segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Ngaire Woods* - Cooperação ou crise

Valor Econômico

Estamos novamente numa era de incerteza e debate sobre a estrutura da economia política global

Lideranças mundiais que participaram das reuniões anuais do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial em Marrakech na semana passada tinham decisões difíceis a tomar.

Para começar, várias economias em desenvolvimento - entre elas Egito, Etiópia, Gana, Quênia, Paquistão, Sri Lanka, Tunísia, Ucrânia e Zâmbia - estão à beira da inadimplência ou já entraram em inadimplência. Enquanto isso, o relatório climático recente de “balanço global” das Nações Unidas mostra que estamos longe de atingir a meta de 1,5º Celsius para o aquecimento global.

Embora o crescimento econômico robusto possa fornecer os recursos necessários para enfrentar esses desafios, o FMI prevê lentidão global e uma luta prolongada contra a inflação. Sem cooperação internacional, os países podem ficar enredados num esforço lento, confuso e caro para gerenciar suas dívidas, combater as mudanças climáticas e estimular o crescimento.

Não é a primeira vez que o mundo enfrenta tal crise. Como o historiador econômico Martin Daunton(1) observa em seu próximo livro, “The Economic Government of the World 1933-2023”, formuladores de políticas de 66 países se reuniram na Conferência Econômica de Londres de 1933 para enfrentar desafios assustadoramente parecidos com os que encaramos hoje: dívida, protecionismo, instabilidade financeira e polarização. Com a economia mundial em queda livre e os preços das commodities caindo, a demanda por bens industriais evaporou. À medida que o desemprego crescia, aumentavam também as tensões entre as agendas políticas domésticas e as preocupações econômicas internacionais.

A conferência de Londres parecia condenada desde o início, à medida que a turbulência política e econômica elevava os líderes extremistas. Na Itália, a crise econômica pós-Primeira Guerra Mundial facilitou a ascensão de Benito Mussolini ao poder. Na Alemanha, Adolf Hitler fora nomeado chanceler recentemente. Joseph Stalin governou a União Soviética com mão de ferro, e a China estava envolvida em uma guerra civil, tendo sido invadida pelo Japão Imperial apenas dois anos antes.

O FMI prevê lentidão global e uma luta prolongada contra a inflação. Sem cooperação internacional, os países podem ficar enredados num esforço lento, confuso e caro para gerenciar suas dívidas, combater as mudanças climáticas e estimular o crescimento

Houve profundas divergências tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido sobre a resposta apropriada à crise. À medida que as tensões aumentavam entre EUA, Reino Unido e França em relação à dívida de guerra, um jornalista americano rotulou a conferência de “trama para cancelar dívidas com a América”.

A conferência de Londres oscilou entre pedidos de cooperação internacional e sua minimização por aqueles que, nas palavras do secretário de Estado dos EUA, Cordell Hull, estavam “fútil e tolamente se esforçando para viver como um eremita”. Apesar de mais de um mês de discussões, os participantes saíram sem nenhuma resolução.

Em Marrakech, representantes de 190 países, cada um lidando com suas próprias disputas internas, buscaram encontrar um equilíbrio entre a cooperação internacional e a política interna. O livro de Daunton traz várias histórias que servem de lição..

Enquanto a primeira parte do livro de Daunton, que se concentra na resposta à Grande Depressão, traz pouco encorajamento, a segunda, que cobre a era de Bretton Woods, apresenta exemplos mais bem-sucedidos de cooperação internacional eficaz. A criação de instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial facilitou uma compreensão maior dos problemas econômicos globais e possíveis soluções, pois os especialistas passaram a poder agregar e analisar dados de todos os países membros.

Em contraste com muitas outras obras, Daunton destaca aquelas relegadas à periferia dessa ordem emergente, à medida que sua narrativa se aprofunda nas políticas econômicas de Gana, da Índia e do mundo em desenvolvimento durante a Guerra Fria. Na década de 1960, a Rodada Kennedy do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (sucedida pela Organização Mundial do Comércio) reduziu as tarifas industriais.

Com suas preocupações e interesses deixados de lado, os países em desenvolvimento se voltaram para fóruns internacionais alternativos, como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento e a Nova Ordem Econômica Internacional.

