Folha de S. Paulo
Trump vê o déficit comercial como sinal de
fraqueza e prova de que o resto do mundo extorque seu país, mas a verdade é o
oposto disso
Big Bang: no "Dia da Libertação" de
Trump, os EUA saltaram da condição de economia mais aberta à de uma das mais
protegidas do planeta. À nova tarifa universal de 10% somam-se "tarifas
recíprocas" definidas por critérios mercantilistas contra seis dezenas de
parceiros comerciais. É uma "bomba nuclear no sistema global de
comércio", na definição de Ken Roggoff, ex-FMI.
No mundo real, baseado na regra de "nação mais favorecida" estabelecida pelo GATT em 1947, cada país fixa tarifas universais por grupos de produtos (as exceções positivas são os acordos de comércio e as negativas, os regimes de sanções comerciais). Contudo, no universo paralelo trumpiano, expresso numa tabelinha de percentuais emanada da Casa Branca, existiriam tarifas aplicadas por cada país "sobre os EUA". As tais "tarifas recíprocas" são a réplica de Trump não a barreiras tarifárias mas a superávits comerciais de seus parceiros.
Na prática, em gesto de supremo desprezo ao
multilateralismo, os EUA criaram um sistema universal de sanções. China, 54%; União
Europeia, 20%; Japão, 24%; Coreia do Sul, 25%; Índia, 26%; Vietnã, 46%; e
Taiwan, 32%, são os grandes parceiros mais penalizados. Trump promete, ainda,
dobrar a dose tarifária sobre países que ousarem retaliar. Na sua mente, só os
EUA, maior importador global, possuem um arsenal devastador numa guerra
comercial total.
De fato, quem chora primeiro são os
outros. Canadá e
México, que dirigem mais de 75% de suas exportações aos EUA, escaparam das
"tarifas recíprocas" mas seguem na alça de mira de tributações
especiais sobre automóveis, aço e alumínio. Os EUA são o destino de mais de 15%
das exportações chinesas, japonesas, indianas e sul-coreanas e de quase 30% das
vietnamitas. As economias asiáticas experimentarão graves hemorragias. A
exceção parcial é a União Europeia, maior bloco comercial do planeta, cujo
vasto mercado interior propicia o exercício seguro do esporte da retaliação.
Contudo, quem chora por último são os EUA.
Trump enxerga o imenso déficit comercial americano como sinal de fraqueza e
prova de que o resto do mundo extorque seu país. A verdade é o oposto dessa
crendice mercantilista: o déficit externo, financiado sem dificuldades pela
nação que emite a "moeda mundial", reflete a riqueza da sociedade
americana.
Trump imagina que as tarifas são ferramentas
para equilibrar a balança comercial e atrair investimentos capazes de promover
uma extensiva reindustrialização dos EUA. Na prática, a muralha tarifária
elevará os preços internos, reduzindo o poder de compra dos consumidores
americanos e o potencial de crescimento da economia. Além disso, devido a
custos de produção maiores e ao efeito de retaliações tarifárias, reduzirá as
exportações e, portanto, não eliminará o déficit comercial.
Os principais sistemas de alianças geopolíticas dos EUA (Otan, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Taiwan e, mais recentemente, Índia) são lastreados por intensos intercâmbios de bens, serviços, capitais e tecnologia. China excluída, a guerra tarifária trumpiana representa uma agressão americana contra seus aliados estratégicos. Seu custo estrutural estende-se muito além da esfera econômica: Trump esfarela os pilares sobre os quais se ergue o chamado Ocidente. Xi Jinping e Vladimir Putin riem por último.
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