terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Tarifas de Trump terão efeito nefasto em todo o mundo

O Globo

Não se sabe até que ponto ele levará a cabo suas ameaças, mas uma guerra comercial terá custo alto para todos

No que diz respeito às tarifas, ninguém pode acusar Donald Trump de estelionato eleitoral. Ele foi explícito na campanha à Presidência ao dizer que taxaria produtos importados de CanadáMéxico e China. Ao pôr a promessa em prática, explora politicamente o ressentimento de quem se sente alijado dos benefícios da integração comercial. Para os Estados Unidos e para o mundo, porém, o efeito será péssimo. Com diagnóstico contrário à ciência econômica, Trump faz pouco-caso das consequências potencialmente devastadoras. A reação ao tarifaço levanta o risco de uma guerra comercial sem precedentes em quase cem anos.

Depois da ameaça inicial, Trump congelou por um mês as tarifas impostas sobre México e Canadá. Nesse prazo, os países buscarão consenso sobre medidas de segurança na fronteira. Em discurso emocionante, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, fizera questão de lembrar o longo histórico de parceria com os americanos: “Das praias da Normandia às montanhas da Península Coreana, dos campos de Flandres às ruas de Kandahar, nós, canadenses, lutamos e morremos ao seu lado”. E lembrou que o Canadá é rico em minerais estratégicos para a economia digital. Não se sabe até que ponto Trump levará a cabo suas ameaças, mas perder o apoio canadense, implodir a área de livre-comércio na América do Norte ou deflagrar uma guerra comercial de proporções globais terá custo altíssimo para todos — a começar dos americanos.

Quem apoia as tarifas argumenta que os Estados Unidos perderam mais de 5 milhões de empregos industriais desde o fim dos anos 90. Sustenta que, nas últimas quatro décadas, o país importou mais que exportou. Alega que quem tem superávit comercial — sobretudo a China — exporta desemprego para os americanos, portanto a solução é elevar as tarifas. De acordo com estudo da Tax Foundation, elas renderiam ao redor de US$ 100 bilhões por ano e, segundo a Casa Branca, incentivariam a criação de empregos locais.

O certo é que o tarifaço pressionará os preços dos importados para cima. Mantido o mesmo padrão de consumo, uma típica família americana gastará entre US$1.700 e US$ 2.600 a mais por ano. Isso sem contar o efeito inflacionário da deportação de imigrantes, que tornará mais cara a mão de obra. Embora exista nostalgia dos empregos industriais do passado, é incerto se as tarifas incentivarão a reindustrialização na medida sonhada e, principalmente, se os americanos aceitarão vagas abertas. O trabalho em atividades de produção, transporte e movimentação de materiais atrai hoje mais imigrantes (legais e ilegais).

A decisão de Trump ignora a ciência econômica. No início do século XIX, o economista inglês David Ricardo provou que a especialização de cada país nas atividades em que tem vantagens comparativas, com trocas livres nos mercados, é benéfica para todos. O comércio internacional não é um jogo de soma zero, em que ganhos de uns equivalem a perdas para os demais. Déficits ou superávits comerciais não refletem sucesso ou fracasso, mas escolhas de consumo dos cidadãos de cada país. Eventuais distorções provocadas pelo comércio devem ser corrigidas por políticas que nada têm a ver com tarifas. O remédio populista adotado por Trump já foi usado no passado. A história mostra que causa mais sofrimento.

Morte de policial chama atenção para risco das operações nas favelas

O Globo

Ao discutir tema, Supremo precisa estar atento a quem está na linha de frente do combate ao crime

Não pode se tornar apenas mais uma estatística a morte do tenente da PM Marcos José Oliveira de Amorim, de 33 anos, em operação policial na Zona Norte do Rio na última sexta-feira. Ele foi o quinto PM morto na Região Metropolitana do Rio só neste ano, o segundo em combate a criminosos. No ano passado, ao menos dez policiais morreram em operações. Os números expõem a rotina de risco a que são submetidos diariamente.

