sábado, 5 de abril de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Regras para ações policiais em favelas do Rio são razoáveis

O Globo

Decisão do STF equilibra necessidade de enfrentar criminosos e proteger inocentes dos tiros da polícia

Diante da situação crítica na segurança no Rio de Janeiro, fez bem o Supremo Tribunal Federal (STF) em flexibilizar as normas para operações policiais nas favelas, impostas em 2020, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a ADPF das Favelas. Embora elas não proibissem as incursões, na prática engessavam o trabalho da polícia. Foram alvo de críticas do governo do estado e da prefeitura carioca. Em decisão consensual, a Corte retirou a exigência de excepcionalidade para as ações. Caberá à própria polícia avaliar quando são necessárias. É mais sensato.

Foi acertada também a decisão de acabar com restrições a helicópteros. Evidentemente, eles devem ser usados com cautela, mas a polícia não pode abrir mão de um recurso essencial no enfrentamento a criminosos cada vez mais bem armados. O poder de fogo dos bandidos ficou claro no mês passado, quando o copiloto de um helicóptero da polícia levou um tiro na cabeça ao sobrevoar uma comunidade.

Outro avanço foi a determinação para que a Polícia Federal (PF) investigue organizações criminosas com alcance interestadual e internacional, além de suas conexões com agentes públicos. É uma medida óbvia, que já deveria ter sido posta em marcha há tempos. O objetivo é identificar as quadrilhas, seus líderes e modus operandi, em especial movimentações financeiras. Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Receita Federal e secretaria estadual de Fazenda deverão dar “máxima prioridade” no atendimento à PF. A Corte ainda cobrou do estado um plano para reocupar territórios tomados pelo tráfico e pela milícia. Outra medida óbvia, cuja demora é inexplicável.

A ADPF das Favelas foi impetrada em 2019 pelo PSB, num momento em que a letalidade policial no Rio explodia. Naquele ano, 1.814 civis morreram no estado, atingidos pela polícia. O número diminuiu nos últimos anos, em grande parte como resultado das determinações da Corte, em especial o uso de câmeras corporais nas fardas dos policiais. No ano passado, chegou a 703.

Seria um erro imaginar que a flexibilização representa retrocesso. Se, por um lado, o Supremo retirou as amarras que emperravam o trabalho da polícia, por outro impôs medidas para enquadrar e monitorar as operações. Uma delas é a obrigatoriedade de autópsia. Além disso, ordenou melhorias nos dados sobre letalidade e deu 180 dias de prazo para que o estado comprove a instalação de câmeras nas viaturas (nas fardas, objeto de determinação anterior, estão em implantação). Câmeras são fundamentais para dar transparência, mas precisam funcionar para valer, para que não aconteça como em São Paulo, onde mortes em intervenções policiais voltaram a crescer depois de relaxamento no uso do equipamento.

A nova decisão do STF traduz um equilíbrio maior entre o enfrentamento à criminalidade e o combate à letalidade policial. Não se pode ignorar que comunidades do Rio são dominadas por traficantes e milicianos que subjugam moradores e levam terror ao estado. Essas quadrilhas têm de ser reprimidas. Para isso, a polícia precisa ter liberdade para fazer seu trabalho in loco. Mas isso não significa um salvo-conduto para dar tiros a esmo, pondo a população em risco. As ações devem ser bem planejadas, respeitar os cidadãos e proteger a vida de inocentes. Não há por que escolher entre a redução da letalidade policial e o combate ao crime. Não são objetivos excludentes.

Dívida de entes federativos continua a pesar sobre os cofres públicos

O Globo

Em um ano, alta foi de 17% — e novo programa de alívio estimula endividamento ainda maior

A dívida de estados e municípios criada por renegociações com a União aumentou 17% de 2023 para 2024 — de R$ 619 bilhões para R$ 727 bilhões, de acordo com o último Balanço Geral da União. Os números divulgados pelo Tesouro Nacional põem no devido contexto a última rodada de alívio nessas dívidas, promovida pelo recém-aprovado Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag).

Proibidos desde 1998 de se endividar com lançamento de títulos, os estados mais uma vez poderão desafogar o caixa, devido às condições camaradas da nova renegociação. Nas discussões técnicas, chegou a ser aventado um cenário em que, se amortizassem 20% das dívidas com a entrega de ativos e reduzissem a zero o pagamento de juros — como preveem as regras do Propag —, a União lucraria R$ 5,5 bilhões até 2029. Trata-se de um cenário puramente fantasioso. Por meio da Lei de Acesso à Informação, o jornal Folha de S.Paulo obteve simulações do Tesouro para o socorro. Na melhor das hipóteses, a União deixará de arrecadar R$ 797 bilhões até 2048 e, na pior, R$ 1,28 trilhão. O Propag não passa, portanto, de transferência de renda da União aos entes federativos que a ele aderirem.

