EDITORIAIS
Reação
ao golpismo
Folha
de S. Paulo
Movimento
de Fux reduz a crise, mas Bolsonaro deve responder às instituições
Jair
Bolsonaro, que recebe do erário R$ 30.934,70 mensais para desempenhar a tarefa
de presidir o país e mais R$ 10.703,78 como capitão reformado do Exército, não
se considera um servidor público.
Foi
esse o argumento que lhe ocorreu para sustentar que não deveria ser acusado de
prevaricação —crime pelo qual será alvo de um inquérito da Polícia Federal, sob
suspeita de ter se omitido após tomar ciência de indícios de corrupção no
Ministério da Saúde.
Bolsonaro,
é fato, não obedece aos limites e às responsabilidades do cargo, nem diferencia
os interesses do país de seus próprios, de seus familiares e agregados. Prefere
servir-se do Estado a servi-lo.
Por desconhecer a noção de impessoalidade da função pública, o mandatário foi chamado para uma conversa conciliatória pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, na segunda-feira (12). O magistrado promoveu o encontro, relata-se, para que fossem debatidos os limites impostos pela Constituição ao exercício do poder.
Uma
manobra precária, sem dúvida, mas talvez o recurso possível para evitar a piora
da crise provocada pelos sucessivos ataques de Bolsonaro à Justiça Eleitoral,
acompanhados de acusações farsescas de fraudes em pleitos passados.
À
saída do encontro viu-se um Bolsonaro menos truculento, que aceitou responder
às perguntas de jornalistas —embora tenha ameaçado encerrar a entrevista ante
um questionamento incômodo. Foi nessa ocasião que elucubrou sobre não ser
servidor público, negou a prevaricação e chamou os presentes a rezar um
pai-nosso.
Talvez
pareça reconfortante vê-lo a exibir pouco mais que a habitual confusão de
ideias e um despreparo para o posto que chega ao folclórico. Inexiste motivo,
no entanto, para que se baixe a guarda.
O
que o presidente da República faz é gravíssimo. Mente de forma descarada à
nação para pôr em dúvida a legitimidade das eleições e ameaça não aceitar o
resultado das urnas em 2022. Trata-se de afronta à lei diante da qual as
instituições não podem ficar inertes.
É
mais um crime de responsabilidade em potencial a exigir a atenção do presidente
da Câmara dos Deputados, responsável por dar andamento a processos de
impeachment —sem desconhecer aqui os muitos percalços políticos envolvidos em
tal procedimento.
Ao
procurador-geral da República, Augusto Aras, não competem considerações dessa
natureza, muito menos as relativas a afinidades com o presidente. É seu dever
investigar o chefe de governo por abuso de poder, como aliás já cobram
integrantes do Conselho Superior do Ministério Público Federal.
Que
Bolsonaro responda formalmente por sua lorota golpista, bem como pela
negligência na pandemia, de extensão ainda ignorada.
Apagão
da ditadura
Folha
de S. Paulo
Ante
protestos populares inauditos, Cuba recorre à repressão e corte da internet
Havia
muito não se registrava em Cuba algo parecido. No domingo (11), as ruas de
Havana e de diversas outras localidades da ilha foram tomadas
por gritos de “liberdade” e “abaixo a ditadura”, nas maiores
manifestações populares desde o começo dos anos 1990, quando o fim da União
Soviética levou a economia local à bancarrota.
O
motivo da raiva dos cubanos também é parecido com o de décadas atrás. Protestam
sobretudo contra as condições de vida precárias e a dramática escassez de
produtos, ambas agravadas neste período de pandemia.
Iniciadas
no pequeno município de San Antonio de los Baños, onde centenas de pessoas
saíram exigindo vacinas para a Covid-19 e protestando contra os longos apagões
de eletricidade, as manifestações transmutaram-se em demandas por liberdade e
ataques ao regime.
Enquanto
os atos se espalhavam pelo país, o presidente Miguel Díaz-Canel apressou-se a ir
à televisão culpar os inimigos de sempre: o embargo econômico e os Estados
Unidos, que estariam fomentando a revolta popular.
Se
é verdade que o anacrônico bloqueio econômico e financeiro estabelecido na
Guerra Fria contribui para as dificuldades de Cuba, também é fato que, desde
então, tem servido às autoridades da ilha para justificar todas as desgraças
produzidas por décadas de fracassado planejamento estatal.
