Governo
não moveu uma palha para evitar a perda do poder de voto do Brasil na ONU
Em
seu livro de memórias Promessa de Pai, o presidente eleito Joe Biden reflete
sobre o papel central das relações pessoais na política em geral e na política
externa em particular.
“Acredito
que toda política é pessoal porque, no fundo, a política depende de confiança,
e a menos que você possa estabelecer uma relação pessoal, é terrivelmente
difícil construir confiança”, escreve Biden. “Isso é especialmente verdadeiro
em política externa, porque pessoas de países diferentes normalmente sabem
pouco umas sobre as outras, e têm pouca história e experiência
compartilhadas.”
Durante a campanha de 2016, Donald Trump ameaçou não cumprir o acordo de defesa mútua com o Japão, argumentando que o país se tornara rico o suficiente para não depender do contribuinte americano para sua proteção. Essa posição representava uma ameaça existencial para o Japão. A Constituição do país proíbe suas forças militares de executar ações ofensivas (e portanto dissuasivas), por exigência justamente dos EUA, que entraram na 2.ª Guerra depois do ataque japonês a Pearl Harbour, e das outras potências aliadas.
Além
disso, o presidente americano retiraria os EUA da Parceria Trans-Pacífico,
desenhada por seu antecessor, Barack Obama, para isolar a China e
estreitar as relações comerciais com as outras economias do Pacífico, sobretudo
o Japão. E ainda ameaçava sobretaxar os produtos japoneses.
Trump
representa o oposto da cultura japonesa, que valoriza a discrição, a modéstia e
o comedimento. O então primeiro-ministro, Shinzo Abe, não tinha nenhum motivo
para se sentir feliz com sua eleição. Mas tinha um país para proteger da
rivalidade da China e das duas Coreias.
Abe
foi o primeiro governante a se reunir com Trump, apenas 11 dias depois das
eleições americanas. Seguiram-se muitos encontros. Abe se tornou parceiro de
golfe de Trump. Lustrou seu ego. Foi o governante com o maior número de
reuniões com o presidente americano.
Trump
se comprometeu com a defesa do Japão e as disputas comerciais se resolveram com
o tempo. Abe é um nacionalista de direita, mas nutriu, antes disso, excelente
relação com o governo Obama. Ele se ajustou à realidade, mirando os interesses
nacionais do Japão.
Como
Abe em 2016, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta agora um sério contencioso
com o presidente eleito dos EUA, que durante a campanha disse que imporia
sanções ao Brasil por causa do desmatamento da Amazônia. Bolsonaro dobrou a
aposta, falando em “pólvora quando acaba a diplomacia”, foi o penúltimo
governante a reconhecer a eleição de Biden (à frente só de Kim Jong-un, da
Coreia do Norte), e agora seu governo anuncia que, até a posse dia 20 de
janeiro, os contatos serão só na esfera diplomática.
Se
o secretário de Relações Exteriores da Câmara, Alex Manente, não tivesse
lido na imprensa que o Brasil perderia o poder de voto na ONU a partir de 1.º
de janeiro, por inadimplência, o Congresso teria entrado em recesso sem
destinar recursos para pagar a parcela mínima da dívida - US$ 113 milhões,
equivalente a uma anuidade.
Manente
consultou o chanceler Ernesto Araújo sobre a questão no dia 17 de
novembro. Araújo respondeu no dia 10, detalhando as dívidas do Brasil com
organismos multilaterais, incluindo entidades ligadas ao agronegócio, que somam
R$ 2,8 bilhões. Na quinta-feira, penúltimo dia de sessão do Congresso antes do
recesso, foi aprovada a destinação de R$ 917 milhões, sem qualquer dificuldade:
317 votos a favor e 2 contra.
O governo não moveu uma palha para evitar a perda do poder de voto na ONU. Portanto, não é que ele prefira o multilateralismo em detrimento das relações bilaterais, o que em si seria um erro, já que ambos são complementares e não excludentes. Simplesmente, o Brasil não tem uma política externa.
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