Valor Econômico
Estamos novamente numa era de incerteza e
debate sobre a estrutura da economia política global
Lideranças mundiais que participaram das
reuniões anuais do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial em
Marrakech na semana passada tinham decisões difíceis a tomar.
Para começar, várias economias em
desenvolvimento - entre elas Egito, Etiópia, Gana, Quênia, Paquistão, Sri
Lanka, Tunísia, Ucrânia e Zâmbia - estão à beira da inadimplência ou já
entraram em inadimplência. Enquanto isso, o relatório climático recente de “balanço
global” das Nações Unidas mostra que estamos longe de atingir a meta de 1,5º
Celsius para o aquecimento global.
Embora o crescimento econômico robusto possa
fornecer os recursos necessários para enfrentar esses desafios, o FMI prevê
lentidão global e uma luta prolongada contra a inflação. Sem cooperação
internacional, os países podem ficar enredados num esforço lento, confuso e
caro para gerenciar suas dívidas, combater as mudanças climáticas e estimular o
crescimento.
Não é a primeira vez que o mundo enfrenta tal crise. Como o historiador econômico Martin Daunton(1) observa em seu próximo livro, “The Economic Government of the World 1933-2023”, formuladores de políticas de 66 países se reuniram na Conferência Econômica de Londres de 1933 para enfrentar desafios assustadoramente parecidos com os que encaramos hoje: dívida, protecionismo, instabilidade financeira e polarização. Com a economia mundial em queda livre e os preços das commodities caindo, a demanda por bens industriais evaporou. À medida que o desemprego crescia, aumentavam também as tensões entre as agendas políticas domésticas e as preocupações econômicas internacionais.
A conferência de Londres parecia condenada
desde o início, à medida que a turbulência política e econômica elevava os
líderes extremistas. Na Itália, a crise econômica pós-Primeira Guerra Mundial
facilitou a ascensão de Benito Mussolini ao poder. Na Alemanha, Adolf Hitler
fora nomeado chanceler recentemente. Joseph Stalin governou a União Soviética
com mão de ferro, e a China estava envolvida em uma guerra civil, tendo sido
invadida pelo Japão Imperial apenas dois anos antes.
O FMI prevê lentidão global e uma luta
prolongada contra a inflação. Sem cooperação internacional, os países podem
ficar enredados num esforço lento, confuso e caro para gerenciar suas dívidas,
combater as mudanças climáticas e estimular o crescimento
Houve profundas divergências tanto nos
Estados Unidos quanto no Reino Unido sobre a resposta apropriada à crise. À
medida que as tensões aumentavam entre EUA, Reino Unido e França em relação à
dívida de guerra, um jornalista americano rotulou a conferência de “trama para
cancelar dívidas com a América”.
A conferência de Londres oscilou entre
pedidos de cooperação internacional e sua minimização por aqueles que, nas
palavras do secretário de Estado dos EUA, Cordell Hull, estavam “fútil e
tolamente se esforçando para viver como um eremita”. Apesar de mais de um mês
de discussões, os participantes saíram sem nenhuma resolução.
Em Marrakech, representantes de 190 países,
cada um lidando com suas próprias disputas internas, buscaram encontrar um
equilíbrio entre a cooperação internacional e a política interna. O livro de
Daunton traz várias histórias que servem de lição..
Enquanto a primeira parte do livro de
Daunton, que se concentra na resposta à Grande Depressão, traz pouco
encorajamento, a segunda, que cobre a era de Bretton Woods, apresenta exemplos
mais bem-sucedidos de cooperação internacional eficaz. A criação de
instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial facilitou uma
compreensão maior dos problemas econômicos globais e possíveis soluções, pois os
especialistas passaram a poder agregar e analisar dados de todos os países
membros.
Em contraste com muitas outras obras, Daunton
destaca aquelas relegadas à periferia dessa ordem emergente, à medida que sua
narrativa se aprofunda nas políticas econômicas de Gana, da Índia e do mundo em
desenvolvimento durante a Guerra Fria. Na década de 1960, a Rodada Kennedy do
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (sucedida pela Organização Mundial do
Comércio) reduziu as tarifas industriais.
Com suas preocupações e interesses deixados
de lado, os países em desenvolvimento se voltaram para fóruns internacionais
alternativos, como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento e a Nova Ordem Econômica Internacional.
