O Globo
Escrever e falar lixo não é crime; mesmo
que o lixo seja negacionismo — para efeito de desinformação — em meio a uma
pandemia. Tampouco ilícito será um veículo de comunicação receber dinheiros de
governo, os recursos todos acessíveis via mecanismos públicos de consulta.
Outra obviedade, que já deveríamos ter entendido após anos sob a degeneração do
vale-tudo lavajatista, a alternativa sendo afundarmos ainda mais no pântano do
justiçamento que resultou em Bolsonaro: mera suspeita — por forte que seja a
convicção individual — não pode sustentar gestos extremos contra direitos
constitucionais.
De maneira que pergunto: qual é a base
legal para a quebra do sigilo bancário da rádio Jovem Pan, conforme pedido pelo
relator Renan Calheiros à CPI da Covid? Nenhuma. Li o requerimento e repito:
nenhuma; salvo se considerarmos juridicamente aceitável, como fundamento para
uma demanda radical, o gosto do senador por pescaria de intimidação — por pesca
de arrasto, para ser preciso. Ou se poderá nomear de outro modo um pedido que
remonte a 2018 e proponha — contra “grande disseminador de fake news” — uma
puxada até o presente?
Nada aprendemos com a Vaza-Jato?
Olhemos para esta categoria: a do “grande disseminador de fake news”. Concordo que a Jovem Pan se enquadre. É a minha opinião. Tenho bastante certeza a respeito. É também a de Calheiros, com a perigosa (e decisiva) diferença de ele poder vertê-la em demanda por quebra de sigilo; e de poder fazê-lo amplamente, para período de quase quatro anos, exatamente por ter uma opinião desprovida de lastro indiciário — a razão para que se contivesse sendo a que o estimula ao ataque. E ele ataca, para deleite inclusive dos que, sem as garantias de um senador, poderão um dia ter a quebra de seus sigilos requisitada, acusados de “grandes disseminadores de fake news”, porque suas apurações jornalisticamente corretas incomodam o justiceiro de turno.
A prática se chama arrastão. E o que quer
jogar a rede é aquele — outrora tubarão enredado — que reclamava dos
expedientes de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Calheiros se reinventa. Nada
aprendeu, contudo. Daí por que se sinta à vontade para armar seu PowerPoint. O
jurista Horacio Neiva desenhou: “Até agora, a suspeita é de que, para uma
emissora ter uma programação tão ruim, teria de receber dinheiro do governo.
Isso não é justificativa plausível e, ao menos que queiramos transformar quebra
de sigilo de órgãos de imprensa em algo normal, e o uso dessa medida
excepcional em um instrumento de coação, deveríamos todos rechaçar atos como
esse”.
Lê-se o requerimento de Calheiros e logo se
capta a natureza do que quer substanciar o arrastão: uma composição entre
desejo de forra — contra rádio que lhe bate firme — e certeza, sem provas
processuais, de que tamanho governismo não poderia se bastar nos valores
declaradamente pagos pela Secom.
Arrastão, aliás, que a própria forma
mal-acabada da petição entrega: um grosseiro — vergonhosamente apressado — copia
e cola de nomes e dados, denúncia per
se de clara fabricação em série e de profunda fé na imposição
do espírito do tempo autoritário, em que se acolhe o abuso de poder porque pela
boa causa. Afinal, Calheiros tem um objetivo, considera-o virtuoso, conta com a
simpatia de porção expressiva da sociedade — e, então, mete o pé na porta do
estado de direito.
É vergonhoso que um senador se refira ao
objeto de sua grave demanda — uma empresa — como “uma pessoa”, “assessora
especial do Poder Executivo”, “instalada próxima ao presidente”, “cuja atuação
como redatora de conteúdo é questionada, investigada e perquirida desde o
início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, por conta de inúmeras notícias
falsas veiculadas em páginas específicas, outrossim, distribuídas a esmo por
meio de grupos em aplicativos de mensagens”. Mais adiante, o texto classifica a
matéria do requerimento — uma rádio — como “servidor”.
É isto mesmo: não sabemos a que agente do
gabinete do ódio mobilizado no Planalto se voltava originalmente Renan
Calheiros, mas a peça nos comunica que o senador —em vez de ir à Justiça,
individualmente, contra quem o desonra “com extrema hostilidade” — vale-se da
condição de relator para requerer quebras de sigilo à baciada. Não é algo
banal. Não está certo. Não é certo. Não se pode normalizar o absurdo, senão
como escada para a prosperidade do que se quer derrotar. Ilude-se quem avaliar
que o bolsonarismo se enfraquece na briga de rua. Já será tempo de as violações
cometidas pela Lava-Jato nos terem ensinado algo.
Trabalhei na Jovem Pan. Quis sair. Estava
infeliz; insatisfeito com uma linguagem que embalava entretenimento para
pugilato como campo para o debate jornalístico. A coisa se degradaria
rapidamente, até que o estímulo permanente ao confronto resultasse em trocas de
socos no ar. Não gosto do jornalismo que a Jovem Pan faz. E não por ser
governista. (Não foi o primeiro; não será o último a aderir e colher
vantagens.) Considero-o funesto, insalubre. Desprezo, porém, que se pretenda
criminalizar o mau jornalismo e formular um tipo penal para enquadrá-lo — de
resto, uma classificação arbitrária em essência, talvez saborosa quando sob
nosso apontamento, mas que amanhã pode estar nas mãos dos que não gostam de
nós.
Não faltam calheiros por aí, de todos os
lados. Tampouco faltam inimigos da Lava-Jato que incorporem os instrumentos
lavajatistas.
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