segunda-feira, 16 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Erradicar analfabetismo é prioridade

O Globo

É vergonhoso que mais da metade dos alunos até o 2º ano da rede pública não saiba ler nem escrever

O Brasil tem fracassado no desafio educacional mais simples e relevante: ensinar as crianças a ler e a escrever. Entre 2019 e 2021, a parcela alfabetizada dos alunos da rede pública diminuiu a ponto de os não alfabetizados se tornarem maioria entre os alunos matriculados no 2º ano do ensino fundamental — etapa em que todas as crianças deveriam estar alfabetizadas.

Em 2019, 60,3% dos estudantes pesquisados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sabiam ler e escrever o básico. A proporção retrocedeu em 2021 para 43,6%, uma queda vertiginosa de 16,7 pontos percentuais. Levantamento conjunto feito por Itaú Social, Fundação Lemann e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) constatou que 40% dos alunos tinham dificuldades de aprendizado e que 11% enfrentavam dificuldades em leitura e escrita incompatíveis com a série em que estavam matriculados.

É verdade que a pandemia causou prejuízo ao aprendizado. Como única alternativa, o ensino passou a ser feito à distância, e os resultados obtidos foram flagrantemente negativos. Parte do retrocesso na alfabetização tem relação com isso, mas a pandemia não pode ser tida como responsável por todas as mazelas do ensino brasileiro. Mesmo antes da Covid-19, em 2019, 39,7% dos alunos eram considerados não alfabetizados pela pesquisa do Inep. No último Estudo Internacional de Progresso em Leitura, o teste de alfabetização conhecido pela sigla em inglês Pirls, o Brasil ficou à frente apenas de cinco países num ranking de 65.

Constatado o problema, o MEC lançou em junho uma política para tentar ajudar estados e municípios a reverter a situação vergonhosa: o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. O governo federal pretende investir R$ 1 bilhão neste ano e R$ 3 bilhões nos próximos três. O dinheiro servirá para distribuir 7 mil bolsas a articuladores do programa de alfabetização nos estados e municípios, se destinará à formação de professores especializados em alfabetização e financiará a produção de material didático. O resultado é incerto, devido à disparidade entre as estruturas educacionais de 27 unidades federativas e 5.570 municípios. O monitoramento constante da execução do programa será vital para evitar erros e desperdício de recursos.

Nos 35 anos desde a redemocratização, o poder público vem, acertadamente, dando atenção à educação. As frentes são múltiplas. Nos últimos tempos, ganharam prioridade a qualidade dos ensinos fundamental e médio, este sujeito a altas taxas de evasão. Antes de tudo, porém, é essencial tratar da alfabetização. Sem saber ler nem escrever direito, não há como o aluno usufruir o que lhe será ensinado depois. O ideal é que também haja cuidado especial com as creches públicas, para que não sejam apenas um espaço para pais e mães deixarem os filhos enquanto trabalham. Crianças precisam ser estimuladas desde cedo.

Prevista na Constituição, a alfabetização é um dos direitos mais negligenciados pelo Estado. Os avanços verificados no passado não servem para abater a dívida que o poder público ainda tem. O Brasil precisa encarar com seriedade a missão de erradicar a vergonha do analfabetismo.

Imposto arcaico obriga brasileiros a sustentar a família real portuguesa

O Globo

Laudêmio cobrado de imóveis em Petrópolis beneficia herdeiros do trono no Brasil e em Portugal

No próximo dia 15 de novembro, a República brasileira completará 134 anos. Ao longo desse período, passou por transformações profundas de natureza econômica, política e social. Mas uma coisa se mantém imutável: cidadãos brasileiros continuam sustentando a família real — não apenas a brasileira, mas a portuguesa também.