Historicamente
frágil, a economia cubana soçobrou com o advento da pandemia. O Produto Interno
Bruto do país encolheu impressionantes 11% no ano passado, muito em razão do
colapso do setor de turismo, uma das principais fontes de renda da população.
Minguaram
as remessas de dólares enviadas por cubanos radicados no exterior para suas
famílias. Escassearam alimentos e remédios.
Não
bastasse a calamidade econômica, a população sofre com o recrudescimento da
pandemia. O país registrou nos últimos dias recordes de casos e mortes.
Previsivelmente,
a ditadura agiu para sufocar a multidão dissonante. Díaz-Canel convocou “os
revolucionários” do país a combater os manifestantes —muitos dos quais foram
presos— e promoveu um grotesco
corte da internet.
Também
na incapacidade de aprender do regime, bem como de seus apoiadores na esquerda
brasileira e mundial, os eventos de agora se parecem com os do passado.
Governo
fez da reforma tributária uma gincana
O Globo
Depois
da saraivada de críticas ao projeto do Ministério da Economia, o deputado Celso
Sabino (PSDB-PA) apresentou ontem seu substitutivo para a segunda fase da
reforma tributária fatiada que o governo tem tentado pôr em marcha no
Congresso. No mesmo dia, o deputado Luiz Carlos Motta (PL-SP), relator da
primeira fase (a proposta tímida apresentada um ano atrás), informou que ela só
deverá ir a votação depois do recesso parlamentar. A esta altura, é
absolutamente imprevisível o que o Congresso fará e como ficarão os impostos
que cidadãos e empresas passarão a pagar.
O
objetivo declarado é simplificar o sistema de tributação mais complexo e
custoso do mundo, tornar os impostos mais justos sem aumentar a carga
tributária. Ao entregar seu substitutivo, que trata do Imposto de Renda, Sabino
falou num corte de R$ 30 bilhões na carga sobre os contribuintes. O presidente
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aventava R$ 50 bilhões. Até agora, porém, tudo
o que as propostas trouxeram foi uma enorme confusão.
Em
vez de apresentar estudos técnicos transparentes, com as alternativas de
taxação possíveis, seus impactos na vida dos contribuintes e no caixa do
governo, preferiu-se uma solução opaca e cheia de defeitos, como reconheceu o
próprio ministro Paulo Guedes. Dois pontos em particular despertaram
controvérsia: 1) para as pessoas físicas, as mudanças nos critérios para uso da
declaração simplificada; 2) para as jurídicas, a recriação do imposto sobre
dividendos distribuídos. Apenas nesta semana a Receita Federal foi capaz de apresentar
as estimativas de impacto de algumas mudanças sugeridas.
A
primeira medida, segundo a Receita, atinge em cheio 7,5 milhões de
contribuintes de classe média, com renda anual entre R$ 40 mil e R$ 84 mil.
Para o Fisco, essa faixa representará arrecadação adicional de R$ 32 bilhões
até 2024. O aumento nas isenções para 5,2 milhões em faixas inferiores
consumirá essa arrecadação, resultando num déficit de R$ 43,4 bilhões ao longo
do período. Aprovada a mudança, portanto, não apenas os mais ricos arcarão com
o alívio sobre os mais pobres, mas também a faixa intermediária.
A
segunda medida é ainda mais controversa. O relatório de Sabino reduz a alíquota
de imposto sobre pessoas jurídicas (IRPJ) a um patamar ainda insuficiente para
compensar, aos olhos do empreendedor, os novos tributos sobre dividendos e
juros sobre capital próprio. Em vez de tornar mais racionais os vários regimes
de tributação do faturamento — lucro real, presumido, arbitrado ou Simples —, o
governo entrou numa gincana de alíquotas, para tentar reconquistar
credibilidade.
A
proposta suscitou críticas até entre empresários bolsonaristas. Mesmo com o
corte de 25% para 12,5% no IRPJ (ante 20% na versão anterior), a carga sobre
acionistas ficará superior à atual. Ainda faltam informações para avaliar o
impacto nos investimentos, mas está longe de evidente que será positivo.
