terça-feira, 3 de agosto de 2021

Andrea Jubé - A pós-verdade testa as instituições

Valor Econômico

O contrário da verdade não é a opinião, é a mentira

O ex-presidente José Sarney, a quem Jair Bolsonaro tem recorrido nos últimos tempos, afirmou, em uma entrevista ao Valor, que a cadeira do chefe do Poder Executivo é sempre maior do que o presidente sentado nela.

Sem citar nomes, o líder emedebista admitiu que muitos políticos desconhecem o significado das instituições democráticas. Na entrevista publicada em fevereiro de 2019, Sarney atribuiu essa deficiência à falta de leitura de clássicos do pensamento liberal e arautos da democracia como Alexis de Tocqueville, Abraham Lincoln, Joaquim Nabuco.

Até onde se sabe, Sarney não recomendou nenhum desses títulos a Bolsonaro, que prefere ler postagens em redes sociais. O emedebista perdeu a oportunidade de convidar Bolsonaro a refletir sobre a pós-verdade, uma ameaça às democracias do século 21, e sobre a qual o atual mandatário discorreria com propriedade. Nesse hipotético diálogo, Sarney entraria com a teoria e Bolsonaro com a prática.

Na última semana, um relatório da ONG Artigo 19, com escritório em nove países, inclusive no Brasil, revelou que o mandatário brasileiro proferiu 1.682 declarações falsas ou enganosas em 2020: ou seja, 4,3 por dia.

“A internet criou tantas versões sobre o mesmo fato que já não sabemos qual é a verdadeira”, comentou Sarney na mesma entrevista, citando trecho do livro “A morte da verdade - Notas sobre a mentira na era Trump”, de Michiko Kakutani, vencedora do Prêmio Pulitzer.

Ao lado do coronavírus, talvez os fenômenos da “pós-verdade” e das “fake news” venham a ser reconhecidos como algumas das maiores pragas da contemporaneidade, com fôlego para corroer democracias, e por meio das quais cidadãos no mundo inteiro perdem a capacidade de distinguir um fato objetivo de uma mentira.

A “pós-verdade” - ou “post-truth”, em inglês - foi eleita a palavra do ano de 2016 pelo Dicionário Oxford, no embalo da escalada de mentiras nas campanhas do plebiscito do Brexit e de Donald Trump. O termo refere-se a circunstâncias pelas quais os fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal.

Embora o termo tenha se consagrado há cinco anos, o debate não é novo. Em 1967, a filósofa política Hannah Arendt publicou o célebre ensaio “Verdade e política”, quando distinguiu verdade fatual de opinião.

“A marca distintiva da verdade fatual consiste em que seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre a veracidade pessoal, e sim a falsidade deliberada, a mentira”, escreveu a filósofa, na esteira das críticas à sua controvertida reportagem sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém.

É nessa conjuntura de pós-verdade, em que uma parcela expressiva dos brasileiros acredita mais no que quer, em vez de amparar decisões em fatos objetivos, ou científicos, que ganha tração a ofensiva de Bolsonaro para minar a credibilidade dos brasileiros nas urnas eletrônicas, um dos pilares da nossa democracia. Em confronto evidente e impune com as instituições e as demais autoridades, mais de uma vez o presidente colocou em xeque a realização das eleições do ano que vem.

O Brasil é campo fértil para a estratégia bolsonariana, inspirada em Trump. Em maio, um relatório divulgado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostrou que 67% dos estudantes de 15 anos do Brasil - quase sete a cada dez - não conseguem diferenciar fatos de opiniões. A chaga é mundial, mas o Brasil está acima da média: o índice é de 53% entre estudantes de outros 79 países. No documento, a OCDE alerta que essa conjuntura de desinformação pode levar à “polarização política, diminuição da confiança nas instituições públicas e falta de credibilidade na democracia”".

O Brasil nunca experimentou em sua história, desde o descobrimento, uma gestão comunista. Uma das premissas da Constituição democrática de 1988, consagrada no artigo 5º, é o direito inviolável dos brasileiros à propriedade privada. Ainda assim, no fim de semana, valendo-se da eficiente técnica da disseminação do medo, Bolsonaro renovou o compromisso com seus seguidores de que não permitirá a volta do comunismo.

Nos últimos dias, e às vésperas da provável derrocada da PEC do voto impresso na comissão especial da Câmara, Bolsonaro subiu o tom dos ataques à urna eletrônica, ao presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, ao Supremo Tribunal Federal e voltou a ameaçar as eleições de 2022.

Essa ofensiva, que não começou ontem, produz resultados. Pesquisa do Instituto Ipsos divulgada há um mês mostra que os brasileiros ainda confiam mais no STF do que no governo Bolsonaro, mas a margem é apertada. A parcela que diz confiar no Supremo é de 28% dos brasileiros e a que confia no governo é de 27%.

Um levantamento feito pelo Instituto Ideia, que ouviu policiais militares de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Ceará e Pernambuco durante três anos, mostrou que 55% dos entrevistados não confiam na urna eletrônica. Em outubro de 2018, antes da posse, 30% confiavam na ferramenta eleitoral.

Ontem os presidentes do STF, Luiz Fux, e do TSE, Luís Roberto Barroso, subiram o tom contra Bolsonaro. Na ação mais enérgica até agora, o TSE autorizou a abertura de inquéritos para investigar o presidente por seus ataques às urnas e à Justiça Eleitoral. Muitos observadores da cena política, entretanto, veem a reação como tardia e com resultados duvidosos quanto ao seu alcance, junto a uma população descrente nas instituições e que se informa por redes sociais e grupos de WhatsApp.

Como escreveu Hannah Arendt, “é a opinião, e não a verdade, que pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder”. Segundo a filósofa, nem o tirano nem outro governante pode alçar-se ao poder e muito menos conservá-lo, sem o apoio daqueles que têm modo de pensar análogo. Bolsonaro não está sozinho em sua ofensiva, e a parcela de apoiadores pode crescer com o tempo.

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