Em 1976, Portugal aboliu o regime jurídico que permite a cobrança perpétua de taxas e propriedades cedidas por famílias reais ou ordens religiosas, conhecido como enfiteuse. Mas esse regime continua em vigor no Brasil, permitindo que a família real embolse 2,5% de todas as transações imobiliárias realizadas na região central de Petrópolis, na antiga Fazenda do Córrego Seco. O imposto, chamado oficialmente de laudêmio, mas conhecido como “taxa do príncipe”, é cobrado desde 1843, quando Dom Pedro II decidiu ceder terras que herdara. Hoje é arrecadado pela Companhia Imobiliária de Petrópolis (CIP), constituída pelos herdeiros da família real.

Os valores recolhidos não são de conhecimento público, mas sustentam os descendentes da realeza, conhecidos por não abrir mão do privilégio. No último fim de semana, Maria Francisca Pio de Bragança,terceira na linha sucessória do trono português, se casou no suntuoso Palácio Nacional de Mafra, numa festa para 1.200 convidados. Maria Francisca é filha de Duarte Pio de Bragança, pretendente ao trono português e acionista minoritário da CIP. “Todo o território onde está construído Petrópolis é propriedade da minha família materna e daí recebemos também um rendimento”, afirmou ele em 2020 em entrevista à jornalista portuguesa Júlia Pinheiro.

O regime de enfiteuse foi instituído pelo imperador Justiniano, ainda no século I, para regular a propriedade das regiões conquistadas pelo Império Romano. Facilitava a intervenção de Roma para obrigar o ocupante da terra a produzir e gerar renda para pagar impostos. No século XIII, foi absorvido pelo ordenamento jurídico português, tendo sobrevivido até a Revolução dos Cravos. Continua vivo no Brasil, graças à benevolência de uma República incapaz de se livrar do anacronismo monárquico.

Pelo que determina o artigo 49 da Constituição, a enfiteuse é usada também para terrenos atribuídos à Marinha — todo o litoral brasileiro e margens de alguns rios do litoral, “até onde for a maré mais alta”. Nesse caso, também é cobrado laudêmio, que só poderia ser eliminado por meio emenda constitucional. Seria uma medida sensata, que já consta de proposta em tramitação na Câmara. Quanto à enfiteuse que rege a antiga propriedade do imperador em Petrópolis, parlamentares e juristas afirmam que pode ser extinta por um simples projeto de lei. Como a República tem quase 134 anos e a Independência de Portugal mais de dois séculos, já passou da hora de o Brasil acabar com ela.

FMI vê cenário de pouso suave, mas pode estar sendo otimista

Valor Econômico

Cada 10% de aumento no preço do barril de petróleo reduz 0,15% a perspectiva de crescimento nos 12 meses seguintes

O Fundo Monetário Internacional vislumbra um cenário pouco otimista para a economia mundial em 2024: o crescimento será menor e a inflação cairá, porém seguirá alta. O cenário-base do FMI, porém, é o de um pouso suave das duas principais economias. Mas há uma série de riscos importantes que podem se materializar e desacelerar mais a produção global.

O relatório Perspectivas da Economia Mundial, divulgado nesta semana pelo FMI, prevê que o crescimento global ficará praticamente estagnado: de 3,5% (em 2022), para 3% (2023) e 2,9% (2024). Ou seja, continuará abaixo da média pré-pandemia (2000 a 2019) de 3,8% ao ano. Os países ricos, que passam por um ciclo de aperto monetário maior, vão responder por quase toda essa desaceleração (2,6%, 1,5% e 1,4%, respectivamente). Nos países emergentes, o crescimento segue bastante estável (4,1%, 4% e 4%).

Já em relação à inflação global, o FMI prevê uma contínua queda (de 8,7% em 2022, para 6,9% em 2023 e 5,8% em 2024), puxada pelo ciclo de aperto monetário e por preços contidos das commodities. Ainda assim, a inflação continuará acima das metas até 2025 na maioria dos países.

Para o Brasil, o FMI prevê uma redução mais acentuada do crescimento, de 3,1% neste ano para 1,5% em 2024, bastante em linha com as projeções do mais recente boletim Focus, do Banco Central, que fala em 2,92% e 1,5%, respectivamente.

