Erradicar analfabetismo é prioridade
O Globo
É vergonhoso que mais da metade dos alunos
até o 2º ano da rede pública não saiba ler nem escrever
O Brasil tem fracassado no desafio
educacional mais simples e relevante: ensinar as crianças a ler e a escrever.
Entre 2019 e 2021, a parcela alfabetizada dos alunos da rede pública diminuiu a
ponto de os não alfabetizados se tornarem maioria entre os alunos matriculados
no 2º ano do ensino fundamental — etapa em que todas as crianças deveriam estar
alfabetizadas.
Em 2019, 60,3% dos estudantes pesquisados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sabiam ler e escrever o básico. A proporção retrocedeu em 2021 para 43,6%, uma queda vertiginosa de 16,7 pontos percentuais. Levantamento conjunto feito por Itaú Social, Fundação Lemann e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) constatou que 40% dos alunos tinham dificuldades de aprendizado e que 11% enfrentavam dificuldades em leitura e escrita incompatíveis com a série em que estavam matriculados.
É verdade que a pandemia causou prejuízo ao aprendizado.
Como única alternativa, o ensino passou a ser feito à distância, e os
resultados obtidos foram flagrantemente negativos. Parte do retrocesso na
alfabetização tem relação com isso, mas a pandemia não pode ser tida como
responsável por todas as mazelas do ensino brasileiro. Mesmo antes da Covid-19,
em 2019, 39,7% dos alunos eram considerados não alfabetizados pela pesquisa do
Inep. No último Estudo Internacional de Progresso em Leitura, o teste de
alfabetização conhecido pela sigla em inglês Pirls, o Brasil ficou à frente
apenas de cinco países num ranking de 65.
Constatado o problema, o MEC lançou em junho
uma política para tentar ajudar estados e municípios a reverter a situação
vergonhosa: o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. O governo federal pretende
investir R$ 1 bilhão neste ano e R$ 3 bilhões nos próximos três. O dinheiro
servirá para distribuir 7 mil bolsas a articuladores do programa de
alfabetização nos estados e municípios, se destinará à formação de professores
especializados em alfabetização e financiará a produção de material didático. O
resultado é incerto, devido à disparidade entre as estruturas educacionais de
27 unidades federativas e 5.570 municípios. O monitoramento constante da
execução do programa será vital para evitar erros e desperdício de recursos.
Nos 35 anos desde a redemocratização, o poder
público vem, acertadamente, dando atenção à educação.
As frentes são múltiplas. Nos últimos tempos, ganharam prioridade a qualidade
dos ensinos fundamental e médio, este sujeito a altas taxas de evasão. Antes de
tudo, porém, é essencial tratar da alfabetização. Sem saber ler nem escrever
direito, não há como o aluno usufruir o que lhe será ensinado depois. O ideal é
que também haja cuidado especial com as creches públicas, para que não sejam
apenas um espaço para pais e mães deixarem os filhos enquanto trabalham.
Crianças precisam ser estimuladas desde cedo.
Prevista na Constituição, a alfabetização é
um dos direitos mais negligenciados pelo Estado. Os avanços verificados no
passado não servem para abater a dívida que o poder público ainda tem. O Brasil
precisa encarar com seriedade a missão de erradicar a vergonha do
analfabetismo.
Imposto arcaico obriga brasileiros a
sustentar a família real portuguesa
O Globo
Laudêmio cobrado de imóveis em Petrópolis
beneficia herdeiros do trono no Brasil e em Portugal
No próximo dia 15 de novembro, a República
brasileira completará 134 anos. Ao longo desse período, passou por transformações
profundas de natureza econômica, política e social. Mas uma coisa se mantém
imutável: cidadãos brasileiros continuam sustentando a família real — não
apenas a brasileira, mas a portuguesa também.