A terceira parte do livro de Daunton traça a ascensão do “hiperglobal” e “neoliberal” Consenso de Washington. À medida que o FMI e o Banco Mundial se tornaram agentes da globalização, a OMC foi estabelecida e o capitalismo rentista se espalhou pelas economias, atingindo profundamente a União Europeia.

A parte final da narrativa de Daunton começa com a crise financeira de 2008 e explora as ameaças à ordem global atual. Daunton propõe então uma série de caminhos potenciais para um “capitalismo mais justo e inclusivo”, como fiscalização mais rígida da concorrência, tributação progressiva, iniciativas de geração de empregos, alvancagem, desfinanceirização e implementação de um New Deal Verde.

Um tema que ronda todo o livro é a natureza contenciosa da cooperação internacional. Logo no início, aprendemos que, na década de 1930, o “brain trust” do presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, apresentou a ele uma infinidade de visões conflitantes sobre a política econômica externa. Foi só quando Roosevelt ficou do lado de seus consultores mais internacionalistas que o protecionismo e a instabilidade cambial da Grande Depressão começaram a diminuir.

Durante a primeira metade do século XX, o Reino Unido considerou três visões econômicas globais concorrentes. A primeira enfatizava o pleno emprego, que exigia políticas anticíclicas e estoques-tampão internacionais para manter demanda e preços estáveis, além de obras públicas financiadas pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird, o braço de empréstimos do Banco Mundial) para compensar as flutuações do mercado de trabalho.

A segunda visão focou na área da libra esterlina, imaginando um mundo dividido entre o dólar americano e a libra, no qual o Reino Unido manteria as preferências imperiais e olharia para a África como um mercado em expansão. No centro da terceira perspectiva estava a relação anglo-americana, sugerindo que a Grã-Bretanha não deveria se alinhar nem com seu próprio império nem com a Europa, mas sim colaborar com os EUA dentro de uma economia baseada no dólar. A política britânica contemporânea ecoa essas discussões, enquanto as autoridades debatem se devem fortalecer relações com a Europa, com a Commonwealth (como parte de sua estratégia indo-pacífica) ou com os EUA.

Em todas as épocas exploradas, Daunton apresenta aos leitores uma rica tapeçaria de ideias concorrentes, ressaltando o desafio de forjar acordos multilaterais entre dezenas de países, cada um com suas próprias disputas internas. Como Daunton observa, nos encontramos novamente numa era de incerteza e debate sobre a estrutura da economia política global.

Ao longo dos últimos 30 anos, a cooperação internacional tem sido frequentemente confundida com globalização, liberalização do mercado, desregulamentação, privatização e fluxos de capital. Mas os debates nacionais e internacionais são marcados hoje por outras questões, incluindo a qualidade do emprego e o bem-estar social, as alterações climáticas, as implicações geoestratégicas das cadeias de abastecimento globais, a concorrência tecnológica impulsionada por questões de segurança nacional e a crescente normalização das sanções e da guerra econômica.

Embora essas prioridades estejam em desacordo com a cooperação facilitadora da globalização que Daunton descreve, os acordos e instituições forjados ao longo do século passado nos permitem alcançar uma nova e diferente forma de cooperação. Formuladores de políticas econômicas e representantes das organizações internacionais presentes aos encontros de Marrakech têm estudado tanto os desafios domésticos quanto internacionais, permitindo a eles explorar soluções colaborativas e destacar as preocupações dos países-membros durante as negociações.

Embora esse processo possa parecer ineficiente e trabalhoso, ele ainda é indispensável para um mundo que valoriza a soberania do Estado e promove a cooperação internacional. Ainda que o livro de Daunton ressalte os inúmeros obstáculos enfrentados por esses esforços, ele também ilumina as inúmeras maneiras pelas quais uma ordem internacional funcional pode emergir. (Tradução por Fabrício Calado Moreira)

1 Martin Daunton, The Economic Government of the World 1933-2023, Farrar, Straus e Giroux, EUA; Allen Lane, Reino Unido, 2023.

*Ngaire Woods é reitora da Escola de Governo Blavatnik da Universidade de Oxford. Project Syndicate, 2023. www.project-syndicate.org

 

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