Uma
reforma tributária para valer exigiria eviscerar as entranhas das isenções de
mais de 4% do PIB, ou um quinto da arrecadação. O governo até tentou fazer
isso, acabando com benefícios a alguns setores. Mas não atingiu os principais
vespeiros, como a Zona Franca, a “pejotização” de contratos de trabalho ou as
regalias ao setor automotivo. Travar essa discussão seria essencial para
corrigir nossas distorções tributárias. Mas parece que Lira e o Executivo farão
de tudo para evitá-la.
Decisão
do CFM sobre reprodução assistida tem propósito ideológico
O Globo
Mais
uma vez, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se afasta da ciência e se
aproxima da ideologia. Não bastasse a posição descabida a favor do “tratamento
precoce” com drogas ineficazes contra a Covid-19, agora a instituição avança
com argumentos estapafúrdios sobre a área da reprodução assistida. Uma
resolução em vigor desde 15 de junho restringe a oito o número de embriões que
podem ser gerados em laboratório nesse tipo de tratamento — antes não havia
limite. É um obstáculo que inviabiliza o procedimento em boa parte dos casos. O
CFM impôs também a proibição de que embriões sejam descartados sem decisão
judicial, encarecendo os tratamentos de fertilidade.
A
decisão torta provocou protestos, tanto de pacientes, cujos direitos foram
cerceados, quanto de especialistas, que criticam a falta de base científica. A
presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, Hitomi Nakagawa,
diz que o ideal é começar a trabalhar com ao menos 15 óvulos, algo inviável com
o limite imposto pelo CFM. Fica também quase nula a chance de uma mulher
engravidar aos 40 anos. Nakagawa alerta ainda sobre o risco de brigas na
Justiça e os custos atrelados.
Em
reportagem do GLOBO, o CFM alega que a resolução tem o objetivo de atender ao
Código de Ética Médica. Afirma que “avanços tecnológicos e melhorias das taxas
de gravidez possibilitaram a redução do número de embriões transferidos, com
redução do risco de gestação múltipla”. Balela. A intenção é atender a
desígnios ideológicos, que aproximam ainda mais o conselho do governo
Bolsonaro. Prova disso é que o limite de embriões e a proibição de descarte sem
autorização judicial não constavam da proposta elaborada pela câmara técnica do
CFM. “Para essas pessoas, o descarte é como se fosse um aborto”, diz Rui
Ferriani, presidente da Comissão de Reprodução Humana da Federação das
Associações de Ginecologia e Obstetrícia.
Não
é comportamento diferente do adotado na pandemia, quando o CFM trocou
princípios da ciência pelos de um governo obscurantista, respaldando a sandice
do “tratamento precoce”. Todas as sociedades profissionais do mundo
contraindicam o uso da cloroquina na prevenção ou no tratamento da Covid-19,
afirmam a microbiologista Natalia Pasternak e o infectologista Mauro Schechter
no GLOBO. O mesmo se aplica a drogas como azitromicina, vitamina D, zinco e o
restante do “kit Covid”.
Os
argumentos em prol do “tratamento precoce” são ridículos. Dizer que não há
consenso sobre a ineficácia dessas drogas revela um grau de ignorância
inadmissível numa entidade médica. Alegar que os médicos têm autonomia para
prescrever tratamentos é falácia sem cabimento. Isso não lhes dá licença para
agir como curandeiros. Está cada dia mais claro que a agenda do CFM não é a
saúde da população, mas o alinhamento com o Planalto. O conselho deveria saber
que os governos, tanto quanto as lideranças dessas entidades, passam. Mas as
decisões ficam sujeitas ao julgamento da história.
Terrivelmente
complicado
O Estado de S. Paulo
Numa República, ninguém – seja ministro do STF, pastor ou presidente – tem competência para oferecer rota de impunidade
No
mesmo dia em que Jair Bolsonaro indicou um pastor evangélico para o Supremo
Tribunal Federal (STF) – várias vezes, o presidente Bolsonaro manifestou que a
escolha de André Mendonça se deve à prática da religião protestante –, a
Polícia Federal abriu inquérito para investigar o chefe do Executivo federal
por crime de prevaricação. É no mínimo contraditório o presidente Bolsonaro
proclamar a defesa de valores cristãos na esfera pública enquanto continua
difundindo inverdades, desrespeitando outros Poderes e, principalmente,
esquivando-se de oferecer explicações convincentes sobre sua conduta.