Em 1976, Portugal aboliu
o regime jurídico que permite a cobrança perpétua de taxas e propriedades
cedidas por famílias reais ou ordens religiosas, conhecido como enfiteuse. Mas
esse regime continua em vigor no Brasil, permitindo que a família real embolse
2,5% de todas as transações imobiliárias realizadas na região central de Petrópolis,
na antiga Fazenda do Córrego Seco. O imposto, chamado oficialmente de laudêmio,
mas conhecido como “taxa do príncipe”, é cobrado desde 1843, quando Dom Pedro
II decidiu ceder terras que herdara. Hoje é arrecadado pela Companhia
Imobiliária de Petrópolis (CIP), constituída pelos herdeiros da família real.
Os valores recolhidos não são de conhecimento
público, mas sustentam os descendentes da realeza, conhecidos por não abrir mão
do privilégio. No último fim de semana, Maria Francisca Pio de
Bragança,terceira na linha sucessória do trono português, se casou no suntuoso
Palácio Nacional de Mafra, numa festa para 1.200 convidados. Maria Francisca é
filha de Duarte Pio de Bragança, pretendente ao trono português e acionista
minoritário da CIP. “Todo o território onde está construído Petrópolis é
propriedade da minha família materna e daí recebemos também um rendimento”,
afirmou ele em 2020 em entrevista à jornalista portuguesa Júlia Pinheiro.
O regime de enfiteuse foi instituído pelo
imperador Justiniano, ainda no século I, para regular a propriedade das regiões
conquistadas pelo Império Romano. Facilitava a intervenção de Roma para obrigar
o ocupante da terra a produzir e gerar renda para pagar impostos. No século
XIII, foi absorvido pelo ordenamento jurídico português, tendo sobrevivido até
a Revolução dos Cravos. Continua vivo no Brasil, graças à benevolência de uma
República incapaz de se livrar do anacronismo monárquico.
Pelo que determina o artigo 49 da Constituição, a enfiteuse é usada também para terrenos atribuídos à Marinha — todo o litoral brasileiro e margens de alguns rios do litoral, “até onde for a maré mais alta”. Nesse caso, também é cobrado laudêmio, que só poderia ser eliminado por meio emenda constitucional. Seria uma medida sensata, que já consta de proposta em tramitação na Câmara. Quanto à enfiteuse que rege a antiga propriedade do imperador em Petrópolis, parlamentares e juristas afirmam que pode ser extinta por um simples projeto de lei. Como a República tem quase 134 anos e a Independência de Portugal mais de dois séculos, já passou da hora de o Brasil acabar com ela.
FMI vê cenário de pouso suave, mas pode estar
sendo otimista
Valor Econômico
Cada 10% de aumento no preço do barril de
petróleo reduz 0,15% a perspectiva de crescimento nos 12 meses seguintes
O Fundo Monetário Internacional vislumbra um
cenário pouco otimista para a economia mundial em 2024: o crescimento será
menor e a inflação cairá, porém seguirá alta. O cenário-base do FMI, porém, é o
de um pouso suave das duas principais economias. Mas há uma série de riscos
importantes que podem se materializar e desacelerar mais a produção global.
O relatório Perspectivas da Economia Mundial,
divulgado nesta semana pelo FMI, prevê que o crescimento global ficará
praticamente estagnado: de 3,5% (em 2022), para 3% (2023) e 2,9% (2024). Ou
seja, continuará abaixo da média pré-pandemia (2000 a 2019) de 3,8% ao ano. Os
países ricos, que passam por um ciclo de aperto monetário maior, vão responder
por quase toda essa desaceleração (2,6%, 1,5% e 1,4%, respectivamente). Nos
países emergentes, o crescimento segue bastante estável (4,1%, 4% e 4%).
Já em relação à inflação global, o FMI prevê
uma contínua queda (de 8,7% em 2022, para 6,9% em 2023 e 5,8% em 2024), puxada
pelo ciclo de aperto monetário e por preços contidos das commodities. Ainda
assim, a inflação continuará acima das metas até 2025 na maioria dos países.
Para o Brasil, o FMI prevê uma redução mais
acentuada do crescimento, de 3,1% neste ano para 1,5% em 2024, bastante em
linha com as projeções do mais recente boletim Focus, do Banco Central, que
fala em 2,92% e 1,5%, respectivamente.
