Ali
se verifica que Jair Bolsonaro tem muitas prioridades e que a saúde dos
brasileiros definitivamente não está entre elas
O presidente da República, Jair Bolsonaro, como se não tivesse nada mais importante com o que se ocupar em meio a uma pandemia e a uma grave crise econômica e social, encontrou tempo em sua agenda para reinaugurar a Torre do Relógio da Ceagesp, na zona oeste da capital paulista, na terça-feira passada.
O
monumento foi reformado e pintado de verde e amarelo pelos comerciantes da
Ceagesp – cujo presidente, Ricardo Mello Araújo, um coronel da reserva da
Polícia Militar nomeado por Bolsonaro, mandou que os funcionários recebessem o
presidente vestindo verde e amarelo, bem ao gosto do ufanismo
bolsonarista.
Bolsonaro
gosta de inaugurações. Vem se dedicando a elas bem mais do que às reuniões com
o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, supostamente responsável pelos esforços
federais de combate à pandemia de covid-19.
Na
agenda de Bolsonaro, disponível no site da Presidência, observa-se que até o
dia 15 passado o presidente teve apenas 5 audiências com o ministro desde 16 de
setembro, quando foi oficializado como titular da Saúde. Em compensação,
Bolsonaro esteve presente a 10 inaugurações nesse período, em várias partes do
País – numa delas, no Rio Grande do Sul, ficou mais de dez minutos acenando a
motoristas na beira da estrada.
Mas o presidente não vive só de inaugurações. A agenda mostra que Bolsonaro tem especial preferência por cerimônias de caráter militar – foram 10 desde a posse do ministro Pazuello – e também por eventos que reúnem policiais – contam-se 4 desses encontros no período. No último deles, dia 14 passado, prestigiou a formatura de delegados da Polícia Federal, em que estava especialmente confortável – à plateia embevecida contou que teve que se empenhar muito para conseguir os recursos necessários para autorizar a convocação dos concursados, pois “o pessoal lá (no Ministério da Economia) só tem cifrão na frente dos olhos”.
Compreende-se
que Bolsonaro se sinta muito mais à vontade sendo adulado e inaugurando obras
que podem lhe dar votos do que em reuniões para falar do desastre da pandemia,
sobre o qual o presidente recusa qualquer responsabilidade. Mas a agenda
presidencial revela bem mais que isso: ali se verifica, na prática, que
Bolsonaro tem muitas prioridades e que a saúde dos brasileiros definitivamente
não está entre elas.
O
presidente, por exemplo, dedicou cinco dias de sua agenda desde 16 de setembro
a encontros com líderes evangélicos. Além disso, no mesmo dia em que finalmente
dava alguma atenção ao ministro Pazuello, Bolsonaro encontrou uma brecha para
conversar, durante meia hora, com um lutador de MMA. Em outra ocasião, que já
tem lugar assegurado na antologia dos maiores vexames da história presidencial,
Bolsonaro inaugurou uma exposição dos trajes que ele e a primeira-dama usaram
na posse.
Se
isso não basta para determinar quais são as preocupações do presidente, a
agenda fornece mais algumas pistas: enquanto o ministro Pazuello foi praticamente
esquecido por Bolsonaro, outros ministros receberam atenção especial. Paulo
Guedes, da Economia, por exemplo, foi recebido 24 vezes pelo presidente no
período, uma ilustração da preferência de Bolsonaro pela economia na crise
causada pela pandemia.
Se
o desastre econômico talvez sirva como desculpa para a maior atenção de
Bolsonaro a Paulo Guedes, não há justificativa plausível para que o presidente
tenha realizado 10 reuniões com seu chanceler Ernesto Araújo, o dobro do número
de reuniões que teve com o ministro Pazuello, sem qualquer resultado prático
além do crescente isolamento do Brasil no exterior. Também é difícil entender
por que razão Bolsonaro se reuniu mais vezes com o ministro da Defesa, Fernando
Azevedo – foram 11 encontros –, sendo que a maior ameaça ao Brasil é o vírus, e
não um agressor externo.