Em geral, o relatório do FMI aponta para um cenário de recuperação lenta pós-pandemia, mas com probabilidade maior de um pouso suave das maiores economias, EUA e China. É o que diz o economista-chefe do Fundo, Pierre-Olivier Gourinchas, em texto desta semana no FMI Blog. Ele diz que a economia global “está mancando, e não correndo”, mas que mostrou resiliência em relação ao choque da guerra da Ucrânia no ano passado e que “as projeções são consistentes com um cenário de pouso suave, que trará a inflação para baixo sem uma grande reversão para baixo da atividade, especialmente nos EUA.”

Há um intenso debate pelo mundo sobre se os EUA conseguirão evitar uma recessão neste momento em que os juros subiram para conter a inflação, que chegou aos dois dígitos em 2022. O Fed (banco central dos EUA) deve realizar mais um aumento dos juros, mas segue minimizando o risco de uma recessão. Essa é a linha do FMI, que prevê que os EUA crescerão 2,1% neste ano e 1,5% em 2024.

Uma série de economistas e entidades, porém, acredita na possibilidade de uma recessão nos EUA. O economista Mohamed El-Erian alertou em artigo recente (FT, 2/10) que a economia americana deve se enfraquecer à medida que os mercados forem internalizando a probabilidade cada vez maior de as taxas de juros ficarem elevadas por um longo período.

O FMI parece também otimista em relação à China, apesar de ter revisto um pouco para baixo as suas projeções de crescimento, de 5% neste ano e 4,2% no ano que vem. As expectativas em relação à China também estão cercadas de incertezas. Um estudo de Daniel Rosen, especialista em economia chinesa, publicado neste mês pela consultoria Rhodium Group, estima que a taxa real de crescimento do país neste ano pode ser menos da metade da prevista pelo FMI, ficando na casa de 2%.

Segundo Rosen, a economia chinesa ainda está sofrendo em cheio o impacto do colapso do seu mercado imobiliário. Nesta semana, a maior incorporadora da China, a Country Garden, anunciou que deixou de pagar uma dívida de US$ 60 milhões com credores estrangeiros e que poderá não pagar dívidas que estão para vencer, devido à forte queda de suas vendas de imóveis residenciais. Um default em grande escala da Country Garden, como ocorreu com a Evergrande, pode ter consequências importantes.

Rosen estima ainda que o governo chinês terá de socorrer governos locais e que as exportações chinesas serão bastante afetadas pelas tensões com os EUA. Ele sugere que o FMI se baseia demais em dados oficiais chineses para suas projeções.

Além desses riscos econômicos, há agora novas incertezas relacionadas à guerra entre Israel e o grupo palestino Hamas. A vice-diretora-gerente do Fundo, Gita Gopinath, afirmou que, se o conflito se expandir para outros países do Oriente Médio e causar um alta maior dos preços do petróleo, a economia mundial será afetada. Segundo ela, cada 10% de aumento no preço do barril de petróleo reduz 0,15% a perspectiva de crescimento nos 12 meses seguintes.

O conflito, que começou no último sábado, fez com que o barril de petróleo do tipo Brent (referência global) subisse da faixa de US$ 84 para US$ 87. Mas o preço vem se moderando desde então, influenciado pela perspectiva de demanda menor nas principais economias.

Não está claro ainda se há o risco de o conflito se expandir. O Hamas, que controla a Faixa de Gaza, é apoiado e financiado pelo Irã, mas não se sabe ainda se Israel tentará alguma ação retaliatória contra o Irã. Outro risco de ampliação do conflito é se o grupo Hezbollah (baseado no Líbano) e a Síria, ambos aliados iranianos, se envolveram mais profundamente na disputa hoje circunscrita entre Israel e o Hamas.

Ecos varguistas

Folha de S. Paulo

Ex-sindicalistas, Lula e Marinho não sabem lidar com o novo mercado de trabalho

Não é novidade que a esquerda brasileira e particularmente o PT tenham dificuldade para atualizar velhas concepções sobre relações entre capital e trabalho.