Em geral, o relatório do FMI aponta para um cenário de recuperação lenta pós-pandemia, mas com probabilidade maior de um pouso suave das maiores economias, EUA e China. É o que diz o economista-chefe do Fundo, Pierre-Olivier Gourinchas, em texto desta semana no FMI Blog. Ele diz que a economia global “está mancando, e não correndo”, mas que mostrou resiliência em relação ao choque da guerra da Ucrânia no ano passado e que “as projeções são consistentes com um cenário de pouso suave, que trará a inflação para baixo sem uma grande reversão para baixo da atividade, especialmente nos EUA.”
Há um intenso debate pelo mundo sobre se os
EUA conseguirão evitar uma recessão neste momento em que os juros subiram para
conter a inflação, que chegou aos dois dígitos em 2022. O Fed (banco central
dos EUA) deve realizar mais um aumento dos juros, mas segue minimizando o risco
de uma recessão. Essa é a linha do FMI, que prevê que os EUA crescerão 2,1%
neste ano e 1,5% em 2024.
Uma série de economistas e entidades, porém,
acredita na possibilidade de uma recessão nos EUA. O economista Mohamed
El-Erian alertou em artigo recente (FT, 2/10) que a economia americana deve se
enfraquecer à medida que os mercados forem internalizando a probabilidade cada
vez maior de as taxas de juros ficarem elevadas por um longo período.
O FMI parece também otimista em relação à
China, apesar de ter revisto um pouco para baixo as suas projeções de
crescimento, de 5% neste ano e 4,2% no ano que vem. As expectativas em relação
à China também estão cercadas de incertezas. Um estudo de Daniel Rosen,
especialista em economia chinesa, publicado neste mês pela consultoria Rhodium
Group, estima que a taxa real de crescimento do país neste ano pode ser menos
da metade da prevista pelo FMI, ficando na casa de 2%.
Segundo Rosen, a economia chinesa ainda está
sofrendo em cheio o impacto do colapso do seu mercado imobiliário. Nesta
semana, a maior incorporadora da China, a Country Garden, anunciou que deixou
de pagar uma dívida de US$ 60 milhões com credores estrangeiros e que poderá
não pagar dívidas que estão para vencer, devido à forte queda de suas vendas de
imóveis residenciais. Um default em grande escala da Country Garden, como ocorreu
com a Evergrande, pode ter consequências importantes.
Rosen estima ainda que o governo chinês terá
de socorrer governos locais e que as exportações chinesas serão bastante
afetadas pelas tensões com os EUA. Ele sugere que o FMI se baseia demais em
dados oficiais chineses para suas projeções.
Além desses riscos econômicos, há agora novas
incertezas relacionadas à guerra entre Israel e o grupo palestino Hamas. A
vice-diretora-gerente do Fundo, Gita Gopinath, afirmou que, se o conflito se
expandir para outros países do Oriente Médio e causar um alta maior dos preços
do petróleo, a economia mundial será afetada. Segundo ela, cada 10% de aumento
no preço do barril de petróleo reduz 0,15% a perspectiva de crescimento nos 12
meses seguintes.
O conflito, que começou no último sábado, fez
com que o barril de petróleo do tipo Brent (referência global) subisse da faixa
de US$ 84 para US$ 87. Mas o preço vem se moderando desde então, influenciado
pela perspectiva de demanda menor nas principais economias.
Não está claro ainda se há o risco de o conflito se expandir. O Hamas, que controla a Faixa de Gaza, é apoiado e financiado pelo Irã, mas não se sabe ainda se Israel tentará alguma ação retaliatória contra o Irã. Outro risco de ampliação do conflito é se o grupo Hezbollah (baseado no Líbano) e a Síria, ambos aliados iranianos, se envolveram mais profundamente na disputa hoje circunscrita entre Israel e o Hamas.
Ecos varguistas
Folha de S. Paulo
Ex-sindicalistas, Lula e Marinho não sabem
lidar com o novo mercado de trabalho
Não é novidade que a esquerda brasileira e
particularmente o PT tenham
dificuldade para atualizar velhas concepções sobre relações entre capital e
trabalho.
O pendor pelo dirigismo e pelo resgate do
modelo sindical dos tempos de Getúlio
Vargas ainda encontram guarida no governo, a julgar pelas
manifestações do ministro do Trabalho, Luiz Marinho.
