O Globo
Enquanto o STF não decide e o Congresso
está tentando mudar a Constituição, os povos indígenas continuam correndo risco
Raoni Metuktire chega cedo em seus
compromissos. Apareceu antes da hora no evento do Dia do Meio Ambiente, no
Palácio do Planalto, na segunda-feira, 5. Sentou-se bem na frente. Estava ali
para conseguir uma audiência com o presidente Lula e falar do assunto que
preocupa seu povo e todos os povos indígenas, o marco temporal. Na quarta, 7,
meia hora antes da sessão do Supremo, Raoni já estava sentado na plateia. Do
lado, Bemoro, seu tradutor, do outro Yabuti Metuktire, todos da terra indígena
Capoto Jarina.
Na segunda, ele ficou atento a tudo e, de vez em quando, falava no idioma mebêngôkre com Bemoro. Houve um momento em que um assessor do presidente chegou e eles saíram juntos para dentro do Palácio. No início da cerimônia ele foi levado para o palco, junto a uma líder indígena. Quando Lula fez a primeira menção aos povos indígenas eles se levantaram e colocaram um colar no presidente. Com gestos simbólicos, conversas de bastidores e muitas manifestações de rua, na semana passada, os indígenas lutaram contra o que para eles parece o fim do mundo, o marco temporal.
Antes de se sentar no plenário do STF,
Raoni havia conseguido falar com pelo menos um ministro do Supremo. Espalhadas
pelo auditório, várias etnias coloriam o ambiente, sempre repleto de ternos
uniformes. Para eles, é questão de vida ou morte saber se aquela interpretação
restrita da Constituição passaria a valer no Brasil. Por isso estavam todos
mobilizados, inclusive o velho cacique Kayapó.
O ministro Alexandre de Moraes participou
da audiência remotamente e tentou um inexistente caminho do meio entre o voto
do relator, Edson Fachin, e o do ministro Nunes Marques. De mais importante na
sua fala foi o reconhecimento de que a proteção constitucional aos direitos
originários sobre terras que os indígenas “tradicionalmente ocupam” independe
do marco temporal. Afastava, portanto, a tese de que indígenas só podem
reivindicar terras onde estavam no dia 5 de outubro de 1988. O ministro André
Mendonça alegou que precisava pensar sobre o voto de Alexandre de Moraes e
pediu vistas. Nenhuma surpresa. Todo mundo sabia que ele tentaria parar o
julgamento.
Há quem defenda a ideia equivocada de que o
STF está legislando, porque o Congresso está debruçado sobre esta matéria. É
obrigação indeclinável da corte constitucional interpretar a Constituição. Este
é seu dever institucional. O artigo 231 da Carta Magna foi escrito para
garantir o direito dos indígenas, e não apenas a partir da sua promulgação. A
excelente reportagem de Paulo Celso Pereira, em O GLOBO, investigou os debates
na Constituinte, as palavras do relator do artigo 231, senador Jarbas
Passarinho, e entrevistou ex-constituintes. A resposta que o jornalista trouxe
é que não se pensou em um marco temporal.
No Congresso tramita o PL 490, já aprovado
em regime de urgência na Câmara. Foi agora para o Senado sem passar pela
Comissão de Direitos Humanos, mas com a promessa do senador Rodrigo Pacheco de
que não haverá açodamento. Por óbvio, um PL não modifica a Constituição, nem
pode regulamentar um artigo de maneira oposta ao que está escrito. Mas é isso
que o Congresso está tentando.
Entrevistei a antropóloga Beatriz Matos,
diretora do Departamento de Proteção Territorial e dos Povos Indígenas Isolados
e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas. Ela é viúva de Bruno
Pereira. Beatriz explicou o lado mais terrível do PL 490.
— O PL diz que pode ser realizado o contato
com povos isolados por interesse econômico. Isso repetiria o que aconteceu na
década de 70, em que foi forçado o contato e muitos indígenas, e até povos
inteiros, morreram. E, claro, o povo indígena isolado não tem nenhuma condição de
provar nada, não estão no nosso sistema jurídico e legal. Isso é verdade mesmo
para os não isolados.
O PL tem o objetivo inequívoco de tomar
terras que são ocupadas por indígenas, mesmo as demarcadas. E o motivo da
cobiça é evidente.
— O modo de vida dos indígenas permitiu a
preservação desse território, por causa de como esses povos lidam com a
floresta. Justamente por isso são territórios muito cobiçados e agora há o
financiamento desses crimes ambientais pelo crime organizado e pelo tráfico de
drogas —explica Beatriz.
Convém não definir o marco temporal como o
caminho de dar segurança jurídica ao país. É a maneira de manter o tempo sem
lei na floresta e no Brasil.
Um comentário:
Marco temporal o ca...
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