domingo, 11 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Junho de 2013 polarizou o Brasil

O Globo

Até hoje país não soube encarar o legado da onda de protestos que abriu caminho para o extremismo

Dez anos depois dos protestos que sacudiram o Brasil em junho de 2013, é possível fazer um balanço sereno da mobilização popular que começou como revolta contra o aumento nas tarifas de ônibus e metrô, evoluiu para abarcar todo tipo de reivindicação e deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Está na rebelião dos 20 centavos a raiz das duas principais transformações políticas da última década: a crise institucional e a polarização ideológica, associadas às redes sociais.

Na organização, os protestos de 2013 reproduziram o mecanismo que engendrou outros movimentos mundo afora, como Primavera Árabe, Indignados espanhóis ou Occupy Wall Street. As redes sociais assumiram um protagonismo na comunicação política que persiste até hoje. Decorre da lógica das redes, movida por algoritmos que privilegiam o engajamento imediato e as emoções em detrimento da reflexão racional e do equilíbrio, a crise de confiança que acometeu as instituições estabelecidas, como academia, imprensa ou Poderes constituídos.

Não é coincidência que, ao longo da década, a principal consequência do rearranjo político que sucedeu aos protestos tenha sido o esvaziamento do centro, organizado em partidos tradicionais como MDB ou PSDB, e o fortalecimento dos extremos, em particular a extrema direita que chegou ao poder com Jair Bolsonaro. Todo o arranjo institucional erguido desde a redemocratização, consolidado na Nova República, foi posto em xeque. A nova classe média a quem os governos petistas haviam prometido o paraíso foi às ruas deixar claro que ainda vivia no inferno dos ônibus lotados, dos hospitais insalubres e das escolas degradadas.

A revolta contra todos os partidos se fazia sentir quando políticos tentavam aderir aos protestos. Nas ruas houve gritaria contra quem empunhava bandeiras de legendas tradicionais da esquerda, e tucanos foram enxotados pelos manifestantes. Ao mesmo tempo, a minoria golpista já estava presente pedindo intervenção militar, com a mesma desfaçatez que dez anos depois resultaria na violência do 8 de Janeiro. Nas palavras do colunista do GLOBO e professor de políticas públicas da USP Pablo Ortellado, “o Brasil se politizou, não necessariamente para melhor”.

Um estudo de Ortellado e do professor de sistemas de informação Márcio Moretto Ribeiro, também da USP, constatou que os protestos plantaram a semente da polarização. Analisando a interação de 12 milhões de usuários do Facebook, eles verificaram sobreposição entre os que se vinculavam a temas de direita ou esquerda. Quem consultava informações sobre movimentos sociais progressistas também navegava em espaços que tratavam do combate à corrupção. Quem acompanhava o combate aos corruptos também acessava páginas sobre meio ambiente. Aos poucos, porém, o fosso entre os polos foi se abrindo. Entre 2014 e 2016, não havia mais sobreposição de interesses. Cada lado passou a viver em sua bolha, e a polarização se consolidou.

Em 2016, três anos depois das manifestações, as redes sociais ainda fervilhavam com discursos contra os políticos e a política. Quem se aproveitou foi a extrema direita. A esquerda não entendeu o que aconteceu em 2013. Pela primeira vez em décadas, perdeu o monopólio das ruas. Também perdeu a corrida na hora de aproveitar os novos meios de comunicação digital. Há uma linha de conexão nítida entre os protestos de 2013, as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e 2016 e a campanha à Presidência de Jair Bolsonaro em 2018. Todos esses movimentos cresceram nas redes sociais à revelia do que se discutia ou se planejava nos gabinetes.

Embora não houvesse programa explícito e coordenado entre os manifestantes de 2013, havia duas agendas preponderantes. A primeira era a luta contra a corrupção, identificada nos estádios erguidos para a Copa do Mundo e nos escândalos que marcaram as gestões petistas. A segunda era a demanda por qualidade nos serviços públicos, por ação social eficaz do Estado, identificada na exigência por transportes, educação e hospitais “padrão Fifa”. Embora não fossem contraditórias e no início caminhassem juntas, com o tempo as duas agendas se divorciaram e migraram para polos ideológicos antagônicos. A esquerda, em especial o PT, passou a ser vista pela direita como ninho de corruptos. A direita passou a ser encarada pela esquerda como irremediavelmente insensível à desigualdade e às demandas sociais ou identitárias.