O
ministro Pazuello já é o terceiro a ocupar o cargo no governo Bolsonaro.
Malgrado seu imenso despreparo – ou talvez em razão disso –, foi colocado lá
para não atrapalhar os projetos eleitorais do presidente. Assim, sendo apenas
um ministro decorativo, recebe do presidente a atenção que merece.
A destruição da política externa – Opinião | O Estado de S. Paulo
O
País nunca esteve tão isolado e os interesses nacionais nunca foram tão mal
defendidos
A primeira metade do mandato do presidente Bolsonaro foi marcada, entre outras notas negativas, pela incapacidade de realização. Jair Bolsonaro simplesmente não entregou o que prometeu. Essa ineficácia é evidente, por exemplo, nas anunciadas privatizações, que não saíram do papel, e no cada vez mais distante equilíbrio fiscal, outra promessa de campanha. Incapaz de construir o que quer que seja, o governo de Jair Bolsonaro tem sido, no entanto, eficiente na destruição de importantes legados nacionais, como é o caso da política externa.
O
País nunca esteve tão isolado internacionalmente e, o mais grave, os interesses
nacionais nunca foram tão mal defendidos. Essa infeliz proeza do presidente
Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ficou evidente
por dois fatos recentes.
De
forma reiterada, o governo brasileiro deixou de cumprir suas obrigações financeiras
com a Organização das Nações Unidas (ONU) e outros organismos internacionais.
Só a dívida com as Nações Unidas soma cerca de US$ 390 milhões. A situação
chegou a tal ponto que, para continuar exercendo seu direito de voto na ONU em
2021, o governo tem de pagar ao menos US$ 113,5 milhões à entidade até o fim de
2020.
Atualmente,
apenas três países-membros da ONU encontram-se na situação de endividamento
capaz de afetar o direito de voto: Somália, Ilhas Comores e São Tomé e
Príncipe. Mais do que da falta de dinheiro, a situação constrangedora de
endividamento é fruto do descaso do governo federal com os compromissos
internacionais. Imbuído do seu engodo isolacionista, o presidente Bolsonaro
simplesmente não atuou para obter do Legislativo as devidas autorizações
orçamentárias.
No
dia 17 de dezembro, o Legislativo socorreu a desídia do Executivo e liberou
crédito suplementar para pagar R$ 917 milhões em dívidas com organismos
internacionais. A ação do Congresso evitou, assim, um vexame internacional.
Seria a primeira vez que o Brasil, por não honrar seu compromisso, perderia seu
direito de voto na ONU.
O
segundo episódio refere-se à rejeição do Senado à indicação do embaixador Fabio
Mendes Marzano para ocupar a posição de delegado permanente do Brasil nas
Nações Unidas, na Suíça. A reprovação em si é um fato raro. O Senado tem
histórico de especial tolerância com as escolhas do Palácio do Planalto, seja
quem for o seu ocupante.
Mas
a rejeição do nome indicado por Jair Bolsonaro foi ainda mais insólita em razão
da ampla diferença de votos. Foram 37 votos contrários e 9 favoráveis,
evidenciando a profunda insatisfação do Legislativo com a política externa do
governo Bolsonaro. “Isso indica recado político, uma indicação de um humor
político do Senado em relação à política externa brasileira”, disse Aloysio
Nunes, que foi senador e ministro das Relações Exteriores no governo de Michel
Temer.
A
sujeição da política externa à chamada pauta ideológica bolsonarista – desde a
adesão a teorias da conspiração e a submissão a interesses de Donald Trump até
o puro negacionismo de questões ambientais – tem criado sérios problemas aos
interesses nacionais. O agronegócio é um dos setores que sentem diretamente os
efeitos desse absurdo enviesamento da política externa, que, em vez de ampliar
a inserção do Brasil no mercado e nas cadeias produtivas internacionais, cria,
por exemplo, problemas desnecessários com a China, maior parceiro comercial do
País.