“Eu
entendo que a prevaricação se aplica a servidor público, não se aplicaria a
mim”, disse o presidente da República, mostrando que se vê rigorosamente acima
da lei. O Código Penal é expresso. Para fins da lei penal, são considerados
funcionários públicos “quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça
cargo, emprego ou função pública”.
O
episódio da compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde é vergonhoso e
precisa ser devidamente investigado pela Polícia Federal. Seis meses antes do
negócio, a fabricante indiana ofereceu a dose por US$ 1,34, mas o governo
preferiu fechar o negócio valendo-se de uma empresa intermediária que cobrou
US$ 15 a dose. Segundo Jair Bolsonaro, o então ministro da Saúde, Eduardo
Pazuello, não viu nada de errado no contrato.
Na
compra de vacina com sobrepreço, o presidente Bolsonaro não viu nada esquisito.
Ao mesmo tempo, sem nunca ter apresentado nenhum indício, continua afirmando
que eleição sem voto impresso é sinônimo de fraude. Não tem provas, não tem
nenhum dado efetivo, mas é crescente sua vontade de difamar o sistema
eleitoral.
O
descaramento de Jair Bolsonaro é constrangedor. Basta sair uma pesquisa
indicando queda de aprovação do seu governo, ou vir a público um novo escândalo
na pasta da Saúde, que Jair Bolsonaro aciona sua artilharia e suas milícias
digitais contra a urna eletrônica. Na semana passada, depois das revelações
trazidas pela CPI da Covid, Jair Bolsonaro ameaçou dizendo que, se não tiver
impressão do voto, não haverá eleições no ano que vem.
Tal
é a campanha de desinformação contra a urna eletrônica promovida por Jair
Bolsonaro que oito procuradores-gerais eleitorais anteriores a Augusto Aras
assinaram, no dia 12 de julho, um “testemunho em defesa da verdade e do sistema
eleitoral brasileiro”, ressaltando que “jamais houve o mínimo indício
comprovado de fraude”.
“Insinuações
sem provas, que pretendem o descrédito das urnas eletrônicas, do voto e da
própria democracia, devem ser firmemente repelidas em defesa da verdade e
porque contrariam a expectativa de participação social responsável pelo
fortalecimento da cidadania”, disseram os antigos procuradores-gerais
eleitorais.
Diante
dessa contundente manifestação sobre a lisura das urnas, a difusão de
desconfiança contra o sistema eleitoral, pondo em dúvida a realização do
próximo pleito, configura evidente crime de responsabilidade. E, como se sabe,
a prática de crimes não é solucionada por conversas entre autoridades.
No
mesmo dia em que foi aberto o inquérito para investigar Jair Bolsonaro por
crime de prevaricação, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, conversou com o
presidente Bolsonaro, pedindo-lhe que “respeitasse os limites da Constituição”.
Louvável é a disposição do ministro Luiz Fux de lembrar o chefe do Executivo
federal do compromisso, assumido ao tomar posse no cargo, de respeitar a
Constituição. Mas esse diálogo não apaga, por óbvio, ações e omissões passadas
que eventualmente configuraram crime.
O
papel do Supremo – e, de forma especial, do seu presidente – é defender a
Constituição. As instituições podem e devem dialogar, mas, sobretudo, devem
cumprir suas atribuições de forma independente. Numa República, ninguém – seja
ministro do Supremo, pastor evangélico ou presidente da República – tem
competência para oferecer alguma rota de impunidade. A lei vale para todos,
inclusive e principalmente para o presidente da República.
Mercosul
emperrado e dividido
O
Estado de S. Paulo
Bolsonaro acerta ao propor maior abertura, mas não prepara o Brasil para competir
Fundado
há 30 anos, o Mercosul continua longe de alcançar seus principais objetivos –
promover a integração dos quatro países-membros e constituir uma plataforma
para inserção competitiva no mercado global. Outros blocos comerciais criados
nesse período, em todo o mundo, promoveram com sucesso o desenvolvimento de
seus associados, facilitando o aumento da produção, a expansão das trocas e a
modernização econômica e social. No caso do bloco formado por Brasil,
Argentina, Paraguai e Uruguai, nem sequer os objetivos originais são claramente
reconhecidos pelos governos de todos os países sócios. Os desentendimentos
foram evidenciados, mais uma vez, na última reunião de chefes de Estado, na
semana passada. O principal embate ocorreu entre os presidentes brasileiro,
Jair Bolsonaro, e argentino, Alberto Fernández.