O pendor pelo dirigismo e pelo resgate do modelo sindical dos tempos de Getúlio Vargas ainda encontram guarida no governo, a julgar pelas manifestações do ministro do Trabalho, Luiz Marinho.

Temas como terceirização, contribuição sindical, repasses do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para a Previdência e regulamentação de trabalho a partir de aplicativos estão na pauta e podem resultar em retrocessos.

A lei que ampliou a possibilidade de terceirização foi aprovada em 2017, permitindo que as empresas contratem prestadores de serviço também para as chamadas atividades-fim —antes, a permissão legal só valia para trabalho em áreas periféricas e de suporte ao negócio principal.

São equivocadas e temerárias afirmações de Marinho de que a norma "levou a um processo brutal de precarização e aumentou o trabalho análogo à escravidão", só faltando "amarrar e chicotear".

Oriundo do sindicalismo, como Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro não reconhece que hoje as cadeias produtivas são dispersas e especializadas a ponto de tornar a distinção impraticável. Tolher a flexibilidade das empresas não gerará empregos de qualidade.

Marinho também se mostra equivocado quando fala da contribuição sindical. Comparar a cobrança aprovada em assembleia a uma reunião de condomínio é enganoso, a começar pelo fato de não estar claro como será exercido o direto de oposição do trabalhador.

É fato que o país ganha com sindicatos atuantes, mas o caminho para a modernização seria ampliar a concorrência, com o fim da unicidade sindical, algo que não interessa aos dirigentes estabelecidos.

Também na proposta de reduzir repasses do FAT à Previdência nota-se o desejo dirigista. Alimentado pela receita do PIS/Pasep, o fundo direciona parte de seus recursos ao BNDES, além de custear seguro-desemprego, abono salarial e, desde 2019, gastos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Agora, Marinho quer ampliar os repasses ao BNDES, supostamente úteis para gerar emprego. Trata-se, na prática, de ampliar o déficit previdenciário e facilitar a concessão de crédito subsidiado a setores politicamente influentes.

Por fim, permanece a dificuldade em lidar com relações trabalhistas que fogem aos padrões da CLT, de relevância crescente no país. Há mérito na tentativa de buscar a melhoria das condições de trabalhadores por aplicativos, mas a questão não pode ser tratada à base de bravatas contra as empresas.

Atores da guerra

Folha de S. Paulo

Conflito Israel-Hamas tem risco de expansão, mas rivais por ora marcam posição

Conflito com raízes nas desavenças em torno da partilha da Palestina britânica, há 75 anos, a guerra entre o grupo terrorista Hamas e Israel traz subjacente o temor de uma escalada regional insondável.

Os pavios emaranhados do barril de pólvora são conhecidos. De um lado, Israel, vítima de um ataque brutal por parte dos palestinos que governam a Faixa de Gaza, recebe apoio dos Estados Unidos e de boa parte do mundo ocidental.

Além da retórica, o governo do presidente Joe Biden posicionou junto à costa israelense 1 de seus 11 grupos de porta-aviões e anunciou o envio de uma segunda esquadra semelhante. Além disso, reforçou suas bases aéreas na região e liberou armas e dinheiro a Tel Aviv.

Os porta-aviões são a expressão máxima da projeção de poder imbatível dos EUA, com quase uma centena de aeronaves e acompanhados por navios de escolta com grande pode de fogo. Mais do que isso, são um sinal para o Irã.

A antiga Pérsia financia o Hamas. Não só: o Hizbullah libanês é um de seus braços militares e apoia outros grupos terroristas. Teerã ainda tem a Síria, outro país que não reconhece os israelenses, como aliado no chamado Eixo da Resistência contra Tel Aviv.

Seu chanceler fez um giro de reuniões com seus pares, mas significativamente o país nega ter tido envolvimento nos atos do Hamas, versão que foi aceita até aqui.

As escaramuças com o Líbano escalaram, o que preocupa os israelenses, dado que o Hizbullah é força mais poderosa do que o Hamas. Por ora, são mais para marcar posição, porém neste domingo (15) elas se tornaram particularmente violentas. Ato contínuo, o chanceler do Irã advertiu que os rivais estão "com as mãos no gatilho".