A polícia fluminense costuma ser criticada — e não sem razão — pelos altos índices de mortes nas operações que realiza. Mas a letalidade policial tem caído no Rio — em 2024, 20% em relação a 2023, atingindo o menor número desde 2015. As restrições a operações nas favelas impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) contribuíram para isso. Ao mesmo tempo, poucos lembram que policiais também são vítimas da guerra contra o crime que fustiga a população. É fundamental que os ministros do STF levem tais riscos em conta no julgamento da ADPF das Favelas, previsto para amanhã.

O risco que os policiais correm é agravado por operações nem sempre bem planejadas ou executadas — quando não vazadas para os bandidos. Elas expõem a vida não só dos policiais na linha de frente, mas também a de inocentes nas comunidades dominadas por facções criminosas. “Nossa polícia ainda vai às favelas para matar e morrer. Deixa inocentes pelo caminho em troca de apreensão de uma ou outra arma. Isso não faz diferença para a economia das organizações criminosas”, escreveu em artigo no GLOBO o empresário Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, presidente do Conselho Superior da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan).

O despreparo e a falta de planejamento ficaram evidentes em operação de outubro passado no Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio. Mais bem preparados que as forças de segurança, traficantes levaram a polícia a recuar depois de instalarem o caos na cidade. Três cidadãos morreram e três ficaram feridos em meio à chuva de balas. A própria PM reconheceu não dispor de informações sobre a situação que encontraria no local.

O combate ao crime organizado exige operações em territórios sequestrados por milícias e facções criminosas. Mas elas precisam ser resultado de investigações com uso de inteligência e tecnologia, mirando as fontes de recursos do crime organizado, de modo a asfixiá-lo financeiramente. A guerra diária que vitima policiais e cidadãos não tem surtido efeito na criminalidade.

A PM afirma ter comprado 1.342 capacetes e 20 mil coletes para proteger os policiais, além de ter encomendado novas viaturas semiblindadas. São medidas necessárias, mas insuficientes para evitar mortes de policiais em comunidades fortemente armadas. O combate às organizações criminosas demanda novas estratégias e não pode ficar restrito às sobrecarregadas polícias estaduais. Traficantes e milicianos não serão vencidos se não houver um trabalho conjunto consistente do governo federal com os estados, usando todas as forças disponíveis.

Trump dá início à guerra comercial com negociações

Valor Econômico

Livre de amarras e rodeado de adoradores, Trump no poder tende a semear o caos - e já começou sua obra

Para quem prometeu uma “revolução do bom senso”, os primeiros passos do governo de Donald Trump estão distantes da trilha da razão. O presidente dos Estados Unidos escolheu como primeiro alvo seus principais parceiros comerciais, com os quais tem um acordo comercial em vigor: fixou tarifas de importação de 25% para Canadá e México, e de 10% sobre a China, mantidas as tarifas já majoradas antes. Os motivos são mais políticos que econômicos - imigrantes e drogas demais - e em parte infundados. A entrada irregular de pessoas e fentanil pelo Canadá não é relevante. Trump disse que “em definitivo” vai taxar a União Europeia e em seguida adiou as tarifas que seriam aplicadas ao México a partir de hoje. Após negociação com o primeiro-ministro Justin Trudeau, deu o mesmo prazo ao Canadá. Bolsas, títulos e moedas tiveram altos e baixos com as mudanças de humor do presidente.

Não importam os motivos, é bom para a economia global que a guerra comercial generalizada que está no centro do programa de Trump seja adiada. No caso do México e Canadá, ele postergou por 30 dias as medidas depois de a presidente do México, Claudia Scheinbaum, e Trudeau prometerem enviar 10 mil soldados para as fronteiras com os EUA para conter o fluxo de fentanil. Isso não resolverá o problema da imigração ilegal e da ação dos cartéis das drogas em território americano, mas dá a Trump a satisfação midiática de que suas ameaças produzem resultado.

Os sinais enviados pelos primeiros shows de Trump, no entanto, são péssimos, mesmo previsíveis. Os EUA vão tornar mais caras 45% das importações de alimentos, provenientes do México e do Canadá, e cerca de 43% de todos os bens que o país compra, somando-se as mercadorias dos vizinhos e as da China. O acordo comercial, primeiro Nafta e depois USMCA, como era seu objetivo, promoveu uma especialização produtiva que trouxe alguns benefícios aos três países. As declarações de Trump de que os superávits comerciais de Canadá e México são “subsídios” que Washington lhes dá ultrapassam as fronteiras da ignorância. Suas provocações sucessivas de que o Canadá será o 51º Estado americano são repulsivas e estabelecem mais um marco deplorável na forma como Trump enxerga o mundo e o poder.

As ideias do presidente não têm pé nem cabeça. Taxação generalizada de produtos supõe que os EUA possam produzir ou serem autossuficientes em tudo, o que é tão absurdo quanto julgar que altas tarifas de importação tornarão o país “rico” ou que achar que déficits comerciais são formas de outros países extorquirem os americanos.

Avaliadas as consequências, especialistas veem o risco de a guerra comercial de Trump levar o México à recessão e possivelmente o Canadá - ambos têm exportações para os EUA equivalentes a 25% ou mais do PIB. Mas uma grande vítima dos delírios de Trump serão os EUA. Analistas estimam que o crescimento do PIB americano possa perder entre 0,5 ponto e 1 ponto em 2025 se ele cumprir já suas promessas, e a inflação, com a elevação dos preços dos produtos importados provocada pelas tarifas, subirá de 0,5 ponto a 0,75 ponto de onde está, em 2,5%. Com isso, o Fed interromperá os cortes de juros. Preços mais altos, desaceleração da economia e política monetária contracionista retrairão o emprego e a renda do consumidor, que tem sustentado a força da economia até agora.

O estilo “transacional” de Trump é o de negociar em posição de força com ameaças, falsidades e grosserias para obter o que quer, o que nem sempre é sequer claro. A truculência de Trump afasta aliados, ajuda a fortalecer China e Rússia, e une a maior parte dos países na desconfiança sobre a confiabilidade dos acordos feitos com ele. Sua política destrói a ordem internacional erigida pelos EUA, mas nada coloca em seu lugar.

As tarifas são ameaça à economia mundial, mas não o único malefício causado por Trump. Ele está erodindo rapidamente o sistema de pesos e contrapesos que garantiu a democracia americana por décadas, seja demitindo todos os advogados que trabalharam com Jack Smith no processo contra Trump da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, seja com seu governo emitindo comunicados em que incentiva funcionários públicos a deixarem seus empregos para trabalhar na iniciativa privada, sob o argumento de que lá serão mais produtivos.

O homem mais rico do mundo, Elon Musk, que tem contratos milionários com o Estado, ganhou acesso ao sistema de pagamentos do Tesouro, algo típico de república de bananas, e intimida abertamente quem se põe no seu caminho, inclusive deputados e senadores republicanos.

A carga destrutiva das políticas de Trump será incapaz de pôr a “América em primeiro lugar”, posição que está prestes a partilhar a contragosto em um mundo que tende à multipolaridade, e no qual a supremacia americana se torna cada vez mais coisa do passado. Mas livre de amarras e rodeado de adoradores, Trump no poder tende a semear o caos - e já começou sua obra.

Fraqueza de Haddad se deve à política econômica de Lula

Folha de S. Paulo

Presidente é o real titular da Fazenda; a despeito de declarações sensatas, ministro não pode se contrapor à gastança

Podem-se apenas formular hipóteses sobre os motivos que levaram o presidente do PSDGilberto Kassab, a fazer crítica pública ao ministro Fernando Haddadchamado de fraco por não ter o comando da política econômica. Tal exercício especulativo será dificultado pela maleabilidade do líder partidário, dado a jogar ao centro, à esquerda e à direita.

Na essência, porém, a declaração suscita questões pertinentes quanto ao papel de titulares da Fazenda em geral —não raro os ministros de Estado de maior visibilidade no noticiário nacional— e do atual em particular.

Dos ocupantes do cargo espera-se, idealmente, que sejam capazes de expor com autoridade as diretrizes e os próximos passos da gestão da economia; de transmitir segurança quanto ao cumprimento de compromissos; de falar com o respaldo do presidente da República sobre sua área.

Haddad realmente não faz das melhores figuras nesses quesitos —e isso independe de não ser um especialista, pois entre os ministros mais fortes das últimas décadas estão o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que foi uma espécie de premiê do Plano Real, e o médico Antonio Palocci (ex-PT), que contrariava com desenvoltura as teses do partido que ajudou a fundar.

Haddad, embora tenha conquistado respeito fora do governo por afirmações responsáveis, com frequência é obrigado a ressalvar que ainda aguarda o sinal verde de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para levar a cabo esta ou aquela medida. Não poucas vezes, aliás, o chefe desautorizou abertamente os planos do auxiliar.

Existem peculiaridades no caso de Haddad. Trata-se de um quadro importante do partido, que chegou ao ponto de substituir Lula na disputa presidencial de 2018. Ao mesmo tempo, precisa conviver com as contestações de correligionários que incluem ninguém menos que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ora cotada para uma vaga na Esplanada.

Durante entrevista coletiva, o mandatário respondeu às farpas de Kassab com longos elogios ao ministro, que pareceram mais protocolares. Na mesma ocasião, disse que, se depender só dele, não haverá novas medidas para conter o déficit do Orçamento. O trecho no condicional não deixa de abrir alguma possibilidade de influência da Fazenda.

Desde o início deste governo, os comportamentos de Haddad e Lula se repetem. O primeiro, ainda que diplomaticamente, mostra ter consciência da péssima situação das contas públicas e acena com ajustes mais ambiciosos, enquanto o segundo desdenha sem meias palavras da austeridade fiscal e, quando muito, permite algum remendo aqui e ali.

Esse vaivém talvez tenha lá seu sentido para as maquinações palacianas e eleitorais do presidente. Para a política econômica, como se mostra óbvio a esta altura, o resultado é perda contínua de credibilidade que leva de roldão o ministro, a solvência do governo e a estabilidade do país.

Trump usa até tragédia aérea para guerra cultural

Folha de S. Paulo

Ao manipular acidente para atacar, sem prova, política de diversidade, presidente mina instituições e acirra polarização

O mundo ainda assistia em choque às imagens do helicóptero do Exército americano que colidiu com um avião prestes a pousar em Washington quando Donald Trump resolveu comentar o caso.

O presidente republicano deixou de lado os pudores que devem acompanhar qualquer avaliação de acidente aéreo e apontou o dedo para um culpado da tragédia que vitimou 67 pessoas na quarta (29): a cultura "woke".

O termo, "desperto" em português, se refere a políticas identitárias no país. Para Trump, o fato de a agência que regula o setor nos EUA (FAA) promover contratações de deficientes foi o fator central do episódio.

Sem nenhuma evidência para sustentar tal acusação, o mandatário americano desconsidera os fatos em nome de sua guerra cultural contra o chamado progressismo. A FAA tem 45 mil funcionários, 14 mil deles controladores que passam por no mínimo dois anos de intenso treinamento, e um número ínfimo faz parte do programa inclusivo.

Trump é reincidente. Em 2015, quando era pré-candidato a presidente, imitou um repórter que tinha uma doença congênita. Na campanha de 2024, chamou a rival Kamala Harris de "retardada".

Não que as políticas identitárias nos EUA e no mundo, que não raro descambam para patrulhas ideológicas agressivas e políticas públicas equivocadas, devam ficar à margem de críticas.

Mas não é de análise sensata e debate fundamentado que se trata a situação atual. As ligeirezas preconceituosas de Trump são parte de um método político.

Ato contínuo ao ataque à FAA, ele ainda aventurou-se a dizer que a inflação elevada no país também estava relacionada à prioridade dada pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) à agenda "woke".

Na mitologia trumpista, o esquerdismo está imbricado na estrutura governamental —o dito Estado Profundo— e precisa ser extirpado. Com esse objetivo, designou o bilionário excêntrico Elon Musk para destrinchar o funcionalismo americano.

O foco anti-imigração nesta largada de governo e a aposta protecionista e xenofóbica em guerras comerciais tarifárias corroboram suspeitas de que haveria um projeto maior em curso.

Quando isso afeta instituições respeitadas, como a FAA e o Fed, além do já relatado efeito espraiado sobre o setor privado e suas inúmeras ações de diversidade, o que poderia ser um debate legítimo transforma-se em campanha disruptiva que polariza ainda mais o cenário político dos EUA e demanda vigilância permanente.

A sagração do orçamento secreto

O Estado de S. Paulo

Mais que os triunfos pessoais de Hugo Motta e Davi Alcolumbre, eleição para presidências da Câmara e do Senado representou a perpetuação de um modelo de poder fora de controle

O deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) e o senador Davi Alcolumbre (União-AP) já entraram no Congresso, no sábado passado, sendo cumprimentados como os novos presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente. Competindo contra adversários fictícios, na prática, há meses a vitória de ambos na eleição para o comando das duas Casas Legislativas pelos próximos dois anos eram favas contadas, sendo incertos apenas os placares de votação. Motta foi eleito com 444 votos (86% do plenário da Câmara), enquanto Alcolumbre recebeu 73 votos (90% do plenário do Senado).

Em que pese a expressividade desses números, a eleição não representou os triunfos pessoais de Motta e Alcolumbre. O que se viu foi a sagração do orçamento secreto. Tanto o deputado como o senador só foram eleitos praticamente por aclamação – unindo do PT de Lula da Silva ao PL de Jair Bolsonaro – porque por trás de seus nomes há grupos políticos muito bem articulados, independentemente de suas eventuais divergências ideológicas, interessados na perpetuação de um modelo de exercício do poder fora de qualquer tipo de controle.

Frise-se: o grande vitorioso na eleição para as Mesas da Câmara e do Senado foi o orçamento secreto. O tom corporativista dos discursos de Motta e Alcolumbre, em certos momentos afrontosos aos demais Poderes, sobretudo ao Supremo Tribunal Federal (STF), não deixou margem para dúvidas de que o Congresso, lamentavelmente, já não é mais a ermida da representação política da sociedade e da Federação, rebaixado que foi à condição de sindicato de uma expressiva parcela de parlamentares sôfregos por cada vez mais recursos públicos.

Restou evidente na aclamação de Hugo Motta e Davi Alcolumbre – que, malgrado ser Davi, é uma espécie de “Golias” do orçamento secreto no Senado – que a preocupação maior dos deputados e senadores não é outra senão a apropriação de um volume cada vez maior de recursos por meio de emendas ao Orçamento da União indicadas, distribuídas e executadas de forma opaca, em respeito a sabe-se lá quais critérios. Nesse sentido, não deveria causar espanto a ninguém a união fraternal entre lulistas e bolsonaristas em torno das candidaturas de Motta e Alcolumbre, pois o que passou a interessar aos parlamentares é a composição das comissões da Câmara e do Senado, fóruns por onde ora circula a dinheirama na versão “revista e ampliada” do orçamento secreto.

Mudanças em relação às gestões de Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado, se houver, estarão circunscritas ao estilo de negociação dos novos presidentes das duas Casas Legislativas com o STF e o governo. Ao que tudo indica, Motta e Alcolumbre vieram com a missão de compor com o Supremo não apenas a liberação do pagamento de emendas represadas por ordem do ministro Flávio Dino, como a própria manutenção do esquema, talvez em novo formato. Algum acerto haverá, pois não há o mais tênue sinal de que o Congresso abdicará do poder que acumulou sobre o Orçamento na última década – apenas para 2025, está-se falando de R$ 50 bilhões destinados às emendas. Ao mesmo tempo, a Corte decerto está em busca de uma saída honrosa para esse falso impasse, por inconstitucional desde a origem, de maneira a não sair desmoralizada diante de um flagrante ataque aos princípios mais comezinhos da Lei Maior.

Não menos importante, é digna de registro a indigência do governo de Lula da Silva no desenrolar dessa eleição. O presidente da República foi levado a reboque dos acontecimentos, tendo de se sujeitar aos nomes impostos pelos partidos para o comando da Câmara e do Senado porque não tinha alternativa, restando-lhe contar com o eventual apoio político do STF para tentar reaver algum tanto do poder que perdeu para o Congresso.

Ao fim e ao cabo, venceram Motta, Alcolumbre e os grupos políticos que ambos representam, mas não em prol de uma agenda virtuosa para o País – algo que, a bem da verdade, também está em falta no Palácio do Planalto –, e sim de um poder insubmisso à Constituição.

O ativismo do STF em números

O Estado de S. Paulo

Desde 2019, a Corte declarou 78 omissões inconstitucionais dos demais Poderes, contra apenas 62 entre 1990 e 2018. Isso dá a dimensão da disposição do STF de se intrometer na seara política

O ativismo do Supremo Tribunal Federal (STF), entendido por parte expressiva da sociedade como um dos principais vetores de degradação institucional do País, foi medido em números. O Estadão apurou que, de 2019 até agora, o STF já declarou 78 omissões inconstitucionais, vale dizer, lacunas de providência de outros Poderes, notadamente do Legislativo, para a concretização dos preceitos inscritos na Constituição. Isso representa uma média de 13 declarações de omissão por ano, praticamente uma por mês no período avaliado. Para dar uma ideia de quão aberrante é esse número, o Supremo declarou apenas 62 omissões inconstitucionais entre 1990 e 2018, o que equivale a cerca de duas por ano, em média, no decorrer de quase três décadas.

À luz dos fatos, é incontornável observar um liame entre o crescimento vertiginoso do número de declarações de omissão inconstitucional nos últimos seis anos e a disposição da atual composição do STF de se envolver em questões que, noutros tempos e sob o crivo de outros ministros, decerto teriam sido deixadas a cargo da política. O registro desse nexo causal, porém, não deve surpreender ninguém. Afinal, nem a própria Corte esconde seu engajamento em uma autoatribuída missão de definir os rumos da vida nacional em uma miríade de exorbitâncias. Ao contrário. Por vezes, o orgulho de um suposto papel de “empurrar a história”, como disse certa vez o ministro presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, chega às raias da soberba.

Evidentemente, em certos casos o Supremo não só pode, como deve agir diante de uma omissão inconstitucional. Ou o Poder Legislativo, por óbvio, não teria previsto esse instrumento de controle de constitucionalidade. A razão para isso é simples. Todo o ordenamento jurídico se submete à supremacia da Lei Maior, donde se conclui que os Poderes da República não podem ir além e tampouco ficar aquém de suas atribuições e prerrogativas. São elas, afinal, que materializam o texto constitucional na vida cotidiana do País, resguardando direitos e fazendo cumprir deveres. O busílis está na medida. Tal como um remédio, a diferença entre a saúde democrática e a doença institucional está na dose do avanço do Supremo sobre questões que, originalmente, não lhe são afeitas.

A Corte já teve esse equilíbrio. Logo, pode voltar a tê-lo. Prova disso é o número relativamente baixo de declarações de omissão inconstitucional até o fim de 2018. Houve casos em que o STF não apenas declarou a lacuna do Legislativo, como também atuou como legislador positivo, mas com prudência. Um bom exemplo foi o julgamento de três mandados de injunção, em 2007, que regulamentou o direito de greve do funcionalismo público – previsto na Constituição, mas carente de regulamentação (a propósito, tramita na Câmara o Projeto de Lei Complementar 45/2022). Àquela época, o STF não se eximiu de assegurar o direito de greve dos servidores e fixou regras para seu exercício, mas deixou claro que sua decisão prevaleceria até que deputados e senadores decidam sobre o tema.

Esse cuidado republicano parece ter ficado no passado. Especialistas ouvidos pelo Estadão destacaram que o STF adotou uma atitude mais “expansiva”, não se limitando a declarar uma omissão inconstitucional, mas passando a legislar no lugar dos próprios legisladores sobre variada gama de questões, da criminalização da homofobia à demarcação de terras indígenas, passando pela quantidade de maconha que um cidadão pode portar. “Os ministros têm ampliado cada vez mais a interpretação de seus próprios poderes constitucionais”, disse o jurista Diego Werneck, pesquisador do Insper.

Para citar um exemplo recente de abuso na interpretação de uma suposta omissão do Congresso, veja-se o ímpeto do STF para reescrever o Marco Civil da Internet, à guisa de regulamentar as redes sociais. Ora, se o Congresso ainda não o fez, é porque entendeu não ter chegado a um consenso sobre a matéria, uma decisão política legítima contra a qual a Corte não tem nada a fazer.

O que Lula quer da Vale

O Estado de S. Paulo

Elogios de Lula à Vale encobrem intenção de transformá-la em financiadora de seus projetos

Ao assumir publicamente a trégua recentemente selada com a Vale, o presidente Lula da Silva deixou explícito o preço do armistício: a participação direta da empresa em programas governamentais. Chegou a citar iniciativas ligadas à transição energética e à exploração de minerais críticos, ambas com projetos em curso. Para Lula, a Vale deixou de ser “governada” de forma “muito irresponsável” e agora “se dispõe a ter um novo comportamento”.

Lula nunca engoliu a privatização da Vale, há quase 30 anos. Recentemente, disse que a empresa era “motivo de orgulho” quando era estatal e que agora, por ser privada e com controle pulverizado, “não tem um dono” com quem o governo possa falar – e sobre quem possa exercer pressão para atender aos projetos de Lula, claro. O petista já declarou que “as empresas brasileiras precisam estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro”. Incansável, Lula tentou emplacar um sabujo seu na direção da Vale – até o ex-ministro Guido Mantega foi aventado –, sem sucesso.

A nova direção da Vale, porém, já deu sinais de que a pressão de Lula funcionou de alguma forma, pois houve uma clara tentativa de aproximação com o governo.

Lula quer ter voz ativa na Vale. Não parece nem um pouco incomodado com o prejuízo ao ambiente de negócios que sua obstinação cria, desde que mantenha aberto um canal de financiamento a projetos governamentais, que certamente não ficarão restritos aos segmentos que citou, escolhidos a dedo por fazerem parte do escopo da Vale.

O anúncio de que vai convocar uma reunião com representantes do governo e da empresa para discutir “como é que a gente vai vencer os obstáculos de mineração que a Vale está enfrentando”, mais do que selar a paz, eliminou qualquer dúvida que pudesse haver sobre relações de troca.

Desde que Gustavo Pimenta, ex-vice-presidente Financeiro e de Relações com Investidores, assumiu a presidência da empresa, foram firmados acordos para dois “obstáculos” importantes que estavam emperrados: o pagamento de recursos adicionais ao governo para manter a concessão das ferrovias Vitória-Minas e Carajás, seus dois grandes canais de escoamento de minério, e o acordo definitivo de reparação pelo rompimento da barragem de Mariana, em 2015.

Pimenta esteve em Brasília na última semana em uma conversa que Lula definiu como “extraordinária”. “Eu fiquei muito contente com a impressão que me passou o presidente da Vale, e nós queremos discutir várias coisas para fazer com que a Vale volte a produzir mais minérios e volte a ser a primeira ou a segunda no mercado internacional”, afirmou.

Esperto, Lula quer emplacar a versão de que se trata de um ganha-ganha entre o governo e a Vale, sem mencionar temas sensíveis como o apoio compulsório à indústria naval e investimentos em siderurgia, que foram pontos de atrito com a mineradora há duas décadas. A intenção mal disfarçada é fazer da Vale uma financiadora de seu projeto desenvolvimentista, como se estatal ainda fosse.

Criatividade para dar a volta por cima na economia

Correio Braziliense

Para especialistas, a economia criativa tem potencialidade para prosperar e reduzir significativamente o desemprego, absorvendo brasileiros que, mesmo com pouco letramento, tem capacidade de produzir arte de qualidade

Os brasileiros chamam a atenção pela criatividade, povo conhecido por ser capaz de contornar as adversidades conjunturais do momento e dar a volta por cima. Essa habilidade tem movimentado a economia criativa, um segmento heterogêneo — que abrange artesanato, moda, artes, cultura, mídia, entretenimento, gastronomia, inovação tecnológica, informática, arquitetura e urbanismo — e com potencial para movimentar a economia nacional. Estimativa mais recente indica que 8,2 milhões de pessoas atuam no setor — conforme o Boletim de Emprego do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), divulgado no segundo trimestre de 2024 —, responsável por 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, segundo o Observatório Nacional da Indústria (ONI).

O Distrito Federal é um dos destaques nacionais. É a segunda unidade federativa em percentual de trabalhadores da economia criativa. Segundo o Dieese, 9,7% dos trabalhadores da capital (130 mil formais) atuam no setor e produzem cerca de R$ 10 bilhões por ano, contribuindo com 3,5% para o PIB local. Não à toa, o DF dispõe de políticas pública para a economia criativa, como incentivos fiscais, programas e apoio ao empreendedorismo — a exemplo o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) e a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), no âmbito da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec) —, além de contar com um elevado número de instituições culturais, festivais, universidades e polos tecnológicos.

São Paulo lidera o ranking, com 9,8% dos trabalhadores em ocupações criativas em relação aos ocupados. Em terceiro, estão Rio de Janeiro e Ceará, com 9,3%; seguidos de Rio Grande do Sul (8,5%); Santa Catarina (8,4%) e Paraíba (8,1%). Minas Gerais está na 17ª posição, empatado com o Espírito Santo (7%).

Apesar de promissora, a economia criativa é desafiante tanto na capital federal quanto em outras unidades da Federação. Ao Correio o economista Riezo Silva lista uma série de desafios a serem vencidos, como "maior acesso ao crédito, formação especializada e melhoria da infraestrutura de espaços culturais e tecnológicos". Pouco menos da metade, 42,2%, dos trabalhadores do setor encontrava-se na informalidade no levantamento de 2024 — condição  acima da média nacional considerando todos os segmentos da economia, de 38,6%.

Para especialistas, esse segmento tem potencialidade para prosperar e reduzir significativamente o desemprego, absorvendo brasileiros que, mesmo com pouco letramento, têm capacidade de produzir arte de qualidade. Isso vale também aos jovens, principalmente das camadas mais empobrecidas das periferias urbanas, carentes de conhecimento, profissionalização e  renda. Há, ainda, a possibilidade de a economia criativa romper a discrepância entre gêneros no país. Dados do governo revelam que, das 98 milhões de pessoas economicamente ativas, 52% são mulheres. Porém, só 46% delas têm espaço no mercado de trabalho formal, enquanto 66% dos homens estão empregados. 

São muitas as mães solo, as mulheres de meia-idade e as idosas que sobrevivem por meio do artesanato e das guloseimas nas ruas das cidades, mas com todas as dificuldades da informalidade. Políticas públicas direcionadas a esse público, linhas de financiamento acessíveis e projetos que estimulem a produção e o comércio colaborativos de produtos e serviços da economia criativa  são alguns dos caminhos que podem ajudá-las a trabalhar, com segurança,  por condições dignas de vida. 

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