Ao
assumir, em nome do Brasil, a presidência rotativa do Mercosul, Bolsonaro
insistiu em dois pontos por ele defendidos há algum tempo, a redução da tarifa
externa comum e a flexibilização de acordos com parceiros externos ao bloco.
Fernández lembrou a exigência de tratamento consensual dessas questões.
Consenso, disse o presidente argentino, é a “espinha dorsal” do tratado de
criação do Mercosul. O governo uruguaio também tem defendido maior facilidade
para acordos com países de fora do bloco.
Todos
têm argumentos de peso na defesa de suas posições, mas é preciso levar em conta
a natureza do acordo em vigor entre os quatro países. O Mercosul é uma união
aduaneira. Constitui, portanto, uma associação mais complexa do que uma área de
livre comércio, com objetivos mais ambiciosos e regras mais estritas. Numa
união aduaneira, nenhum país pode mudar a tarifa externa comum sem a
concordância dos demais. A mesma limitação vale para acordos comerciais com
parceiros de fora. Quanto a esses pontos o presidente argentino tem razão.
Mas
o governo brasileiro tem respeitáveis motivos para propor a redução da tarifa
externa comum e a busca de acordos com novos parceiros. O primeiro grande passo
foi a conclusão das negociações com a União Europeia. Esse objetivo foi atingido
graças ao esforço do presidente Michel Temer e de seu colega argentino Maurício
Macri, embora a formalização do tratado só tenha ocorrido em 2019, quando ambos
já estavam fora do poder. Mas é preciso ir mais longe.
Além
de buscar mais parceiros, os países do Mercosul precisam entrar com mais
firmeza na competição internacional. O Mercosul tem sido, principalmente para
as indústrias do Brasil e da Argentina, um ambiente confortável, onde se pode
negociar amigavelmente e com baixo risco de concorrência externa – exceto pela
presença crescente da China. Mas autoridades brasileiras já perceberam a
conveniência dessa maior abertura e até no setor empresarial há algum apoio a
essa mudança – condicionada, é claro, a mudanças favoráveis à maior
competitividade industrial. Na Argentina a resistência é muito maior. Nem os
empresários se dispõem a enfrentar riscos maiores nem o governo se arrisca a
propor essa alteração de rumo.
Os
governos do Uruguai e do Paraguai têm mostrado maior flexibilidade. As
autoridades uruguaias já insinuaram mais de uma vez a disposição de buscar um
caminho de forma independente, ampliando acordos comerciais e de investimento.
Não
está claro como o presidente Jair Bolsonaro percebe e avalia as consequências e
requisitos de uma inserção mais ampla – e mais competitiva, é claro – no
mercado internacional. Não basta levantar uma bandeira classificável como
liberal. É preciso pensar nos fatores prejudiciais à competitividade
brasileira, como os tributos disfuncionais, a infraestrutura deficiente, a
insegurança jurídica, os entraves burocráticos e as enormes limitações
educacionais e tecnológicas.
Em
todos esses pontos tem falhado o governo Bolsonaro. Se esse governo pretender,
de fato, batalhar pela dinamização do Mercosul, terá de pensar nas
qualificações do Brasil para uma participação maior na economia global e de
renegar as próprias políticas.
A
descida aos infernos do Haiti
O
Estado de S. Paulo
O cenário ali é tão catastrófico, que não se sabe sequer quem governa o país
O
Haiti é considerado o país mais pobre do hemisfério ocidental. Em 200 anos de
história ele sofreu diversas intervenções estrangeiras. Sua política é
recorrentemente tiranizada por ditadores e a economia, por cartéis predadores.
No século 21, desastres naturais como o terremoto de 2010, o furacão de 2016 ou
o surto de cólera do mesmo ano dizimaram centenas de milhares de haitianos. Nos
últimos anos, a criminalidade explodiu. Os protestos contra a corrupção se
intensificaram, mas a repressão se intensificou ainda mais. Até o momento, não
foi aplicada uma só vacina contra a covid em braços haitianos.