Não há dúvida de que a principal vítima da polarização foi o centro ou, mais precisamente, a centro-direita. Partidos outrora fortes, como PSDB, MDB ou DEM, foram aos poucos reduzidos à sombra do que já foram. Depois de anos de predomínio da agenda social-democrata encampada pelos rivais PT e PSDB, era esperado que o Brasil liberal ou conservador buscasse um caminho para maior representatividade. A surpresa foi ter encontrado esse caminho num deputado de baixo clero que, ao longo dos 28 anos que passou na Câmara, agia como uma espécie de “black bloc” parlamentar, interessado mais em chamar a atenção pela agressividade destrutiva do que em formular propostas construtivas para o país.

O fortalecimento da extrema direita e o enfraquecimento da centro-direita, a incapacidade institucional de lidar com um ambiente político polarizado e movido a desinformação, o predomínio das redes sociais como forma de mobilização e os riscos para a democracia — tudo isso é parte indissociável do legado de junho de 2013, que o Brasil até hoje não soube encarar.

Kiev contra-ataca

Folha de S. Paulo

Guerra entra em nova etapa com ofensiva aos russos e destruição de represa

Após meses de protelação e, até agora, com tentativas frustradas de dissimulação, a Ucrânia enfim iniciou sua aguardada contraofensiva nas áreas ocupadas pela Rússia após a invasão de fevereiro de 2022.
Trata-se de uma nova, perigosa e vital etapa do conflito que mudou a geopolítica mundial.

A salva inicial de Kiev ocorreu em 4 de junho e intensificou-se ao longo da semana, com ataques probatórios contra o entrincheiramento russo em pontos supostamente mais frágeis da frente de 1.000 km de batalha estabelecida.

Dois dias depois, contudo, houve um dramático desenvolvimento no quadro, com a destruição da barragem de Nova Kakhovka, no rio Dnieper, precipitando um desastre humanitário e ambiental sem precedentes na Europa.

Dezenas de milhares de pessoas foram afetadas, com grandes áreas nas duas margens —uma controlada pelos ucranianos, a outra pelos russos— do curso d’água alagadas. Houve mortes, ainda em contagem, mas a implicação do episódio no longo prazo é enorme.

Lavouras perderam irrigação. Não há água potável para centenas de milhares de pessoas, segundo Kiev, e a queda no nível do reservatório da represa cortou o abastecimento da piscina que resfria os reatores da maior usina nuclear da Europa, Zaporíjia, que está em mãos russas desde 2022.

Por ora não há risco de uma nova Tchernóbil, mas o temor de desastre nuclear segue à espreita.

Moscou e Kiev se acusam mutuamente pela tragédia, que no papel favorece um pouco mais os russos do ponto de vista militar, não muito. Seja quem for o responsável, a magnitude do incidente em meio ao início da contraofensiva sinaliza o peso da ação.

Supõe-se que a Ucrânia vise cortar a ligação que a ocupação do sul do país permitiu entre Rússia e Crimeia —preciosa península anexada por Vladimir Putin em 2014.

Se for bem-sucedido, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, deixará o russo em situação militar e política bastante desconfortável.

Se fracassar, Kiev arrisca ver o apoio ocidental, exibido nos ataques bancados por bilhões de dólares em ajuda militar, transformar-se em um ponto de interrogação que só tende a crescer se o atual governo americano for derrotado nas urnas no ano que vem.

Mesmo o cenário mais provável, intermediário, sugere o prolongamento do conflito em termos que favorecem os vastos recursos da Rússia, levando à pressão por um armistício ao estilo do que se vê na península coreana desde 1953.

Muito está em jogo, e o mundo acompanha apreensivo o desenrolar em campo, da China aliada de Putin ao Ocidente, passando por não alinhados como o Brasil.