Temas como terceirização,
contribuição sindical, repasses do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para a
Previdência e regulamentação de trabalho a partir de aplicativos estão na pauta
e podem resultar em retrocessos.
A lei que ampliou a possibilidade de
terceirização foi aprovada em 2017, permitindo que as empresas contratem
prestadores de serviço também para as chamadas atividades-fim —antes, a
permissão legal só valia para trabalho em áreas periféricas e de suporte ao
negócio principal.
São equivocadas e temerárias afirmações de
Marinho de que a norma "levou a um processo brutal de precarização e
aumentou o trabalho análogo à escravidão", só
faltando "amarrar e chicotear".
Oriundo do sindicalismo, como Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT), o ministro não reconhece que hoje as cadeias produtivas são
dispersas e especializadas a ponto de tornar a distinção impraticável. Tolher a
flexibilidade das empresas não gerará empregos de qualidade.
Marinho também se mostra equivocado quando
fala da contribuição sindical. Comparar a
cobrança aprovada em assembleia a uma reunião de condomínio é
enganoso, a começar pelo fato de não estar claro como será exercido o direto de
oposição do trabalhador.
É fato que o país ganha com sindicatos atuantes,
mas o caminho para a modernização seria ampliar a concorrência, com o fim da
unicidade sindical, algo que não interessa aos dirigentes estabelecidos.
Também na proposta de reduzir repasses do FAT
à Previdência nota-se o desejo dirigista. Alimentado pela receita do PIS/Pasep,
o fundo direciona parte de seus recursos ao BNDES, além de custear seguro-desemprego,
abono salarial e, desde 2019, gastos do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS).
Agora, Marinho quer
ampliar os repasses ao BNDES, supostamente úteis para gerar emprego.
Trata-se, na prática, de ampliar o déficit previdenciário e facilitar a
concessão de crédito subsidiado a setores politicamente influentes.
Por fim, permanece a dificuldade em lidar com
relações trabalhistas que fogem aos padrões da CLT, de relevância crescente no
país. Há mérito na tentativa de
buscar a melhoria das condições de trabalhadores por aplicativos,
mas a questão não pode ser tratada à base de bravatas contra
as empresas.
Atores da guerra
Folha de S. Paulo
Conflito Israel-Hamas tem risco de expansão,
mas rivais por ora marcam posição
Conflito com raízes nas desavenças em torno
da partilha da Palestina britânica,
há 75 anos, a guerra entre o grupo terrorista Hamas e Israel traz
subjacente o temor de uma escalada regional insondável.
Os pavios emaranhados do barril de pólvora
são conhecidos. De um lado, Israel, vítima de um ataque brutal por parte dos
palestinos que governam a Faixa de Gaza,
recebe apoio dos Estados
Unidos e de boa parte do mundo ocidental.
Além da retórica, o governo do
presidente Joe Biden posicionou
junto à costa israelense 1 de seus 11 grupos de porta-aviões e
anunciou o envio de uma segunda esquadra semelhante. Além disso, reforçou suas
bases aéreas na região e liberou armas e dinheiro a Tel Aviv.
Os porta-aviões são a expressão máxima da
projeção de poder imbatível dos EUA, com quase uma centena de aeronaves e
acompanhados por navios de escolta com grande pode de fogo. Mais do que isso,
são um sinal para
o Irã.
A antiga Pérsia financia o Hamas. Não só:
o Hizbullah libanês
é um de seus braços militares e apoia outros grupos
terroristas. Teerã ainda tem a Síria, outro país que não reconhece
os israelenses, como aliado no chamado Eixo da Resistência contra Tel Aviv.
Seu chanceler fez um giro de reuniões com
seus pares, mas significativamente o país nega ter tido envolvimento nos atos
do Hamas, versão que foi aceita até aqui.
As escaramuças com o Líbano escalaram,
o que preocupa os israelenses, dado que o Hizbullah é força mais poderosa do
que o Hamas. Por ora, são mais para marcar posição, porém neste domingo (15)
elas se tornaram particularmente violentas. Ato contínuo, o chanceler do Irã
advertiu que os rivais estão "com as mãos no gatilho".