A terceira parte do livro de Daunton traça a
ascensão do “hiperglobal” e “neoliberal” Consenso de Washington. À medida que o
FMI e o Banco Mundial se tornaram agentes da globalização, a OMC foi
estabelecida e o capitalismo rentista se espalhou pelas economias, atingindo
profundamente a União Europeia.
A parte final da narrativa de Daunton começa
com a crise financeira de 2008 e explora as ameaças à ordem global atual.
Daunton propõe então uma série de caminhos potenciais para um “capitalismo mais
justo e inclusivo”, como fiscalização mais rígida da concorrência, tributação
progressiva, iniciativas de geração de empregos, alvancagem, desfinanceirização
e implementação de um New Deal Verde.
Um tema que ronda todo o livro é a natureza
contenciosa da cooperação internacional. Logo no início, aprendemos que, na
década de 1930, o “brain trust” do presidente dos EUA, Franklin Roosevelt,
apresentou a ele uma infinidade de visões conflitantes sobre a política
econômica externa. Foi só quando Roosevelt ficou do lado de seus consultores
mais internacionalistas que o protecionismo e a instabilidade cambial da Grande
Depressão começaram a diminuir.
Durante a primeira metade do século XX, o
Reino Unido considerou três visões econômicas globais concorrentes. A primeira
enfatizava o pleno emprego, que exigia políticas anticíclicas e estoques-tampão
internacionais para manter demanda e preços estáveis, além de obras públicas
financiadas pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird,
o braço de empréstimos do Banco Mundial) para compensar as flutuações do
mercado de trabalho.
A segunda visão focou na área da libra
esterlina, imaginando um mundo dividido entre o dólar americano e a libra, no
qual o Reino Unido manteria as preferências imperiais e olharia para a África
como um mercado em expansão. No centro da terceira perspectiva estava a relação
anglo-americana, sugerindo que a Grã-Bretanha não deveria se alinhar nem com
seu próprio império nem com a Europa, mas sim colaborar com os EUA dentro de
uma economia baseada no dólar. A política britânica contemporânea ecoa essas
discussões, enquanto as autoridades debatem se devem fortalecer relações com a
Europa, com a Commonwealth (como parte de sua estratégia indo-pacífica) ou com
os EUA.
Em todas as épocas exploradas, Daunton
apresenta aos leitores uma rica tapeçaria de ideias concorrentes, ressaltando o
desafio de forjar acordos multilaterais entre dezenas de países, cada um com
suas próprias disputas internas. Como Daunton observa, nos encontramos
novamente numa era de incerteza e debate sobre a estrutura da economia política
global.
Ao longo dos últimos 30 anos, a cooperação
internacional tem sido frequentemente confundida com globalização,
liberalização do mercado, desregulamentação, privatização e fluxos de capital.
Mas os debates nacionais e internacionais são marcados hoje por outras
questões, incluindo a qualidade do emprego e o bem-estar social, as alterações
climáticas, as implicações geoestratégicas das cadeias de abastecimento
globais, a concorrência tecnológica impulsionada por questões de segurança
nacional e a crescente normalização das sanções e da guerra econômica.
Embora essas prioridades estejam em desacordo
com a cooperação facilitadora da globalização que Daunton descreve, os acordos
e instituições forjados ao longo do século passado nos permitem alcançar uma
nova e diferente forma de cooperação. Formuladores de políticas econômicas e
representantes das organizações internacionais presentes aos encontros de
Marrakech têm estudado tanto os desafios domésticos quanto internacionais, permitindo
a eles explorar soluções colaborativas e destacar as preocupações dos
países-membros durante as negociações.
Embora esse processo possa parecer
ineficiente e trabalhoso, ele ainda é indispensável para um mundo que valoriza
a soberania do Estado e promove a cooperação internacional. Ainda que o livro
de Daunton ressalte os inúmeros obstáculos enfrentados por esses esforços, ele
também ilumina as inúmeras maneiras pelas quais uma ordem internacional
funcional pode emergir. (Tradução por Fabrício Calado Moreira)
1 Martin Daunton, The Economic
Government of the World 1933-2023, Farrar, Straus e Giroux, EUA; Allen Lane,
Reino Unido, 2023.
*Ngaire Woods é reitora da Escola de Governo
Blavatnik da Universidade de Oxford. Project Syndicate, 2023. www.project-syndicate.org
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