Na Síria, Israel acenou atacando aeroportos do país que poderiam ser entrepostos de armas.

Já a Rússia criticou EUA e Israel por seus movimentos, temendo ser dragada a um embate para o qual não tem músculos, ora ocupados na Ucrânia conflagrada —Vladimir Putin é aliado do eixo iraniano e tem bases militares na Síria.

Apesar desses inúmeros pontos de atrito, os atores externos ao embate em Israel têm sido responsáveis por manter prontidão e comedimento no mesmo diapasão.

A dosimetria da retaliação em Gaza é fator central para esse equilíbrio, e tudo o que o Hamas deseja é uma convulsão regional. Isso dá medida do desafio para Israel, dado que inação não é alternativa.

Um falso e paralisante dilema

O Estado de S. Paulo

O governo Lula aposta no mesmo antagonismo entre público e privado que marcou o governo Bolsonaro. Só inverteu os sinais. O País precisa do dinamismo da sociedade e do Estado juntos

Em recente artigo no Estadão, o economista Pedro Malan chamou a atenção para um falso dilema presente na política nacional, que vê o desenvolvimento social e econômico como fruto exclusivo ou da atuação do Estado ou da sociedade. “Falso o dilema porque é preciso tentar combinar o dinamismo de ambos, Estado e sociedade”, escreveu Pedro Malan (Somos a matéria de que são feitos os sonhos, dia 8/10/2023).

No governo anterior, havia a ideia de que todos os grandes problemas brasileiros eram decorrência da máquina estatal. O Estado seria o grande obstáculo a ser removido. Tal percepção conduziu a muitos equívocos – em primeiro lugar, a um desprezo pelo conhecimento do funcionamento do Estado e dos desafios concretos a serem enfrentados. Prevaleceu uma compreensão distorcida e rigorosamente equivocada de liberalismo, que levou ao oposto do que essa concepção político-filosófica propugna. As soluções dos problemas nacionais já não demandariam estudo, planejamento, discussão e negociação. Não exigiriam conhecimento da realidade. Bastaria “reduzir o tamanho do Estado” para que o País deslanchasse rumo ao desenvolvimento social e econômico.

Nessa visão simplista e irreal das coisas, tudo o que representasse diminuição da presença estatal na vida da sociedade seria, por si só, positivo. Com isso, em vez de uma administração federal atenta aos problemas concretos do País, buscando propor caminhos efetivos, o que se teve foi um governo propagando ideias irrealizáveis – como a privatização de todas as empresas estatais – ou simplesmente nefastas – como o desmonte dos órgãos públicos de fiscalização. Afinal, se tudo o que vem do Estado é equivocado e prejudicial, a própria lei deixa de merecer respeito, para se tornar algo a ser burlado ou simplesmente ignorado.

Exemplo paradigmático desse modo simplista e equivocado de lidar com os problemas nacionais foi o descuido do governo Bolsonaro em relação à educação pública, cujas redes representam mais de 80% do ensino ofertado às crianças e adolescentes. A preocupação do governo estava concentrada na defesa do homeschooling como a grande solução educativa, numa ignorância da própria realidade familiar brasileira.

Felizmente, esse modo binário de enxergar o País – a esfera privada equivalente a positivo, e a pública, a negativo – foi rejeitado nas urnas. A pandemia escancarou os efeitos nocivos de tal obtusidade na administração pública. No entanto, paradoxalmente, o governo atual tem se mostrado incapaz de perceber o equívoco dessa binariedade, como se bastasse inverter os sinais – a esfera pública como sinônimo de virtude, e a privada, de vício e ganância – para a retomada do crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais.

O presidente Lula tem insistido em discursos e movimentos estatizantes, equiparando o aumento da participação estatal ao desenvolvimento social e econômico. Também aqui o conhecimento da realidade parece importar pouco. Não se busca verificar os efeitos de cada medida sobre a população e a economia para, depois, avaliar e definir quais seriam as políticas públicas mais adequadas. Tudo já estaria devidamente carimbado, se favorável ou desfavorável ao interesse público, a depender da relação com o Estado.