Não seria um problema se as contrapartidas exigidas impusessem aos beneficiados o rigor fiscal necessário para pôr suas contas em ordem. Infelizmente, não é o caso. E não é a primeira vez. As rodadas de renegociação se sucedem sem que se vislumbre solução para o endividamento de estados e municípios. Só depois do Plano Real, houve pelo menos dois grandes acordos, em 1997 e 2016. Os governadores receberam ajuda do governo federal, sob o compromisso de voltar a pagar as contas em dia. Assim que o cenário apertou, voltaram a pedir arrego.

Uma cultura política perniciosa induz governantes a ser menos rígidos nas finanças, por acreditar que em algum momento a União virá em seu socorro para evitar a paralisia de serviços básicos. A cada nova rodada de alívio, aumenta o incentivo para que ignorem o rigor fiscal — aumenta o “risco moral”, no jargão dos economistas. Não é outro o motivo para, apesar de todos os benefícios concedidos pelo Propag, haver mobilização entre os estados endividados para derrubar os vetos impostos ao projeto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Quatro estados — Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás — haviam aderido ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), instituído em 2017. E apenas cinco respondem por 90% das dívidas: São Paulo, Rio, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás. Desses, o único sem problemas fiscais é São Paulo. O Propag, porém, está à disposição de toda a Federação. Quem se dispuser a atender às contrapartidas camaradas pode aproveitar para alongar o perfil de sua dívida. O necessário teria sido uma legislação mais dura com o administrador público que se mostrasse um inadimplente contumaz. Em vez disso, continuaremos a ver as dívidas crescerem, e os estados com contas em dia pagarem pela incúria dos fiscalmente irresponsáveis.

Supremo e Rio amenizam debate sobre operações policiais

Folha de S. Paulo

STF recua em algumas ações e mantém outras para conter letalidade; caso expõe necessidade de defesa dos direitos humanos

O Supremo Tribunal Federal concluiu, na quinta-feira (3), o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas. Tratava-se de um caso controverso também por levantar a questão dos limites da atuação da mais alta corte do país.

De fato, em outras decisões recentes, o STF chegou a invadir a seara do Executivo e do Legislativo. Em relação a essa ação, porém, notou-se a tentativa de compatibilizar princípios constitucionais com as necessidades do trabalho das forças de segurança no estado do Rio de Janeiro.

A ADPF foi movida pelo PSB em 2019, com o objetivo de disciplinar operações policiais em comunidades do Rio, e seu mérito começou a ser analisado em novembro de 2024. Em fevereiro, o relator, ministro Edson Fachin, anunciou seu voto, no qual indicou medidas para conter abusos.

Antes, durante a pandemia de Covid-19, Fachin concedera uma liminar que só permitia grandes operações em comunidades "em hipóteses absolutamente excepcionais" e estabelecia critérios.

Tal providência gerou conflito político. O governador do estado, Cláudio Castro (PL), e o prefeito da capital, Eduardo Paes (PSD), passaram a acusar o Supremo de inibir a atuação policial e de fortalecer o crime organizado.

Apesar de o número de operações ter caído logo após a liminar, ele voltou a subir. De todo modo, as mortes por intervenção policial despencaram de 1.814 em 2019 para 703 em 2024, segundo dados do Ministério da Justiça.

Em sua decisão definitiva, consensual, o Supremo ampliou o prazo, de 120 para 180 dias, para que o estado comprove a instalação de câmeras em viaturas e fardas policiais e derrubou determinações de 2020, como restrições para ações em áreas próximas a escolas e com helicópteros.

Negou, ainda, a exigência de lugar, motivo e objetivo de diligência para mandado de busca e apreensão domiciliar —tais ações, no entanto, só podem ocorrer durante o dia. No caso de mortes em operações, as autópsias devem ser concluídas em até 10 dias, o Ministério Público precisa ser acionado e um delegado tem de ir ao local, que deve ser preservado para a perícia.

Medidas de inteligência, fundamentais para combater facções criminosas, foram determinadas, com atuação da Polícia Federal articulada com a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Mirou-se ainda o fortalecimento do controle externo da atividade policial. Um colegiado coordenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em conjunto com as corregedorias locais, produzirá relatórios de acompanhamento semestrais.

A decisão foi celebrada pelo outrora crítico governador do estado, o que eleva as esperanças de que o tema venha a ser pacificado desta vez. O fundamental é que o urgente combate à criminalidade respeite princípios básicos de direitos humanos.

Paraguai espionado

Folha de S. Paulo

País vizinho reage à revelação de operação da Abin sobre Itaipu no governo Bolsonaro; há lacunas na explicação do Brasil

A relação entre Brasil e Paraguai vive sob estresse desde que o UOL revelou, no último dia 31, uma operação de espionagem da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sobre as posições de Assunção em duas negociações em torno da energia gerada pela binacional Itaipu —ambas, por sinal, de interesse dos consumidores do país.

