Trump pisou no acelerador e
confirmou no dia de seu retorno ao poder o que se atribui a Charles-Maurice
Talleyrand (1754-1838) referindo-se aos Bourbons quando voltaram ao trono da
França, após a queda de Napoleão (1769-1821): eles não aprenderam nada, nem
esqueceram nada.
Quem sabe se poderíamos acrescentar que os 4 anos passados fora do poder acentuaram seus traços belicosos e ele foi eleito de forma bem forte, um sobrevivente para tarefas fundamentais. Seus slogans não mudaram, mas suas ideias são mais populares hoje, ele é mais rico e tem uma guarda pretoriana de plutocratas na vanguarda das tecnologias, que como ele não têm convicções, valores e/ou cultura democrática e que pensam que sabem o que é conveniente ou não para os comuns. Eles são a ponta da hipermodernização instrumental e pensam que a modernidade é um puro obstáculo ao seu desenvolvimento.
Elon Musk se destaca entre
eles, com seus gestos robóticos, esperançosamente com traços neofascistas, e
sua ausência de qualquer ética entre negócios e bem público. Sob esse Trump,
foi formado um grupo de liderança que colocará os valores democráticos e a
esperança de uma coexistência mundial serena nos próximos anos em severa
tensão. Vamos caminhar, gostemos ou não, na borda.
A posse nos deu um retrato
bastante realista do que Trump quer alcançar em seu mandato, mas também de quem
é Trump.
Digamos de uma vez por
todas, ele não tem apego algum à democracia, inclusa a liberal, tal como os
seus plutocratas não o são, nem são, portanto, governantes via reformas através
do canal das instituições democráticas, mas forçando-as ou levando-as ao abismo.
Ele usa o disfarce de um
populista nacionalista de inteligência astuta e intuitiva, com grandes
capacidades histriônicas, narcisista e vingativo que mente enquanto respira. E
ele vem moldando um ideal messiânico que consiste em garantir a si via o seu país,
uma ideia de poder, qual seja, o universo centrípeto do mundo e que, como tal,
mereça ter sua supremacia reconhecida por todos, por bem ou por mal.
Mesmo quando ele fala da
“Era Dourada” e de tornar a “América grande novamente”, não há nada em suas
palavras que gere um parentesco intelectual com o ideal democrático e
republicano dos Pais Fundadores. Até Ronald Reagan (1911-2004) parece ser um
modelo de institucionalidade e bons sentimentos ao seu lado.
Os Estados Unidos da
América, a democracia moderna mais antiga do mundo, têm uma história de sombras
e luzes, de atos de poder imperial e de salvar o mundo diante da discriminação
e injustiça internas e de grandes batalhas pela liberdade e igualdade por meio
de sua continuidade democrática.
Martin Luther King Jr.
(1929-1968), em Eu Tenho um Sonho de 1963, é usado de forma instrumental para
algo estranho à causa pela qual ele deu sua vida. Ele é uma referência da
América que Trump não admira.
A aposta de Trump é muito
grande e perigosa, mas ele é ousado. Os EUA resistirão às suas tentativas de
refundação?
Vejamos. Não é que Trump
tenha todos com ele, quase metade da população não o apoiou. Neste momento,
essa população está atordoada e o Partido Democrata está inativo, mas eles
terão que reagir na medida em que as palavras se transformam em ações.
As instituições americanas
que compõem seu funcionamento democrático e republicano são fortes e tenazes,
existem inúmeras reservas culturais e intelectuais, para muitos liberdade não
significa violar as regras.
Resta saber se será capaz de
cumprir as duras medidas prometidas, o número de deportações, a intolerância à
diversidade, as intenções expansivas, e se as ameaças tarifárias aos vizinhos e
a quem quer que seja colocado à sua frente podem obter benefícios efêmeros como
ficou claro nos anúncios da última coletiva brasileira, e para ver a segurança
de poder manipular os conflitos mundiais à vontade, desprezo pelos aliados
europeus e apoio a líderes autoritários de várias cores. Muitas dessas coisas
podem ter que ser adoçadas e outras terão que mudar de rumo.
Em suma, quem não despreza a
história sabe que as coisas são sempre mais complexas e que ideias simplistas
em algum lugar ao longo da estrada colidem com a complexidade do processo
civilizatório.
Daí que soou também bem
diferente de tudo o que ouvimos do Vaticano e do que a Bispa Episcopal Mariann
Edgar Budde apontou no culto inaugural realizado na Catedral Nacional de
Washington, que pediu para mostrar compaixão pelas comunidades vulneráveis e imigrantes.
Serão anos difíceis para
aqueles que como nós, que estamos convencidos de que não há melhor convivência
cidadã planetária do que aquela que respeita os direitos de todos, protege as
liberdades e busca maior justiça social.
Se não nos aplicarmos para
garantir que a democracia gere governos bons, eficientes e populares, estaremos
condenados a aceitar a preeminência da barbárie, mesmo que tenha uma base
tecnológica avançada, e nos tornaremos gado humano liderado por governantes que
não querem limites ao seu poder.
O Brasil está longe desses
passos e ficará ainda mais com a reforma ministerial que tardou, pois os
efeitos geopolíticos e econômicos em um mundo globalizado e fragmentado
atingirão nossas sociedades e nossas vidas. Contra o vento e a maré do que
possa ameaçar a democracia no mundo, devemos fazer da construção de um futuro
democrático a primeira prioridade.
O que caracteriza o sistema
democrático é a legitimidade das várias convicções concorrentes, de que ninguém
ganha tudo e que ninguém perde para sempre. Ninguém está acima das regras que
nos demos.
Na Semana Mundial da Harmonia Inter-Religiosa, fevereiro de 2025
*Ricardo José de Azevedo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.
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