A
rejeição do Senado ao nome indicado por Jair Bolsonaro é, portanto, manifesta
tentativa de dar um basta ao despropósito instaurado no Itamaraty. “Foi um
sinal político inequívoco”, disse Celso Lafer, que foi ministro das Relações
Exteriores no governo de FHC.
O
País não tem condições de seguir arcando com os altos custos da política
externa de Jair Bolsonaro, que vem causando insistentemente prejuízo aos
interesses nacionais. A necessária mudança de rumo e de propósito – construir
em vez de destruir – passa inequivocamente pela substituição do atual ministro
das Relações Exteriores. Seu intento de tornar o País um pária internacional
precisa ser interrompido o quanto antes.
A maldição dos dois por cento – Opinião | O Estado de S. Paulo
Só
reformas livrarão o Brasil da praga do baixo crescimento, repetem CNI e OCDE
O Brasil estará condenado a um crescimento medíocre, raramente acima da casa dos 2%, enquanto faltarem reformas para tornar o País mais eficiente e mais competitivo. Sobre isso concordam analistas do mercado e de entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE). Com baixo potencial produtivo, a economia brasileira até poderá, de vez em quando, correr na faixa de 3% a 4%, talvez um pouco acima disso, mas será incapaz de sustentar esse ritmo por vários anos. Essa avaliação, confirmada pelos fatos há muito tempo, acaba de ser reiterada por economistas da CNI e da OCDE.
Contração
de 4,3% neste ano e crescimento de 4% no próximo são as novas estimativas da
CNI. São números parecidos com os do governo. As avaliações apresentadas pela
OCDE no relatório anual a respeito do Brasil são mais sombrias, pelo menos à
primeira vista. Segundo esses cálculos, o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano
deve ser 5% menor que o de 2019. Para 2021 se projeta expansão de 2,6%.
O
balanço de 2020 é apresentado em termos positivos pelas duas instituições.
Políticas de apoio ao setor privado e às famílias mais vulneráveis evitaram um
desastre maior. Mas essas políticas tiveram enorme custo fiscal. O déficit
primário (calculado sem juros) aumentou muito, a dívida pública ultrapassou 90%
do PIB e essa relação deverá crescer nos próximos anos. Será preciso, ao mesmo
tempo, consertar finanças públicas severamente avariadas em 2020 e cuidar das
condições de crescimento econômico.
A
recuperação em 2021 será marcada, segundo o estudo da CNI, por avanço na pauta
de reformas e continuação da retomada econômica. Nesse quadro, o PIB já seria
2,8% maior que o de 2020 se a atividade se mantivesse no nível deste fim de
ano. Seria o efeito do chamado carregamento estatístico. Mas deve haver, além
disso, um pouco mais de dinamismo, e isso levará à expansão de 4%. Mas como
ficarão os anos seguintes?
O
desafio, responde o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, é a transição
da retomada para o crescimento sustentável acima de 2%. Essa transição tem de
começar já em 2021. A passagem dependerá da eliminação do custo Brasil e do fim
da insegurança jurídica e de outras barreiras. A pauta mencionada pelo
dirigente inclui a reforma tributária e a administrativa.
A
maldição dos 2% aparece também, e de modo até mais claro, no documento da OCDE.
Vencida a recessão de 2020, a economia deve crescer 2,7% em 2021 e 2,2% em
2022. Os dois números indicam uma compensação parcial do tombo de 2020 e um
retorno ao padrão regular de crescimento. Esse padrão, com taxas em torno de
2,5% e em geral mais próximas de 2%, tem predominado nas projeções de longo
prazo do FMI. Nas projeções do mercado brasileiro, a mediana para o longo prazo
tem ficado normalmente em 2,5%.
