O
saldo dos dois anos do governo Bolsonaro é trágico: da economia à política, da
cultura aos exemplos que os líderes precisam expressar, quase nada do que se
fez ou foi prometido pode ser aproveitado. Só não é pior porque muito do que se
pretendeu fazer agravaria ainda mais a situação caso fosse efetivado, são os
exemplos da pauta de costumes ou da agenda de Segurança Pública, compromissos
do presidente com sua base mais fundamentalista e radical. Contudo, é claro,
nada do que disse este parágrafo é consenso; e uma questão importante é
compreender o porquê.
O presidente e seus aliados argumentam que o saldo negativo deve ser debitado da conta da oposição – que não existiu –, do espantalho de um “globalismo-comunista” (de ficção), da pandemia que paralisou o mundo em 2020. De fato, o ano foi marcante em todo planeta, em virtude da covid-19. Naturalmente, desse choque decorreram crises econômicas e sociais, tornando esse o período mais dramático desde a segunda guerra mundial, pelo menos. Mas, no Brasil, por inacreditável que pudesse parecer, o presidente e os seus conseguiram agravar a situação.
Acelerando
o processo, a pandemia escancarou a miséria política nacional e revelou que o
Brasil é um país que não apenas não tem governo, como há um grupo que imagina
governá-lo, tornando o ambiente ainda mais caótico; fazendo das múltiplas
crises questões de difícil superação, como que acreditando que para sair de um
buraco é necessário cavar mais fundo. Um grupo que investe na desconstrução do
país, sem saber o que edificar para proveito de uma sociedade mais ampla e
moderna que seus acólitos.
Assim,
o saldo de dois anos de governo revela com crueza algo muito pior do que
promessas não cumpridas: 2020 encerra uma década perdida, uma década de
desatinos e retrocessos, que chegou ao seu final com o país dirigido por um
presidente da República incapaz, que, por conta do desconforto dessa
situação, tem sido tratado pelas elites e pelas instituições como inimputável;
um parente incômodo e desagradável que não pode ser colocado para fora da festa
da família, pois, afinal, existem laços (políticos) que não se quer (ou não se
pode) desatar. E que laços seriam esses?
A
verdade é que Bolsonaro não está só. Embora evidente, o saldo negativo é tido
por uma parcela (delirante) da sociedade brasileira como positivo, e assim o
saúda e o defende, sendo irredutível no apoio ao desastre. São setores
multifacetados: uns, vítimas da 4ª. Revolução, ressentidos com o Estado, com a
democracia e a política que de fato os esqueceu ou os pune, na irredutibilidade
da crise econômica, na precariedade do próprio Estado, na ineficiência dos
serviços essenciais e das políticas públicas.
Outros
que, por índole pessoal e cultural, trazem o gosto de sangue na boca e
acreditam nas soluções fáceis e brutas, defendendo o uso irracional da força a
partir de um mítico messias gestado no ventre da barbárie social e política. E
ainda outros, enfeitiçados pelo canto do ultraliberalismo oco e improdutivo,
quando confrontado com os desafios do século 21.
É
preciso encarar os fatos, o levantamento mais profundo – que cruza desempenho
governamental com dados de pesquisas de aprovação ao governo — demonstra que o
saldo desses dois anos é ainda mais negativo do que a evidência das promessas
não realizadas. Ele revela o desconforto de um nó político: Bolsonaro não
demonstra desempenho administrativo, econômico, social e político que
justifique a despesa dos cofres públicos consigo, seu grupo e sua família. Mas,
expressando o caos e vocalizando o vazio, é representativo de uma década em que
o país se perdeu e que custa a se reencontrar em vista fragmentação e do
esfacelamento das demais forças políticas. E isso torna a todos responsáveis.
*Carlos
Melo, cientista político. Professor do Insper.
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