Ou seja, a mudança de governo parece não ter sido capaz de livrar o País dessa paralisante disjuntiva, desse falso dilema. Segue enredado numa compreensão irreal a respeito do Estado e da sociedade.

Superar essa visão reducionista, seja qual for a orientação ideológica, é requisito para o desenvolvimento do País. Não há razão para desprezar o dinamismo da sociedade. A promoção do interesse público inclui o fomento de um ambiente de liberdade, no qual, respeitando os limites da lei, os diversos interesses privados possam ser cultivados. Por sua vez, não existe desenvolvimento sem um Estado eficiente, seja para estabelecer e fazer cumprir as regras do jogo, seja para reduzir as desigualdades e cuidar dos mais vulneráveis. O antagonismo entre público e privado faz mal a todos.

Mais uma chance para a América Latina

O Estado de S. Paulo

Crescente e duradoura, a demanda por comida, minérios e energias verdes só gerará prosperidade se a região desarmar armadilhas que a aprisionam em ciclos de crescimento sem desenvolvimento

Há cinco séculos a América Latina fornece comida, combustíveis e metais ao mundo. Em entrevista ao Financial Times, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Ilan Goldfajn, adverte que a demanda crescente do século 21 por comida, energia verde e minerais críticos oferece uma “tripla oportunidade”. Mas uma questão permanece: por que numa região tão rica em recursos o povo é tão pobre? Se essa questão não for enfrentada, tais oportunidades estão fadadas a ser desperdiçadas – de novo.

Até 2050, a população mundial crescerá de 8 bilhões para quase 10 bilhões. Com vastas terras agricultáveis e uma população relativamente pequena, a América Latina é a maior exportadora de comida do mundo. Também fornece um terço do cobre e metade da prata e contém 60% das reservas de lítio, além de grafite, estanho e níquel, materiais cruciais para as energias limpas. Mais próximos à superfície, eles são mais facilmente extraíveis do que em outros lugares, e, numa região farta em sol, vento e água, podem ser processados com energia renovável e barata.

O boom dos anos 2000 foi puxado pela industrialização da China, que se desacelerou nos anos 2010. Já a transição energética é global, incontornável e duradoura. Rivalidades geopolíticas levam países ricos a realocar cadeias de fornecimento a regiões próximas e amistosas. A América Latina é pacífica e neutra e, entre as regiões com países em desenvolvimento, tem as democracias mais robustas.

As condições estão aí, mas também as mazelas que dissiparam oportunidades como essas no passado. Desde a era colonial, a região experimenta ciclos de crescimento sem desenvolvimento. Elites latifundiárias semifeudais expandiram sua produção à custa da expropriação de terras dos nativos e da exploração de seu trabalho e o de africanos, calcificando uma sociedade desigual e repleta de desincentivos à produtividade e à inovação. O melhor das monoculturas era exportado e tudo o mais era importado.

No século 20, buscou-se reverter essa relação de dependência com barreiras protecionistas e subsídios à indústria. Mas isso perpetuou um setor pouco competitivo e dependente do Estado. As relações corruptas entre os donos do poder e os do dinheiro se tornaram endêmicas, a desigualdade aumentou e, ironicamente, a dependência das commodities também.

Hoje, em termos de barreiras comerciais, a América Latina é a segunda região menos acessível do mundo, depois da África. A educação é deficitária. A região investe 0,6% do PIB em pesquisa e desenvolvimento, menos de um quarto da média da OCDE. A infraestrutura é precária. E há sempre um demagogo pronto a esbanjar o dinheiro do boom de commodities da vez bombeando os lucros das oligarquias e o consumo das classes baixas, sem qualificar a oferta e as condições de crescimento sustentável. As “décadas perdidas” se acumulam.