Só
mudanças importantes na política econômica permitirão escapar desse atoleiro,
segundo a OCDE. A economia brasileira terá de avançar sem depender da expansão
da força de trabalho, porque a tendência demográfica mudou, e dos preços das
commodities. A produtividade terá de ser o motor do crescimento.
Os
ganhos de eficiência deverão incluir mudanças nos gastos públicos, com
desindexação das despesas, desvinculação de verbas, maior controle da folha
salarial e melhor destinação do dinheiro público. Será possível combinar
conquistas de produtividade com o ajuste fiscal, por meio da eliminação de
subsídios ineficientes e da melhora dos padrões administrativos. A consolidação
dos impostos sobre consumo em um único imposto sobre valor agregado deve ser
parte da renovação tributária. Abertura econômica e prioridade à educação e à
formação profissional podem combinar ganhos de eficiência e redução das
desigualdades. Tudo isso envolve redução de privilégios, é politicamente
complicado e requer um governo competente e voltado para as grandes questões
sociais. Estes detalhes, no entanto, ultrapassam o poder e as atribuições da
OCDE.
Fique em casa nas festas de fim de ano – Opinião | O Globo
No
encerramento de um 2020 tisnado pela pandemia mortífera, não há espaço para
comemorações feéricas
É
tempo de Papai Noel — e de coronavírus. As festas de fim de ano se aproximam.
Sempre motivo para júbilo, tornaram-se uma enorme preocupação. No encerramento
de um 2020 tisnado pela mais devastadora pandemia em cem anos, não há espaço
para comemorações feéricas. A Covid-19 já matou mais de 185 mil brasileiros.
Uma nova e mortífera onda de contágio já mata mais de mil por dia. A situação
do país é crítica e, embora a vacina esteja num horizonte não tão distante, não
há espaço para brincar com vidas humanas.
O
Observatório Covid-19 BR, iniciativa independente que reúne cerca de 80
cientistas ligados às principais instituições brasileiras de pesquisa, lançou
um alerta: “A catástrofe que se anuncia não vai se reverter de forma natural. A
lógica de multiplicação de casos é simples e incomplacente: novos casos geram
outros novos casos”. No estado do Rio, afirma a análise, as internações
aumentam desde outubro. Não há leitos de UTI disponíveis para novos pacientes
da doença. Em São Paulo, os índices de lotação já são semelhantes aos
registrados em setembro — e crescem. Em Salvador, a ocupação das UTIs está em
75%. Em Santa Catarina, o número de mortes aumentou 300% desde o início de
novembro. Minas, Paraná e Rio Grande do Sul têm registrado aumentos diários
superiores a 1% nas mortes — um crescimento explosivo.
No
Paraná, um dos estados mais atingidos, o Natal será sob toque de recolher.
Desde ontem, a medida, que vigorará até o dia 28, restringe a circulação entre
23h e 5h, preservados os serviços essenciais. O governador Ratinho Júnior
justificou a decisão apresentando a demanda por leitos exclusivos de Covid-19,
superior à capacidade disponível.
As
tradicionais comemorações da virada do ano, com aglomerações e gestos de
confraternização, representam um risco temerário num momento em que o contágio
volta a acelerar em quase todo o país. De forma sensata, cidades suspenderam
suas festas oficiais de réveillon. Ainda em julho, a prefeitura de São Paulo
anunciou o cancelamento do evento na Avenida Paulista. Naquele mesmo mês, a
prefeitura do Rio informou que a tradicional queima de fogos na Praia de
Copacabana estava descartada. A ideia era realizar pequenos shows em diferentes
pontos da cidade, sem presença de público, transmitidos pela TV e internet. No
último dia 15, porém, o prefeito Marcelo Crivella mudou de ideia e disse que
não haverá mais comemoração oficial. Mesmo assim, quiosques da orla já
preparavam suas festas de réveillon, autorizadas pela prefeitura. O Ministério
Público Federal pôs água no champanhe: entrou com uma ação civil contra as
autoridades, e a própria prefeitura tratou de proibi-las.