Na Síria, Israel acenou atacando aeroportos
do país que poderiam ser entrepostos de armas.
Já a Rússia criticou
EUA e Israel por seus movimentos, temendo ser dragada a um embate para o qual
não tem músculos, ora ocupados na Ucrânia conflagrada —Vladimir
Putin é aliado do eixo iraniano e tem bases militares na Síria.
Apesar desses inúmeros pontos de atrito, os atores
externos ao embate em Israel têm sido responsáveis por manter prontidão e
comedimento no mesmo diapasão.
A dosimetria da retaliação em Gaza é fator central para esse equilíbrio, e tudo o que o Hamas deseja é uma convulsão regional. Isso dá medida do desafio para Israel, dado que inação não é alternativa.
Um falso e paralisante dilema
O Estado de S. Paulo
O governo Lula aposta no mesmo antagonismo
entre público e privado que marcou o governo Bolsonaro. Só inverteu os sinais.
O País precisa do dinamismo da sociedade e do Estado juntos
Em recente artigo no Estadão, o economista
Pedro Malan chamou a atenção para um falso dilema presente na política
nacional, que vê o desenvolvimento social e econômico como fruto exclusivo ou
da atuação do Estado ou da sociedade. “Falso o dilema porque é preciso tentar
combinar o dinamismo de ambos, Estado e sociedade”, escreveu Pedro Malan (Somos
a matéria de que são feitos os sonhos, dia 8/10/2023).
No governo anterior, havia a ideia de que
todos os grandes problemas brasileiros eram decorrência da máquina estatal. O
Estado seria o grande obstáculo a ser removido. Tal percepção conduziu a muitos
equívocos – em primeiro lugar, a um desprezo pelo conhecimento do funcionamento
do Estado e dos desafios concretos a serem enfrentados. Prevaleceu uma
compreensão distorcida e rigorosamente equivocada de liberalismo, que levou ao
oposto do que essa concepção político-filosófica propugna. As soluções dos
problemas nacionais já não demandariam estudo, planejamento, discussão e
negociação. Não exigiriam conhecimento da realidade. Bastaria “reduzir o
tamanho do Estado” para que o País deslanchasse rumo ao desenvolvimento social
e econômico.
Nessa visão simplista e irreal das coisas,
tudo o que representasse diminuição da presença estatal na vida da sociedade
seria, por si só, positivo. Com isso, em vez de uma administração federal
atenta aos problemas concretos do País, buscando propor caminhos efetivos, o
que se teve foi um governo propagando ideias irrealizáveis – como a
privatização de todas as empresas estatais – ou simplesmente nefastas – como o
desmonte dos órgãos públicos de fiscalização. Afinal, se tudo o que vem do
Estado é equivocado e prejudicial, a própria lei deixa de merecer respeito,
para se tornar algo a ser burlado ou simplesmente ignorado.
Exemplo paradigmático desse modo simplista e
equivocado de lidar com os problemas nacionais foi o descuido do governo
Bolsonaro em relação à educação pública, cujas redes representam mais de 80% do
ensino ofertado às crianças e adolescentes. A preocupação do governo estava
concentrada na defesa do homeschooling como a grande solução educativa, numa
ignorância da própria realidade familiar brasileira.
Felizmente, esse modo binário de enxergar o
País – a esfera privada equivalente a positivo, e a pública, a negativo – foi
rejeitado nas urnas. A pandemia escancarou os efeitos nocivos de tal obtusidade
na administração pública. No entanto, paradoxalmente, o governo atual tem se mostrado
incapaz de perceber o equívoco dessa binariedade, como se bastasse inverter os
sinais – a esfera pública como sinônimo de virtude, e a privada, de vício e
ganância – para a retomada do crescimento econômico e a redução das
desigualdades sociais.
O presidente Lula tem insistido em discursos
e movimentos estatizantes, equiparando o aumento da participação estatal ao
desenvolvimento social e econômico. Também aqui o conhecimento da realidade
parece importar pouco. Não se busca verificar os efeitos de cada medida sobre a
população e a economia para, depois, avaliar e definir quais seriam as
políticas públicas mais adequadas. Tudo já estaria devidamente carimbado, se
favorável ou desfavorável ao interesse público, a depender da relação com o
Estado.