Esplanada frágil

Folha de S. Paulo

Lula acerta ao evitar enfrentamento com Congresso; falta-lhe agenda mais ampla

Mudanças ministeriais são quase corriqueiras no presidencialismo brasileiro —sejam para substituir nomes que se mostraram inadequados, por mau desempenho ou envolvimento em casos rumorosos, sejam para reconfigurar a sustentação política ao governo.

Entretanto é inusitado que, decorridos menos de seis meses de governo, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteja diante de todas essas possibilidades, ainda que não necessariamente vá contemplá-las.

Lula mostrou sensatez na formação de sua equipe ao incluir representantes de partidos ao centro e à direita. Assim, MDB, PSD e União Brasil receberam 3 ministérios cada um, em um total de 37 pastas na Esplanada brasiliense.

Não se viu, porém, a mesma disposição em dividir a agenda e as decisões de governo. O PT reservou para si e para aliados próximos quase todos os cargos mais importantes e de maior visibilidade, e a prioridade do presidente tem sido relançar programas e bandeiras de suas gestões passadas.

Ademais, o arranjo no primeiro escalão se revelou frágil para o objetivo de obter maioria no Congresso, especialmente no caso da União Brasil —legenda que resultou da fusão entre o DEM, de centro-direita, e o PSL, que antes abrigava Jair Bolsonaro (hoje PL) e apoiadores.

Além de o partido apresentar elevado grau de infidelidade em votações no Congresso, dois de seus ministros têm sido motivo de desgaste para o Planalto e se tornaram alvo de uma eventual reforma.

Daniela Carneiro (Turismo) está de saída da sigla e é questionada pelo apoio recebido de grupos ligados à milícia do Rio; Juscelino Filho (Comunicações) acumula suspeitas variadas em torno de sua conduta no ministério.

Mais importante, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), pressiona o governo por postos de mais relevo —o objetivo é nada menos que o Ministério da Saúde, hoje comandado por uma técnica, Nísia Trindade, e dono de verbas vultosas de interesse dos parlamentares.

De pouco adianta, a esta altura, reclamar das intenções e dos métodos de Lira e do centrão. Lula acerta ao reconhecer a legitimidade do Congresso hoje mais protagonista e escolher o caminho da negociação, não do enfrentamento.

O que lhe falta é uma agenda de governo mais ampla que as preferências de seu partido, capaz de aglutinar apoios entre forças do Legislativo e da sociedade.

A legitimidade do marco temporal

O Estado de S. Paulo

A defesa do marco temporal na demarcação das terras indígenas não é aberração, tampouco retrocesso. É respeito à Constituição. É submissão de todos à institucionalidade democrática

Observa-se um fenômeno esquisito nos dias de hoje. A ter em conta os termos do debate público atual, a defesa da Constituição de 1988 tornou-se sinônimo de retrocesso institucional e de agressão ao meio ambiente. Aqui, não se fala da fragilidade de argumentos e do completo irrealismo que é a bandeira pela inexistência de marco temporal na definição da ocupação tradicional da terra pelos povos indígenas. O assunto é ainda mais grave. Tenta-se excluir do debate público, como se fosse a priori uma aberração cívica, a posição em defesa do marco temporal tal como previsto pelo legislador constituinte.

A causa aparentemente a favor dos indígenas – apenas aparentemente, pois deseja fazer da demarcação de novas terras uma eterna disputa, o que é prejudicial a todos – é profundamente antidemocrática. Não está interessada em respeitar o que determina a Constituição de 1988. Não está interessada em respeitar o que já reconheceu o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, no grande julgamento sobre os processos de demarcação de terras indígenas. Não está interessada em respeitar o que tem dito, de diversas maneiras, o Congresso. Na verdade, contra tudo e contra todos, deseja impor uma específica compreensão sobre o assunto, desautorizando no grito toda e qualquer opinião diversa. Não é assim que funciona no Estado Democrático de Direito.

É necessário ler a Constituição de 1988. “São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, diz o art. 231. O texto é contundente. Os indígenas não têm direito sobre qualquer terra que eventualmente venham a ocupar, e sim “as terras que tradicionalmente ocupam”.