Melhor
assim. Nada há para festejar, a não ser o encerramento de um ano que ficará
marcado como um dos mais trágicos de nossa história. O Rio já perdeu quase 25
mil vidas para a Covid-19 e registra a maior taxa de mortalidade do país, de
acordo com levantamento do MonitoraCovid-19, da Fiocruz (131 óbitos por cem mil
habitantes). O aumento nos casos e nas mortes, bem como a dramática falta de
leitos para Covid-19 nos hospitais têm sido tratados de forma amadora pelo
governador Cláudio Castro e pelo prefeito Crivella. As medidas de restrição
para deter a transmissão do vírus foram tímidas e questionáveis.
Mesmo
com o cancelamento de eventos, persiste a preocupação com festas particulares e
reuniões familiares de Natal e Ano Novo. Não custa lembrar o exemplo dos
Estados Unidos, onde os casos explodiram após o tradicional Dia De Ação de
Graças. O país já soma mais de 300 mil mortos — quase o total das vítimas das
guerras do Vietnã e da Coreia. Na última semana, um só dia registrou 3.611
mortes (nos atentados de 11 de Setembro, morreram 2.977 ao todo). A perspectiva
para o Brasil não é menos trágica. “Teremos o janeiro mais triste de nossa
história, porque falhamos em trazer uma consciência cívica da gravidade do que
estamos vivendo”, afirmou a pneumologista Margareth Dalcolmo no debate “E
Agora, Brasil?”.
Não
há dúvida de que as reuniões familiares são uma tradição nesta época do ano e
de que o cancelamento de festas de réveillon traz prejuízos irrecuperáveis a
cidades como o Rio. Mas vive-se um 2020 atípico. Para tomar a vacina que está
chegando, será preciso sobreviver. Aglomerações devem ser evitadas a todo
custo, e as normas de prevenção, respeitadas para que não se amplie a
catástrofe.
Se
a festa for inevitável, é fundamental seguir as orientações da Fiocruz para
reduzir o risco de contágio em reuniões familiares: limitar as comemorações a
quem mora na mesma casa. Para quem for sair, a recomendação é usar máscaras
quando não estiver comendo ou bebendo, manter distância de pelo menos dois
metros, preferir ambientes ao ar livre, lavar as mãos após usar objetos
compartilhados etc.
“Não
podemos colocar a perder todo o esforço feito até agora. Com o aumento de casos
e a saturação do sistema de saúde em vários estados, somados às festas de final
de ano que se aproximam, é imperativo que medidas sejam tomadas com a urgência
necessária, de modo que possamos reduzir o número de vidas perdidas”, afirmam
os cientistas do Observatório Covid-19 BR. “Fiquemos em casa nesta época que se
aproxima. Podemos estabelecer um novo calendário para nossas festas. Fazendo
isso, teremos reencontros seguros e felizes em breve, e cada um de nós poderá
dizer, às gerações futuras, que fez sua parte na luta contra esta epidemia que
tanto nos ameaça.”
Décadas perdidas – Opinião | Folha de S. Paulo
Como
nos 1980, país fica mais pobre; desta vez, conta com instituições melhores
O
Brasil perdeu a década que chega ao fim. Em termos objetivos e mensuráveis,
conforme reportagem publicada nesta Folha, é mais pobre hoje do que há dez
anos, condição impensável para um país de tantos atrasos, carências e
desigualdades. Entretanto um fracasso dessa magnitude não se limita aos
aspectos econômicos.
A
considerar só estes, o desastre de agora pode ser tido como menos traumático
que o do período 1981-90, a primeira década a merecer o epíteto de perdida
—aqui e no restante da América Latina.
Naquele
decênio entrava em colapso um modelo de desenvolvimento que proporcionara,
desde meados do século 20, taxas aceleradas de expansão industrial, urbanização
e enriquecimento, ainda que com distorções e disparidades.
