Folha de S. Paulo
Relação com Legislativo pode até melhorar,
mas termos de colaboração não mudarão
Lula foi
eleito graças a seu capital político pregresso e à rejeição de Bolsonaro.
Ideologicamente falando, seu grupo político está à esquerda da média do
eleitorado. E à esquerda, também, da média do Congresso.
A democracia brasileira é multipartidária, e nenhum partido tem maioria no Congresso sozinho. Sendo assim, o presidente, seja ele quem for, precisa selar alianças com diversos partidos. Sendo grande a distância ideológica entre governo e diversos desses partidos, formar a coalizão se torna ainda mais difícil, ou mais caro.
Tradicionalmente, o governo tinha cargos e
verbas para oferecer aos partidos. Dar um ministério ou condicionar a liberação
de emendas
parlamentares ao apoio do parlamentar eram maneiras de garantir esse
apoio. Esse jogo mudou em 2015 e 2019, quando, respectivamente, as emendas
individuais e as das bancadas estaduais foram tornadas impositivas, isto é, o
governo é obrigado a executá-las. Isso tirou do governo sua principal
ferramenta de negociação, restando a ele apenas interferir na velocidade da
execução.
Em 2024, o valor aprovado para as emendas
parlamentares foi de cerca de R$ 53 bilhões. Desses, R$ 33 bilhões eram
impositivos. Cada deputado teve
direito a R$ 37,8 milhões para gastar, com poucas restrições. Cada senador, R$
69,6 milhões. Restou ao governo negociar
com a parte não-impositiva das emendas e com os ministérios. Mas como
os deputados já têm, de largada, uma quantidade generosa de recursos em mãos,
essa negociação também perdeu muito de seu valor. Ficou muito mais desafiador
garantir a fidelidade da suposta "base aliada".
Além disso, as redes sociais mudaram a forma
do cidadão se relacionar com a política. Ele ficou muito mais próximo, recebe
informações diariamente — verdadeiras, falsas ou distorcidas— e reage de
acordo, especialmente com indignação. Para muitos deputados de direita fora do
Nordeste, serem vistos como aliados do governo Lula pode comprometer seu futuro
político, então essa adesão nunca poderá ser total, mesmo que seus partidos
tenham ministérios. A negociação tende a se dar caso a caso.
O que o governo pode fazer para mudar esse
quadro? Muito pouco, dado que qualquer mudança depende do apoio do Congresso, e
o governo carece justamente dos meios para conquistar esse apoio. O Congresso,
por sua vez, não quererá abrir mão do poder para se tornar mais dependente do
governo.
O Supremo exerce
com razão seu papel quando determina a maior transparência e rastreabilidade
das emendas, mas ir além disso para determinar seu valor, ajudando o Executivo
a recuperar o controle do orçamento, parece extrapolar qualquer ideia razoável
de suas atribuições. Não que isso o impeça. Um conflito entre os dois está no
horizonte, mas por enquanto quem paga o pato dos avanços do Supremo é o
governo.
De sábado a segunda-feira, assistimos aos
discursos dos novos presidentes da Câmara e
do Senado,
bem como do presidente Lula, exaltando a relação de governo e Congresso,
prevendo dois anos de colaboração. Pelo exposto acima, contudo, penso que a
relação pode até se tornar um pouco menos conflituosa, dada a personalidade
mais conciliatória de Hugo Motta,
mas não mudarão os termos básicos nos quais a colaboração se dá: a faca no
pescoço.
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