O governo de Santiago Peña tratou o episódio como quebra de confiança na relação entre os sócios do Mercosul, além de violação do direito internacional. O presidente do país vizinho disse nesta sexta-feira (4) que "velhas feridas" foram abertas.

Seria improvável uma avaliação mais complacente diante dos fatos trazidos a público e das lacunas ainda visíveis nas explicações do governo brasileiro.

De pronto, Assunção suspendeu as negociações da nova versão do chamado Anexo C do Tratado de Itaipu, que definirão as novas bases financeiras da empresa binacional —a assinatura estava prevista para 30 de maio. Um pré-acordo já alcançado previa a redução de tarifa pela hidrelétrica a partir de 2026.

Na seara diplomática, o imbróglio escalou com a convocação a Assunção do embaixador do Paraguai em Brasília, Juan Ángel Delgadillo, e o chamado do embaixador brasileiro, José Antônio Marcondes de Carvalho, para explicar-se à chancelaria paraguaia —duas tradicionais demonstrações de crise nascente.

Conforme a reportagem do UOL, a Polícia Federal abriu investigação ao identificar que a Abin autorizara a invasão de dispositivos informáticos do governo, do Congresso e de autoridades do Paraguai em junho de 2022, durante a administração de Jair Bolsonaro (PL).

A finalidade da operação seria extrair informações sigilosas sobre as posições do país vizinho no Anexo C e também no acordo de preços da parcela de energia de Itaipu que cabe aos paraguaios e é vendida ao Brasil.

Por meio de nota, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) negou seu envolvimento na espionagem e informou tê-la "tornado sem efeito" em março de 2023, ao tomar conhecimento do caso. Entretanto, deixou sem respostas questões ainda capazes de afetar a negociação relativa à Itaipu e à própria relação bilateral.

Primeiro, sobre o fato de o atual diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Corrêa, ter dado aval ao início da operação, como integrante da diretoria da agência em 2022. Igualmente relevante —e bem mais difícil— será demonstrar que as informações colhidas não influenciaram as posições brasileiras nas negociações.

Trump e o ‘Grande Salto para Trás’

O Estado de S. Paulo

Trump deu um golpe mortal na globalização que os EUA ajudaram a construir. As nações amigas do livre comércio perderam um grande aliado, mas só estarão desamparadas se não souberem se unir

Numa canetada, o presidente dos EUA, Donald Trump, decretou o retorno do mundo ao século 19. Se Mao Tsé-tung condenou à fome quase 45 milhões de chineses com seu Grande Salto para a Frente, o plano de industrialização forçada que arruinou a China entre 1958 e 1962, Trump deu o que se pode chamar de “Grande Salto para Trás”, para forçar a reindustrialização dos EUA à custa da globalização – que durante décadas ajudou a construir a pujança americana.

O “Dia da Libertação” anunciado por Trump elevou as barreiras tarifárias de seu país a um nível acima do verificado na época da Grande Depressão e mesmo no século 19. Segundo Trump, os EUA se “libertaram” neste momento das nações que têm “saqueado, pilhado, estuprado e roubado” os americanos. Nada mais falso.

A integração arquitetada pelos líderes do pós-guerra, com os EUA à frente, foi justamente uma reação à fragmentação da primeira metade do século 20 que contribuiu para a Depressão e a 2.ª Guerra. Ao invés de um nacionalismo econômico de soma zero, projetou-se uma cooperação global de soma positiva, na qual cada país venderia livremente o que produz de melhor para comprar o que os outros produzem de melhor, participando um do sucesso do outro, fortalecendo laços de confiança e cimentando a estabilidade geopolítica. Com a queda do Muro de Berlim, esse movimento, até então circunscrito ao Ocidente e seus parceiros, assumiu um caráter verdadeiramente global. Nunca na história humana a pobreza, o analfabetismo e a mortalidade infantil caíram tanto como nos últimos 35 anos.

A experiência histórica do protecionismo, ao contrário, é de desaceleração do crescimento e atritos geopolíticos. Barreiras à importação encarecem bens de consumo e produção, desestimulam a inovação e a competitividade e convidam outros países a erguer barreiras às exportações. Como explicar essa espécie de masoquismo econômico nos EUA?

É matematicamente demonstrável que os benefícios para países ricos ou pobres que se integraram mais à economia global superaram os custos. No entanto, os benefícios são diluídos entre todos; os custos frequentemente são concentrados em alguns grupos – como operários industriais nos países ricos, os “deixados para trás”. Outra razão são as falhas no sistema. A China, por exemplo, se beneficiou do livre comércio, mas frequentemente burlando as regras com subsídios e dumpings.