Agora,
o país conta com protocolos econômicos para evitar uma explosão inflacionária
como a que se seguiu à crise da dívida externa de 40 anos atrás —ao menos até a
tempestade perfeita formada pela pandemia, por Jair Bolsonaro e pela
necessidade de ajuste fiscal anterior até mesmo a este governo.
No
mais, o Brasil se encontra integrado ao comércio e aos mercados financeiros
globais; no decênio, ampliou o aparato de seguridade social para minorar os
impactos da pobreza e do desemprego.
Rupturas
na trajetória de desenvolvimento se correlacionam, de modo inevitável, com
abalos nos alicerces políticos e institucionais.
Se
a derrocada dos anos 1980 contribuiu para que o término da ditadura fosse menos
lento, seguro e gradual do que gostariam os militares, a dos 2010 abrigou a
pior recessão desde o restauro da democracia, gestada na desastrosa gestão de
Dilma Rousseff.
Houve
pane no que parecia um consenso mínimo para o funcionamento do país
pós-Constituição de 1988 —a convivência entre um Estado amplo, com missões
sociais, e o respeito a normas básicas de responsabilidade econômica, ambos
geridos por coalizões partidárias que esvaziavam radicalismos.
Assim
se deu ao longo de quatro mandatos presidenciais, divididos entre o tucano
Fernando Henrique Cardoso e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Esse
aprendizado em governança, porém, não se mostrou sólido o bastante.
O
primeiro pilar a ruir, já no final dos anos Lula, foi o da prudência
orçamentária. Uma quadra de prosperidade, impulsionada pela fartura chinesa e
global, inebriava o Planalto e encorajava o presidente a escolher uma sucessora
que não deveria lhe fazer sombra.
O
malogro estrepitoso da gestão Dilma, que converteu alquimia econômica em
política pública, fez-se acompanhar da eclosão de mal-estares na sociedade —o
que dificilmente terá sido mera coincidência.
As
mais notórias e espantosas manifestações do fenômeno foram as jornadas de 2013,
quando protestos contra o reajuste de tarifas de transporte coletivo deram
origem a uma onda de atos populares, não raro violentos, com as mais difusas
bandeiras.
A
insatisfação caótica com governantes e legisladores ganharia contornos e alvos
mais definidos a partir do ano seguinte, quando a Lava Jato devastou —com
méritos indiscutíveis e excessos consideráveis— expressivas parcelas da elite
dirigente acusada de corrupção.
No
mesmo 2014, a disputa pelo poder se tornaria mais desleal com a reeleição de
Dilma —que negou a crise e satanizou ajustes que ela própria proporia sem
convicção em seu segundo mandato, atiçando seus cada vez mais numerosos
adversários a promover boicotes e sabotagens no Congresso Nacional.
Sucedeu-se
o processo de impeachment da petista, que, como temia esta Folha, manteve
envenenado o ambiente político, com novas doses de ressentimento e polarização.
Àquela altura, estava em curso uma recessão só comparável, talvez, à dos anos
1980.
Reformas
urgentes e necessárias feitas surpreendentemente durante a breve gestão de
Michel Temer (MDB) se viram prejudicadas pela carência de legitimidade do
ex-vice, agravada pela revelação de uma conversa nada republicana sua com um
grande empresário.
É
notável que também a primeira década perdida tenha chegado aos estertores com a
eleição de um aventureiro despreparado que renegava a política tradicional
—muito embora Fernando Collor, deposto em 1992, pareça hoje um aprendiz
comparado a Jair Bolsonaro.
A
diferença entre aquela década e a atual é que esta se beneficia do legado da
estabilidade econômica das gestões de FHC e de Lula. Sob o duo fortaleceu-se a
democracia, que funciona, e aperfeiçoou-se o sistema de freios e contrapesos,
que evoluíram quase ao nível de um país desenvolvido.
Espera-se que, além do que mal que já fez no combate à pandemia, Bolsonaro não coloque também essas conquistas a perder.
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