Ou seja, a mudança de governo parece não ter
sido capaz de livrar o País dessa paralisante disjuntiva, desse falso dilema.
Segue enredado numa compreensão irreal a respeito do Estado e da sociedade.
Superar essa visão reducionista, seja qual
for a orientação ideológica, é requisito para o desenvolvimento do País. Não há
razão para desprezar o dinamismo da sociedade. A promoção do interesse público
inclui o fomento de um ambiente de liberdade, no qual, respeitando os limites
da lei, os diversos interesses privados possam ser cultivados. Por sua vez, não
existe desenvolvimento sem um Estado eficiente, seja para estabelecer e fazer
cumprir as regras do jogo, seja para reduzir as desigualdades e cuidar dos mais
vulneráveis. O antagonismo entre público e privado faz mal a todos.
Mais uma chance para a América Latina
O Estado de S. Paulo
Crescente e duradoura, a demanda por comida,
minérios e energias verdes só gerará prosperidade se a região desarmar
armadilhas que a aprisionam em ciclos de crescimento sem desenvolvimento
Há cinco séculos a América Latina fornece
comida, combustíveis e metais ao mundo. Em entrevista ao Financial Times, o
presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Ilan Goldfajn, adverte
que a demanda crescente do século 21 por comida, energia verde e minerais
críticos oferece uma “tripla oportunidade”. Mas uma questão permanece: por que
numa região tão rica em recursos o povo é tão pobre? Se essa questão não for
enfrentada, tais oportunidades estão fadadas a ser desperdiçadas – de novo.
Até 2050, a população mundial crescerá de 8
bilhões para quase 10 bilhões. Com vastas terras agricultáveis e uma população
relativamente pequena, a América Latina é a maior exportadora de comida do
mundo. Também fornece um terço do cobre e metade da prata e contém 60% das
reservas de lítio, além de grafite, estanho e níquel, materiais cruciais para
as energias limpas. Mais próximos à superfície, eles são mais facilmente
extraíveis do que em outros lugares, e, numa região farta em sol, vento e água,
podem ser processados com energia renovável e barata.
O boom dos anos 2000 foi puxado pela
industrialização da China, que se desacelerou nos anos 2010. Já a transição
energética é global, incontornável e duradoura. Rivalidades geopolíticas levam
países ricos a realocar cadeias de fornecimento a regiões próximas e amistosas.
A América Latina é pacífica e neutra e, entre as regiões com países em
desenvolvimento, tem as democracias mais robustas.
As condições estão aí, mas também as mazelas
que dissiparam oportunidades como essas no passado. Desde a era colonial, a
região experimenta ciclos de crescimento sem desenvolvimento. Elites
latifundiárias semifeudais expandiram sua produção à custa da expropriação de
terras dos nativos e da exploração de seu trabalho e o de africanos,
calcificando uma sociedade desigual e repleta de desincentivos à produtividade
e à inovação. O melhor das monoculturas era exportado e tudo o mais era
importado.
No século 20, buscou-se reverter essa relação
de dependência com barreiras protecionistas e subsídios à indústria. Mas isso
perpetuou um setor pouco competitivo e dependente do Estado. As relações
corruptas entre os donos do poder e os do dinheiro se tornaram endêmicas, a
desigualdade aumentou e, ironicamente, a dependência das commodities também.
Hoje, em termos de barreiras comerciais, a
América Latina é a segunda região menos acessível do mundo, depois da África. A
educação é deficitária. A região investe 0,6% do PIB em pesquisa e
desenvolvimento, menos de um quarto da média da OCDE. A infraestrutura é
precária. E há sempre um demagogo pronto a esbanjar o dinheiro do boom de
commodities da vez bombeando os lucros das oligarquias e o consumo das classes
baixas, sem qualificar a oferta e as condições de crescimento sustentável. As
“décadas perdidas” se acumulam.