Ciente de que o tema poderia suscitar polêmica – e sendo seu intuito pacificar a questão –, a Assembleia Constituinte definiu que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

A Constituição de 1988 não ignorou a questão indígena. Ao contrário, o texto é reconhecimento expressivo não apenas da história dos povos originários, mas da centralidade, para o Estado brasileiro, do presente e do futuro desses povos. O panorama programático da Constituição é a proteção efetiva dos direitos dos indígenas. E, não se deve esquecer, direitos não são realidades imaginárias, que cada um preenche arbitrariamente como bem entender. Seu conteúdo é definido democraticamente pela lei.

Precisamente porque pretendeu assegurar respeito efetivo aos direitos constitucionais dos indígenas, a Constituição de 1988 definiu esses direitos. E definir – dar o contorno específico – é também fixar limites: onde começa e onde termina. A rigor, a pretensão de não fixar um marco temporal coloca os povos originários fora da institucionalidade democrática. Ao atribuirlhes um suposto status jurídico acima da Constituição de 1988, ela os exclui da cidadania efetiva, em atitude severamente paternalista.

Não se promove avanço cívico e humanitário negando a Constituição de 1988. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece, em seu art. 67, que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Com nítido objetivo de efetividade e de pacificação, o texto constitucional fixou limitação temporal.

A proteção dos povos originários não demanda, como alguns querem fazer acreditar, a criação indefinida de novas reservas. Isso negaria o que o legislador constituinte veio evitar: a proliferação de novos conflitos sobre o tema, transformando os povos originários em objeto de eternas contendas políticas. Os indígenas não são objeto. São cidadãos e, por isso mesmo, igualmente submetidos ao que dispõe a Constituição de 1988.

Inteligência artificial, sabedoria humana

O Estado de S. Paulo

Ao ampliar a inteligência humana artificialmente, podemos prosperar como nunca – desde que a usemos para enfrentar emergências globais, e não para projetos isolados de poder

Desde as pedras lascadas os humanos produzem com sua inteligência ferramentas que ampliam suas capacidades e transformam o mundo. Mas o que acontece quando se criam máquinas que reproduzem a própria inteligência? O que acontecerá quando uma “superinteligência” puder solucionar qualquer tarefa cognitiva melhor e mais rápido? Utopias e distopias despontam. Será o maior evento na história humana – mas pode ser o último. A criatura poderá entregar soluções para erradicar a pobreza, o aquecimento global, guerras, doenças, a própria morte – ou pode subjugar seus criadores como animais de estimação e até exterminá-los.

Temores apocalípticos do tipo “Exterminador do Futuro” proliferam no reino da fantasia há décadas. Na última, lideranças científicas e tecnológicas começaram a lançar alertas. “Quem se tornar o líder (na Inteligência Artificial – IA) dominará o mundo”, disse não um supervilão cinematográfico, mas Vladimir Putin. O futuro se lembrará de 2023 como o momento “Sputnik” da IA. Tão rápido quanto algoritmos como o ChatGPT viralizaram em tablets nas mãos dos humanos, o medo invadiu seus corações.

“Devemos permitir que máquinas inundem nossos canais de informação com propaganda e falsidades?”, indaga um manifesto assinado por luminares da ciência e tecnologia, pedindo uma “pausa” no desenvolvimento da IA. “Devemos automatizar todos os empregos, incluindo os que nos satisfazem? Devemos desenvolver mentes não humanas que podem nos superar em número, cognição, nos tornar obsoletos e nos substituir? Devemos arriscar perder o controle da nossa civilização?” Uma advertência do Center for AI Safety, subscrita por CEOs e programadores de empresaslíderes em IA – como Google e OpenAI –, resumiu tudo: “Mitigar o risco de extinção da IA deve ser uma prioridade global junto com outros riscos em escala social como pandemias e guerra nuclear”.

Tecnicamente, essa mitigação é conhecida como o “problema do alinhamento”: é preciso alinhar os objetivos da IA com os nossos antes que ela se torne “superinteligente”. Há os riscos da malevolência humana – IAs programadas para algo devastador – e os da competência das máquinas – IAs programadas para uma meta benéfica, mas que desenvolvem métodos destrutivos para atingi-la.

