O Estado de S. Paulo
Presidente americano evoca o fim do século 19
para conduzir política econômica, mas esquece que país não tinha protagonismo
Desde 2017, EUA pararam os esforços para expandir o comércio, mas outros países fizeram o oposto
O Dia da Libertação é um nome oportuno para a
política do presidente Donald Trump de impor novas tarifas massivas sobre
produtos de todo o mundo. Ele considera os EUA uma colônia vitimizada,
explorada por outros países que lhes roubaram empregos, indústrias e dinheiro.
“Nosso país e seus contribuintes foram enganados por mais de 50 anos”, disse
ele ao anunciar seus planos, na quarta-feira.
Seus asseclas, como o vicepresidente J.D.
Vance e o secretário de Comércio Howard Lutnick, repetem essa percepção como
papagaios, definindo a imagem de um país destituído, com fábricas esvaziadas,
trabalhadores desempregados e salários estagnados.
A realidade é o oposto. E somente porque é o oposto – em outras palavras, por causa do poder econômico inigualável dos EUA – Trump é capaz de tentar sua política tarifária. O peso econômico dos EUA lhe permite tentar forçar o restante do mundo a se curvar à sua vontade. Mas Trump está usando o poder americano de uma forma tão arbitrária, destrutiva e burra que isso quase certamente resultará em um desfecho “perde-perde” para todos.
A verdadeira história econômica das últimas
três décadas é que os EUA estiveram à frente de todos os seus principais
concorrentes. Em 2008, a economia americana era quase do mesmo tamanho que a
economia da zona do euro, agora é quase o dobro.
Em 1990, a média salarial dos EUA era cerca
de 20% maior do que a média geral no mundo industrializado avançado; agora é
cerca de 40% maior. Em 1995, um japonês era 50% mais rico do que um americano
em termos de PIB per capita, hoje um americano é cerca de 150% mais rico do que
um japonês.
Na realidade, o Estado americano mais pobre,
o Mississippi, tem um PIB per capita maior que o do Reino Unido, da França ou
do Japão.
E ainda assim Trump está convencido de que,
ao longo de todas essas décadas, os EUA estiveram em um declínio acentuado. Sua
visão de mundo parece ter sido definida na década de 60, quando, em sua
memória, os EUA eram uma grande potência industrial (outra parte dessa antiga
visão de mundo é estimar exageradamente a capacidade de Moscou, que em sua
mente, ao que parece, continua sendo um ator econômico imponente no cenário
mundial, com o qual ele poderia fazer muitos negócios importantes. A Rússia,
bizarramente, foi excluída das novas tarifas).
A realidade de os EUA serem a nação dominante
nas esferas de crescimento mais rápido e mais críticas da economia global
atualmente – tecnologia e serviços – parece não significar nada para ele.
ERROS. Suas tarifas foram calculadas usando
um método mais próximo ao vodu que à economia. Entre os muitos erros, elas se
baseiam apenas nos déficits comerciais em mercadorias dos EUA em relação aos
outros países. De alguma maneira, não importa que os EUA gerem superávits
enormes em serviços – exportando softwares, serviços de software, filmes,
músicas e serviços jurídicos e financeiros para o mundo. Mais de 75% da
economia dos EUA é aparentemente uma penugem impalpável; o aço é o verdadeiro
negócio.
Mas embora sejam a potência dominante no
mundo, os EUA não são tão fortes a ponto de poderem agir de forma tão
irracional. A economia mundial cresceu em tamanha magnitude e escala que
encontrará maneiras de contornar o protecionismo americano, que agora figura
entre os mais notórios do mundo.
Ao contrário das teimosas convicções de
Trump, os EUA já eram realmente um tanto quanto protecionistas, com barreiras
comerciais tarifárias e não tarifárias maiores do que em outros 68 países. Com
essas novas tarifas, o protecionismo americano foi às alturas, com taxas mais
altas que as da Lei Tarifária de 1930, que exacerbaram a Grande Depressão. No
curto prazo, todos sofrerão. No médio e longo, porém, os países começarão a
evitar negócios com os EUA.
PROTAGONISMO. Esse movimento já começou.
Desde que Trump assumiu o cargo em 2017, os EUA abandonaram praticamente todos
os esforços para expandir o comércio, mas outros países assumiram a
responsabilidade. A União Europeia assinou oito acordos comerciais novos; a
China, nove. Conforme observou o presidente da Rockefeller International,
Ruchir Sharma: “Dos 10 corredores comerciais de crescimento mais rápido, cinco
têm terminal na China; apenas dois têm terminal nos EUA”. Países precisam de
crescimento, e isso significa comércio.
A China será claramente a grande vencedora
nessa nova economia mundial porque se posicionará como o novo centro de
comércio. Adicionando a isso a hostilidade de Trump em relação aos aliados mais
próximos dos EUA, os americanos provavelmente verão a Europa, o Canadá e até
mesmo alguns dos aliados na Ásia buscarem maneiras de trabalhar com a China.
A visão de mundo nostálgica de Trump remonta
a uma época ainda mais distante do que a década de 60. O presidente evoca com
carinho o fim do século 19, quando, conforme ele descreveu esta semana, os EUA
tinham apenas tarifas e nenhum imposto de renda e eram mais fortes
economicamente do que jamais haviam sido em comparação ao restante do mundo.
Essa história é absurda. Em 1900, os EUA eram responsáveis por cerca de 16% da
economia global segundo uma métrica. Agora, sua participação equivale a 26%. Os
padrões de vida e de saúde dos americanos são muito mais elevados hoje.
Mas ao agir segundo sua fantasia nostálgica, Trump pode muito bem acabar arrastando os EUA de volta ao que o país era naquela época: uma nação mais pobre, dominada por oligarcas e corrupção e contente com sua arrogância em seu próprio quintal e em intimidar seus vizinhos, mas secundário em relação às grandes correntes globais da economia e da política.
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