Mas
o pior nem sempre é certo. O assassinato do presidente Jovenel Moïse mergulhou
o país ainda mais fundo no caos.
Na
manhã do dia 7, um grupo armado executou Moïse e feriu sua mulher, após invadir
sua casa na capital, Port-au-Prince. O primeiro-ministro Claude Joseph
declarou-se no comando do país e decretou estado de sítio. À noite, a polícia
anunciou que quatro suspeitos foram mortos e dois presos.
Provavelmente
eram mercenários. Mas a incerteza sobre os contratantes só inflama a confusão e
a angústia da população. Muitos acusam a oposição ou as elites haitianas. Os
rumores correm soltos. Há quem diga que o ataque foi orquestrado pela Venezuela
ou mesmo pelos EUA. Em fevereiro, Moïse denunciou uma conspiração para
assassiná-lo, o que levou à prisão de 23 pessoas, incluindo um juiz e um
policial dos altos escalões. Seus oponentes o acusavam de um esquema de
corrupção envolvendo a PetroCaribe, um fundo venezuelano, e questionavam a
legitimidade de seu governo.
Moïse,
um latifundiário que se referia a si mesmo como “Banana Man”, foi eleito em
2016, após a anulação das eleições de 2015. Segundo a oposição, seu mandato de
cinco anos deveria ter terminado em fevereiro de 2021. Mas ele defendia que
deveria durar até 2022.
Hoje
o Haiti é uma democracia parlamentar sem um Parlamento. Desde 2020, após o
adiamento das eleições legislativas, Moïse dispensou todos os congressistas,
exceto 10 senadores, e passou a governar por decreto. Ao mesmo tempo que
prometia conduzir eleições em setembro, ele reescreveu a Constituição e
manobrava para submeter o texto a um referendo. Também criou uma nova agência
de inteligência, ampliou a tipificação do “terrorismo” para incluir atos de
dissidência e passou a reprimir com mais truculência os protestos. A oposição o
acusava de cooptar o crime organizado para perseguir os dissidentes.
Moïse
negava qualquer aliança. Mas, com ou sem o seu apoio, as gangues vinham
aterrorizando a população. Recentemente, mais de 70 pessoas foram massacradas
em um conflito armado. Em junho, milhares de pessoas foram obrigadas a deixar
suas casas para fugir à violência. Estima-se que desde 2019 os sequestros
tenham triplicado.
A
violência política no Haiti não é novidade. O mundo ainda se lembra da ditadura
dos Duvaliers, pai e filho (“Papa Doc” e “Baby Doc”), criadores da infame
polícia secreta que aterrorizou o país, os Tontons Macoutes. Em meio ao caos,
os criminosos podem se sentir ainda mais livres, até mesmo para tomar o poder.
No mês passado, o ex-policial e miliciano Jimmy Cerisier (vulgo “Barbecue”)
anunciou uma “revolução” – mas ninguém sabe bem contra quem ou a favor de quê.
O
cenário é tão catastrófico, que não se sabe sequer quem governa o país. Não há
previsão constitucional em caso de ausência do presidente e do Parlamento.
Claude Joseph, indicado como primeiro-ministro por Moïse em abril, se
autodeclarou no comando. Mas no mesmo dia do assassinato deveria assumir o novo
indicado para a posição, Ariel Henry. Henry tem questionado a legitimidade de
Joseph. A questão deveria ser arbitrada pelo presidente da Suprema Corte. Mas
ele morreu há duas semanas por covid-19.
Mais
de 200 anos após os escravos na Ilha de Hispaniola – a colônia mais rica da
França, conhecida como a “Pérola das Antilhas” – liderarem a rebelião que
fundou o Haiti, os haitianos ainda não são livres. O mais tétrico é que não é
impossível que o pior ainda esteja por vir.
Tensão
cresce na presidência rotativa do Brasil no Mercosul
Valor
Econômico
O
Brasil tem controle sobre a pauta de negociação e pode determinar o ritmo do
qual tanto reclama
Na
semana passada, o presidente Jair Bolsonaro assumiu em nome do Brasil a
presidência rotativa do Mercosul. Com a falta de diplomacia que lhe é peculiar,
Bolsonaro deixou bem evidentes os impasses do grupo, no discurso breve e direto
que fez na reunião virtual de cúpula que marcou a transmissão do comando: a
redução da Tarifa Externa Comum (TEC) e a maior liberdade para negociações fora
do bloco.
