Folha de S. Paulo
A comunicação eletrônica é revolucionária
quanto à locução, mas com mediocridade reveladora do pior no humano
Numa fábula de Esopo, o cão é atraído por uma máscara caída no caminho.
Depois de conferir, afasta-se, refletindo: "É bonita, mas não tem
miolos". Noutra, atravessando o rio com um pedaço de carne na boca, o cão
vê no fundo a sombra maior do petisco. Abandona então a presa em busca da miragem,
perdendo tanto a carne quanto a sombra.
Atualizadas, as historinhas ensejam ponderação sobre a realidade artificial (agora "computação espacial") formadora de cidadania e até sobre a corrosão do caráter que, entre nós, vem caracterizando a esfera pública. São funcionais as máscaras sociais construídas pelo tecnomercado, mas o preço é a neutralização dos "miolos", isto é, da autonomia de pensar e de discernir moralmente. Trocam-se fatos pelo mascaramento deslumbrante da tecnologia, em que verdade e mentira se equivalem automaticamente.
Com esse fundo, cabe perguntar como é
possível que, num curto prazo, maiorias silenciosas tenham se convertido em
irascíveis bolhas falantes nas redes sociais. Hipótese de Umberto Eco: "A internet deu voz aos imbecis". Na verdade, deu voz a
todo mundo.
A comunicação eletrônica é revolucionária
quanto à locução, mas com uma mediocridade reveladora do pior no humano. Sem
autonomia elocutiva, confunde-se fala de papagaio com liberdade de expressão. A
função mensageira, que as mitologias atribuíam aos anjos, parece hoje assumida
pelo Psicopompo, mítico condutor dos mortos: a tecnologia desnorteada extermina
o diálogo.
O que se entrevê de imediato nas redes
deixa perceber que, não só meros instrumentos do homem, são objetos
psiquicamente refletidos. Quer dizer, demandam, além de racionalidade
funcional, sensações e sentimentos, presentes nas regiões da consciência e do
subconsciente. Dão margem a certa descoberta de si mesmo. E a uma tosca
interpretação de liberdade.
Descobrir-se implica desnudamento pessoal,
da juventude ao amadurecimento. Mas nem todos vivem essa reinvenção de si
mesmo, não amadurecem. É que na recomposição de imagens do corpo próprio, a
máscara ("persona", em latim, daí personalidade), componente moral do
caráter, modula-se dialeticamente: imbecil é o que não se descobre.
Mas, a rede, como objeto psiquicamente
refletido, democratiza e acelera o processo, ao modo de um piloto automático de
almas mortas. Tal é o êxtase do desnudamento digital: o imbecil exibe-se com
descaramento, enquanto o deslumbre da tecnosfera o prende no loop de zeramento
do caráter, na máscara sem miolos. Moralmente nu, abre-se à liberdade egóica de
odiar, ofender, destruir. E, atraído pela sombra perdida de si mesmo, vota nos
inomináveis, não por pacto deliberado com o mal, mas por colapso humano.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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