenvolvido.

Espera-se que, além do que mal que já fez no combate à pandemia, Bolsonaro não coloque também essas conquistas a perder.

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