Os
problemas, é verdade, não surgiram agora, ficaram adormecidos e devem voltar a
ser discutidos à medida que a região consiga emergir da crise do coronavírus.
Mas sua superação é mais difícil dada a pouca disposição para negociar dos
presidentes da região, especialmente de Bolsonaro e de Alberto Fernández, da
Argentina.
Em
seu discurso, Bolsonaro já afrontou Fernandez ao criticar o período em que a
Argentina esteve à frente do bloco: “O semestre que se encerrou deixou de
corresponder às expectativas e necessidades de modernização do Mercosul”.
Bolsonaro também disse que o Mercosul não pode continuar sendo visto como
sinônimo de “ineficiência, desperdício de oportunidades e restrições
comerciais”. Nem uma palavra foi dita, porém, a respeito do efeito negativo que
tiveram as falhas na preservação da Amazônia, o aumento do desmatamento na
região e das queimadas que atingiram também o Pantanal na indisposição da União
Europeia de fechar o acordo que vem sendo debatido há 20 anos com o Mercosul.
Do
seu lado, Fernandez se manteve inabalável na defesa do consenso nas decisões do
bloco, referindo-se indiretamente ao debate que vem sendo travado a respeito da
redução da TEC e das negociações unilaterais. “O consenso é a coluna vertebral
constitutiva” do bloco. Para ele, é com mais integração regional, e não menos,
que o bloco estará em melhores condições de produção, comércio, negociação e
competição. “Nossa posição é clara, cremos que o caminho é cumprir com o
Tratado de Assunção, negociar juntos com terceiros países ou blocos e respeitar
o consenso”, afirmou.
Fernández
vem se manifestando contra a proposta brasileira de que o Mercosul deve
permitir a negociação individual com países de fora do bloco, sem necessidade
de decisões em consenso, como geralmente ocorre em blocos do tipo. Brasília
também defende o corte linear da TEC em duas etapas, de 10% cada uma, neste
ano. Buenos Aires prefere uma redução gradual e menor, não linear, poupando o
setor industrial em um primeiro momento. Montevidéu apoia o Brasil na questão
da negociação de acordos fora do Mercosul. Em seu discurso na reunião virtual,
o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, fez um malabarismo verbal ao dizer que
acredita na regra do consenso e que a decisão do país de negociar acordos por
fora não viola as normas do bloco.
Para
Bolsonaro, “a persistência de impasses, uso da regra do consenso como
instrumento do veto e apego a visões arcaicas de viés defensivo terão o único
efeito de consolidar sentimento de ceticismo e dúvida quanto ao verdadeiro
potencial do bloco”. Até o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem acusado o
Mercosul de aprisionar o país em uma armadilha, que impede o aumento da
competitividade e da produtividade. Em entrevista ao Valor (18/6), o
economista Roberto Teixeira da Costa, conselheiro e fundador do Centro
Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), disse que “botar na conta da
Tarifa Externa Comum [TEC] a responsabilidade pelo insucesso do Mercosul e do
Brasil é querer tapar o sol com a peneira”. A realidade é que várias das
críticas de Bolsonaro ao viés defensivo e visões arcaicas podem ser aplicadas à
sua política de comércio exterior.
Mais
pelas mazelas e falta de dinamismo de cada um de seus membros, o Mercosul viu
sua importância diminuir ao longo do tempo. Depois de ter chegado a negociar
US$ 27,8 bilhões quando tinha 20 anos, o Mercosul enfrenta agora a crise dos 30
anos com negócios de US$ 7,7 bilhões neste primeiro semestre. No passado,
países vizinhos se esforçavam para ser aceitos no clube. Agora, os que podem
veem mais vantagens em aderir aos acordos da região do Pacífico.
Mas
o Mercosul não é apenas comércio. Uma posição em bloco pode causar alguns
constrangimentos, mas fortalece a todos os membros nas negociações com outros
blocos e outros parceiros, como a poderosa China, que avança cada vez mais na
América do Sul. Como presidente rotativo, o Brasil tem controle sobre a pauta
de negociação e pode então caminhar para uma maior liberalização e determinar o
ritmo do qual tanto reclama. Mas é preciso negociar, evitar confrontos, ter
liderança e diplomacia.
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