À “tripla oportunidade”, Goldfajn opõe um
“triplo desafio”: governos sem dinheiro, populações sedentas de serviços
públicos e baixo crescimento. Para capitalizar as oportunidades, os governos
precisam gerar espaço fiscal, reduzindo os custos e a ineficiência da máquina
pública, e sanear o manicômio tributário e regulatório que afugenta
investidores. Os protecionismos e privilégios precisam cair, ainda que
gradualmente, promovendo uma “destruição criativa” na indústria.
O dinheiro das commodities precisa ser
investido na diversificação das exportações e na agregação de valor (por
exemplo, incentivando fábricas de baterias com os metais extraídos), mas também
em educação, para qualificar a mão de obra, e infraestrutura, para baratear
custos, além de serviços públicos para reduzir inquietações sociais que
convidam a aventuras populistas. De resto, se a mineração é essencial para
impulsionar energias verdes e reduzir impactos climáticos, ela comporta
impactos em biomas e comunidades. Mitigá-los é crucial para que o
desenvolvimento prometido pelas commodities seja sustentável.
Mais do que uma década, esse desenvolvimento
é uma promessa de um século. Mas se a América Latina não aprender com a
história, estará condenada a um “século perdido”.
Mais mulheres nos tribunais
O Estado de S. Paulo
CNJ acerta ao criar mecanismo para reduzir a
falta de representatividade feminina nas cortes
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou
uma medida que pode produzir uma profunda e positiva mudança no Poder
Judiciário. Por unanimidade, foi criada uma política de alternância de gênero
no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário. A partir de
agora, nas promoções pelo critério do merecimento, os tribunais deverão
utilizar alternadamente uma lista exclusiva para mulheres e a lista mista
tradicional. Na promoção por critério de antiguidade, os atuais critérios foram
mantidos.
Nos termos aprovados pelo CNJ, a nova
política das duas listas é temporária, devendo perdurar até ser alcançada a
paridade de gênero nos tribunais. Caberá ao CNJ manter banco de dados
atualizado sobre a composição dos tribunais. Atualmente, do total de juízes de
primeiro grau em todo o Judiciário, 40% são mulheres. Nas cortes superiores e
nos tribunais de segunda instância, o porcentual de participação feminina é de
25%.
Relatora do ato administrativo que deu origem
à nova política de equidade no acesso às vagas nos tribunais, a conselheira
Salise Sanchotene lembrou, em seu voto, que a proposta “vem sendo debatida há
muito tempo, entre todos os envolvidos”. Além disso, mais do que uma total
invenção, a medida das duas listas na promoção pelo critério do merecimento
representa a continuidade da Resolução do CNJ 255/2018, aprovada durante a
presidência da ministra Cármen Lúcia . Para combater a assimetria na ocupação
de cargos na Justiça, o ato de 2018 já havia disposto que “todos os ramos e
unidades do Poder Judiciário deverão adotar medidas tendentes a assegurar a
igualdade de gênero no ambiente institucional”, com diretrizes e mecanismos
“para incentivar a participação de mulheres nos cargos de chefia e
assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos
institucionais”.
Ao deliberar sobre a nova política, o CNJ
lembrou que a igualdade prevista pela Constituição não é apenas formal, mas
também material. “Ela não se limita a proibir discriminações em desfavor de
grupos estigmatizados. A igualdade é vista como uma meta a ser perseguida pelo
Estado, que deve agir positivamente para promovê-la”, disse Daniel Sarmento, em
parecer citado pela conselheira Salise Sanchotene. Em 2013, o próprio Supremo
Tribunal federal (STF) reconheceu que “não há outro modo de concretizar o valor
constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de
desigualdade”.
A falta de equidade de gênero no Judiciário representa uma violação de direitos das mulheres indevidamente preteridas, como também gera impactos negativos sobre a própria atividade jurisdicional. A atual assimetria entre homens e mulheres nos tribunais é prejudicial ao sistema de Justiça. Como lembrou Sarmento em seu parecer, “não há uma única forma feminina de julgar”, mas é inegável que “as identidades pessoais, experiências de vida e valores exercem influência relevante sobre o modo como juízes e juízas atuam e decidem”. Uma melhor representatividade feminina no Judiciário, por isso, é um bem para todos.
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