Há consensos sobre princípios que devem nortear o desenvolvimento de máquinas inteligentes, como confiabilidade, transparência, privacidade ou imparcialidade. Alguns podem ser materializados em leis agora mesmo. Por exemplo, ninguém jamais deveria fazer com que robôs se passem por humanos nem empregálos em áreas críticas como saúde, o sistema judicial e o setor militar sem a pré-aprovação do Poder Público e a garantia de humanos responsáveis pela decisão final. Outros exigirão deliberações entre governos, empresas de tecnologia, ONGs, academia e a sociedade civil como um todo. Nenhuma solução será definitivamente satisfatória se não for global. Felizmente, há precedentes, como os controles de armas nucleares ou da engenharia genética.

Mais do que frear o desenvolvimento técnico da IA, é preciso acelerar a busca por sua segurança. De resto, é preciso alinhar as expectativas. Nenhuma tecnologia jamais fez ou fará um milímetro de diferença se não for superado o supremo desafio humano de usar o conhecimento não para alimentar o egoísmo e a destruição, mas para estimular a solidariedade e a inteligência. “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”, perguntou-se T.S. Eliot. Nós criamos máquinas capazes de computar quantidades ilimitadas de informação e estamos criando máquinas superprodutoras de conhecimento. Os benefícios potenciais da Inteligência Artificial são imensos, já que tudo o que amamos na civilização é um produto da inteligência. Mas tudo estará perdido se não formos capazes de dominá-la com sabedoria.

Ártico quente

O Estado de S. Paulo

Estudo antecipa em uma década verões sem gelo no oceano e põe pressão sobre as emissões de carbono

O Oceano Ártico não apresentará mais gelo marinho no verão a partir da década de 2030 em decorrência das emissões ainda elevadas de gases do efeito estufa, concluiu recente estudo publicado pela Nature Communications. A pesquisa antecipa em pelo menos uma década este grave cenário, para o qual seus autores não veem mais remédio. A consequência será percebida em todo o planeta, na forma de ondas de calor, chuvas e secas extremas e incêndios cada vez mais frequentes e devastadores. Não há economia, território nem população imunes a esses efeitos.

O Ártico sem gelo nos meses de setembro, fim do verão no Hemisfério Norte, induz à aceleração de seu próprio aquecimento e diminui a capacidade de o planeta refletir os raios solares. Essa situação produz um componente tão preocupante quanto esses. O derretimento mais rápido do permafrost, as áreas congeladas de solo e detritos orgânicos, liberará maiores volumes de dióxido de carbono e metano na atmosfera. Funcionará, portanto, como um sistema de retroalimentação do degelo e do aquecimento global.

O quadro exposto na pesquisa Observationally-constrained projections of an ice-free Arctic even under a low emission scenario é resultado inquestionável da ação humana. O alerta aumenta a pressão sobre líderes mundiais em torno de compromissos mais assertivos e ambiciosos durante a COP 28, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima marcada para dezembro, em Abu Dabi. Em especial, sobre a redução efetiva e em prazo mais curto do uso de combustíveis fósseis e sobre a ajuda financeira dos países mais ricos à transição energética dos menos desenvolvidos.

Na tomada de decisões em Abu Dabi, os líderes devem considerar a hipótese muito provável de esse cenário vir a ser pior. Os cientistas Dirk Notz, SeungKi Min, Yeon-Hee Kim e Elizaveta Malinina valeramse do quadro mais otimista desenhado pelo quase esquecido Acordo de Paris, de 2015, como base para suas simulações. Ou seja, de que a temperatura média do mundo não se elevará acima de 2°C até o fim do século, em comparação à verificada no início da Revolução Industrial, nem ultrapassará o limite de 1,5°C até 2030.

Postergar o degelo do Ártico ainda é possível, segundo os três cientistas, mas dependeria de um esforço coletivo bem mais robusto para que o aumento de 1,5°C não se dê em tão breve prazo. As perspectivas, porém, são mínimas. Em recente relatório, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) prevê essa marca atingida cinco anos antes, em 2028.