À “tripla oportunidade”, Goldfajn opõe um “triplo desafio”: governos sem dinheiro, populações sedentas de serviços públicos e baixo crescimento. Para capitalizar as oportunidades, os governos precisam gerar espaço fiscal, reduzindo os custos e a ineficiência da máquina pública, e sanear o manicômio tributário e regulatório que afugenta investidores. Os protecionismos e privilégios precisam cair, ainda que gradualmente, promovendo uma “destruição criativa” na indústria.

O dinheiro das commodities precisa ser investido na diversificação das exportações e na agregação de valor (por exemplo, incentivando fábricas de baterias com os metais extraídos), mas também em educação, para qualificar a mão de obra, e infraestrutura, para baratear custos, além de serviços públicos para reduzir inquietações sociais que convidam a aventuras populistas. De resto, se a mineração é essencial para impulsionar energias verdes e reduzir impactos climáticos, ela comporta impactos em biomas e comunidades. Mitigá-los é crucial para que o desenvolvimento prometido pelas commodities seja sustentável.

Mais do que uma década, esse desenvolvimento é uma promessa de um século. Mas se a América Latina não aprender com a história, estará condenada a um “século perdido”.

Mais mulheres nos tribunais

O Estado de S. Paulo

CNJ acerta ao criar mecanismo para reduzir a falta de representatividade feminina nas cortes

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma medida que pode produzir uma profunda e positiva mudança no Poder Judiciário. Por unanimidade, foi criada uma política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário. A partir de agora, nas promoções pelo critério do merecimento, os tribunais deverão utilizar alternadamente uma lista exclusiva para mulheres e a lista mista tradicional. Na promoção por critério de antiguidade, os atuais critérios foram mantidos.

Nos termos aprovados pelo CNJ, a nova política das duas listas é temporária, devendo perdurar até ser alcançada a paridade de gênero nos tribunais. Caberá ao CNJ manter banco de dados atualizado sobre a composição dos tribunais. Atualmente, do total de juízes de primeiro grau em todo o Judiciário, 40% são mulheres. Nas cortes superiores e nos tribunais de segunda instância, o porcentual de participação feminina é de 25%.

Relatora do ato administrativo que deu origem à nova política de equidade no acesso às vagas nos tribunais, a conselheira Salise Sanchotene lembrou, em seu voto, que a proposta “vem sendo debatida há muito tempo, entre todos os envolvidos”. Além disso, mais do que uma total invenção, a medida das duas listas na promoção pelo critério do merecimento representa a continuidade da Resolução do CNJ 255/2018, aprovada durante a presidência da ministra Cármen Lúcia . Para combater a assimetria na ocupação de cargos na Justiça, o ato de 2018 já havia disposto que “todos os ramos e unidades do Poder Judiciário deverão adotar medidas tendentes a assegurar a igualdade de gênero no ambiente institucional”, com diretrizes e mecanismos “para incentivar a participação de mulheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos institucionais”.

Ao deliberar sobre a nova política, o CNJ lembrou que a igualdade prevista pela Constituição não é apenas formal, mas também material. “Ela não se limita a proibir discriminações em desfavor de grupos estigmatizados. A igualdade é vista como uma meta a ser perseguida pelo Estado, que deve agir positivamente para promovê-la”, disse Daniel Sarmento, em parecer citado pela conselheira Salise Sanchotene. Em 2013, o próprio Supremo Tribunal federal (STF) reconheceu que “não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade”.

A falta de equidade de gênero no Judiciário representa uma violação de direitos das mulheres indevidamente preteridas, como também gera impactos negativos sobre a própria atividade jurisdicional. A atual assimetria entre homens e mulheres nos tribunais é prejudicial ao sistema de Justiça. Como lembrou Sarmento em seu parecer, “não há uma única forma feminina de julgar”, mas é inegável que “as identidades pessoais, experiências de vida e valores exercem influência relevante sobre o modo como juízes e juízas atuam e decidem”. Uma melhor representatividade feminina no Judiciário, por isso, é um bem para todos.

Nenhum comentário: