O Globo
Decorrido um século, se ainda houver
civilização, haveremos de falar de Hermínio Bello de Carvalho
A coluna da semana passada seria sobre
Hermínio Bello de Carvalho, que, na véspera (28/3), completara 90 anos. Na
última hora, a política atropelou a música, e o assunto acabou sendo Débora
Rodrigues e Alexandre de Moraes. Foi mal. Sei que mais cedo ou mais tarde/
Vai ter um covarde pedindo perdão, lembra Hermínio, ao som de Jacob do
Bandolim.
Em cinco anos, não nos lembraremos mais da patriota do batom. Daqui a 50, o superministro deve estar tão esquecido quanto os que esvoaçavam suas togas no plenário 50 anos atrás. Mas, decorrido um século, se ainda houver civilização (com Trump, Putin, Xi e Kim à solta, nunca se sabe), haveremos de falar de Hermínio Bello de Carvalho. Porque a arte é longa — breve é a vida.
Foi Hermínio quem reuniu a realeza dos bambas
— aquela gente da antiga: Pixinguinha, João da Baiana, Clementina — num dos
mais importantes discos da música brasileira. E juntou Elizeth, Jacob, Zimbo
Trio e Época de Ouro para tocar e cantar Tom, Vinícius, Baden, Menescal, Ary,
Noel, Zé Keti, Paulinho, Nélson Cavaquinho, Chico, Milton, Edu.
Sei lá, não sei. Sei lá, não sei não:
Hermínio é tão grande que nem cabe explicação. Sem ele, talvez nunca
chegássemos a conhecer Clementina. Ou Alaíde Costa, ou Áurea Martins.
Nesta coluna poderiam estar o tarifaço
trumpista e a colossal desinteligência, a ciclópica arrogância, a piramidal
irresponsabilidade daquele que desgoverna a (ainda) maior potência e (outrora)
farol da democracia. Mas é preciso louvar o timoneiro do Projeto Pixinguinha,
que oferecia espetáculos de qualidade, a preços populares, em horários
alternativos, país afora. Foi ali que parte da minha geração entendeu o que
nossos pais viam (e ouviam) em Dóris Monteiro, Lúcio Alves, Tito Madi, Ademilde
Fonseca.
Era uma fórmula simples: um artista renomado
dividia o palco com outro em início de carreira ou ainda sem o devido
reconhecimento. Assim, Luiz Melodia e Zezé Motta receberam
Marina. A quase octogenária Clementina acolheu o jovem João Bosco. Moreira da
Silva rejuvenesceu ao lado de Jards Macalé. Marlene se reinventou no diálogo
com Gonzaguinha. De um lado, Cartola, Jackson do Pandeiro, Nara Leão — do
outro, Zizi Possi, Belchior, Djavan.
Quem viu (meninos, eu vi!) não esquece. No leme desse barco (Não sou eu quem me
navega/Quem me navega é o mar), Hermínio Bello de Carvalho.
Assunto não faltava para hoje. A popularidade
de Lula parou
de cair, agora despenca. Se, no afã de estancar o declínio, ele se viu obrigado
até a criticar roubo de celular, quem sabe a queda livre o obrigue a condenar o
terrorismo, o imperialismo russo ou a tentar conter a inflação e a
primeira-dama. Mas não: ele vai à Rússia (à Rússia!), e Janja tem permissão
para gastar.
A resposta é o silêncio/Que atravessa a
madrugada, ensina Hermínio, com Elton Medeiros.
Bolsonaro (finalmente!) vira réu. Nunca mais
vai beber minhas lágrimas/ Não vai, não/Me fazer de gato e sapato/Não vai
mesmo, não, celebra Hermínio, com Sueli Costa. A Globo sacrifica “Vale tudo” no
altar do politicamente correto (logo “Vale tudo”!). Acinzentaram
minh’alma/Mas não cegaram o olhar, resiste Hermínio, mãos dadas com Dona Ivone
Lara.
Por isso é preciso falar, hoje, sempre, de
Hermínio Bello de Carvalho. Para que a beleza nos mostre que este país ainda
presta e que ela nos salvará.
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