Na preparação da COP 28, os Estados Unidos e outros países se articulam para atingir a meta de desembolso de R$ 100 bilhões para o fundo para a transição climática. Esse objetivo fora traçado no Acordo de Paris, e relegado às gavetas pelas maiores economias. Está claro que os países desenvolvidos e os maiores emissores terão, desta vez, de apresentar compromissos mais custosos para si. No caso do Brasil, espera-se o efetivo combate ao desmatamento dos biomas nacionais como melhor contribuição para adiar essa sina do distante Ártico.

O olhar de Pelé para as crianças continua atual

Correio Braziliense

Era uma quarta-feira, o Maracanã estava lotado de torcedores, na expectativa do milésimo gol de Pelé, depois de uma contagem regressiva na qual o rei havia frustrado os torcedores, ao jogar na Paraíba e na Bahia

Era uma quarta-feira, o Maracanã estava lotado de torcedores, na expectativa do milésimo gol de Pelé, depois de uma contagem regressiva na qual o rei havia frustrado os torcedores, ao jogar na Paraíba e na Bahia. O zagueiro vascaíno Renê cometeu um pênalti na entrada da área, aos 33 minutos do segundo tempo. Pelé aprendera com Didi, na seleção brasileira da Copa de 1958, a dar a famosa paradinha, depois de três passos, antes de bater na bola e deslocar o goleiro. O argentino Andrada até saltou no canto certo, mas não evitou o gol. Era o dia 19 de novembro de 1969. O Santos venceu o Vasco por 2x1.

Depois do gol, o jogo parou por 20 minutos. Aos prantos, carregado pelos colegas, Pelé falou aos repórteres: "Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha o Natal das pessoas pobres (…) Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só em festa. Ouçam o que eu estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado". Naquele 19 de novembro de 1969, em pleno regime militar, muitos viram demagogia na declaração, mas ela foi fruto de um episódio que ocorrera dias antes.

Pelé havia saído do treino em Santos e viu uns garotos tentando roubar um carro perto do seu. Deu uma bronca nos meninos e mandou que fossem embora, sem roubar carro nenhum. Ao comemorar o gol, lembrou-se da dificuldade de se crescer e se educar no Brasil. "Foi a primeira coisa que me veio à cabeça", explicaria, 50 anos depois. Pelé marcou 1281 gols na sua carreira. Quando criança, foi entregador, engraxate e vendedor de picolés, como muitas crianças fazem até hoje.

A preocupação de Pelé permanece atual. Há muitas crianças em situação de risco no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre Trabalho de Crianças e Adolescentes. Um dos problemas mais graves é o trabalho infantil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou 1,768 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham em todo o território nacional, o que representa 4,6% da população (38,3 milhões) nesta faixa etária. Esses dados são os mais recentes, porém de 2019.

Amanhã é o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, instituído pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2002, data da apresentação do primeiro relatório global sobre o trabalho infantil. De acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), entre os anos de 2016 a 2019, o contingente de crianças e adolescentes trabalhadores infantis no Brasil havia caído de 2,1 milhões para 1,8 milhão. Entretanto, com a pandemia e a desarticulação de políticas públicas no governo passado, a situação pode ter se deteriorado.

Trabalho infantil é toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, até 13 anos, qualquer trabalho infantil é proibido; de 14 a 16, admite-se a condição de aprendiz; de 16 a 17, são proibidas as atividades noturnas, insalubres, perigosas e penosas, consideradas prejudiciais à formação intelectual, psicológica, social e/ou moral do adolescente.

As piores formas de trabalho infantil definidas pela OIT são as de escravidão ou práticas análogas: venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório (inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados); utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de pornografia ou atuações pornográficas; utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, podem prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.

O trabalho infantil é uma herança do passado colonial e escravocrata. Além de ser uma forma brutal de exploração de mão de obra, é um fator estrutural de desigualdade social, porque afasta as crianças da rede escolar ou compromete seu aprendizado de forma quase irreversível. Muitas vezes, as crianças são exploração pelos próprios pais. Identificar e denunciar a exploração do trabalho infantil é uma forma de combater o problema.

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