Ainda assim, os benefícios para um país como os EUA, a economia que mais cresceu no G-7, superaram largamente os custos, e a racionalidade demandaria reformas no sistema. Se Trump decidiu implodi-lo é por uma lógica política. Ele crê que, sem regras, o poder econômico e militar dos EUA lhe garantirá melhores negócios. Nos últimos 20 anos a sensação de insegurança aumentou após a irrupção da crise financeira, mudanças climáticas, pandemia e guerras, e os populistas habilidosos sabem excitar os medos ao ponto da paranoia para concentrar mais poder.

“Muros” e “proteção” estão por toda parte na agenda trumpista. Não só nas suas políticas comerciais, mas geopolíticas, imigratórias e culturais, Trump está sempre obstruindo fluxos de ideias, contatos, alianças. “A essência da agenda de Trump poderia ser: não gostamos desses malditos estrangeiros”, resumiu o articulista do The New York Times David Brooks.

Os EUA foram uma nação erguida por estrangeiros e, como todas as grandes nações da História, fizeram-se grandes fazendo negócios com outras nações. O isolacionismo não fará o país grande de novo, ao contrário. Mas, se os EUA renunciam às razões de sua grandeza, o resto do mundo não precisa seguir esse caminho.

Os EUA, que dão as costas ao livre comércio, e a China, que o distorce, são grandes. Mas justamente um dos benefícios da globalização foi que a fatia das duas potências juntas no comércio global diminuiu nos últimos 20 anos. Se as nações amigas do livre mercado souberem reverter a fragmentação e cimentar blocos cada vez maiores baseados numa competição justa e aberta, têm uma chance de trazer os EUA de volta à razão e disciplinar o capitalismo de Estado chinês, para benefício de todos. Se não, elas serão, para triunfo de Trump, artífices do fim da globalização.

O Programa Nacional de Imunizações está doente

O Estado de S. Paulo

O PNI foi responsável por um salto civilizacional no Brasil. Mas as defasagens do programa cinquentenário estão pondo vidas em risco e ele precisa urgentemente de cuidados terapêuticos

A luta por uma humanidade sadia sempre foi majoritariamente uma luta contra micróbios. Por quase toda a história humana, nós estávamos do lado perdedor. Há 150 anos nem sequer conhecíamos o inimigo. As doenças infecciosas matavam cerca de metade das crianças. A grande virada veio com as vacinas. Estima-se que só nos últimos 50 anos elas tenham salvado 100 milhões de crianças. Quando você terminar a leitura deste editorial, as vacinas terão salvado 30 crianças.

Desde os tempos de Oswaldo Cruz, no início do século 20, o Brasil esteve na vanguarda da contraofensiva contra os germes. Em 1973, foi criado o Programa Nacional de Imunizações (PNI) para coordenar ações de imunização até então intermitentes e episódicas. Antecipando princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) – como a assistência universal, integral e gratuita prestada por uma rede federativa hierarquizada e integrada –, o PNI foi responsável pela erradicação de rubéola, tétano, sarampo e pólio, e se tornou uma referência global.

Desde 2016, no entanto, a cobertura vacinal vem caindo. Em 2023, a cobertura de todas as cinco vacinas prioritárias para crianças de até um ano estava em média mais de 10 pontos porcentuais abaixo da meta de 95% e bem abaixo dos índices de 2015 (98%).

A hesitação vacinal – motivada tanto pela passividade difusa de uma geração já imunizada e esquecida da importância das vacinas quanto pela atividade virulenta de militantes antivacina – é um fenômeno mundial que foi acentuado pela politização da pandemia. Mas a complacência e o negacionismo são só uma parte do problema, e no Brasil provavelmente não são a principal. Ainda que fragilizada, a cultura de vacinação dos brasileiros é robusta e os índices de adesão e confiança nas vacinas são maiores do que nos EUA ou na Europa.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a imunização contra a covid-19 – com a criação, produção e distribuição das vacinas em tempo recorde – foi um triunfo para a ciência imunológica, ela também provocou rupturas nas cadeias de vacinação. A queda na cobertura vacinal foi drástica. Ainda assim, o declínio começou antes da pandemia e, como averiguou uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), tem razões crônicas. A gestão do PNI está avariada, em nível macro ou micro, em todos os elos da cadeia e nas três esferas da Federação, mas particularmente na espinha dorsal do sistema, o Ministério da Saúde.

O tribunal constatou deficiências na infraestrutura e manutenção dos equipamentos, a Rede Frio. É expressivo o uso de geladeiras domésticas, em vez de câmaras frias. Mais de 70% das centrais de vacinação não têm contratos de manutenção preventiva. Os sistemas de informação estão desagregados e são mal alimentados, o que prejudica a gestão dos estoques e o controle das perdas, comprometendo a rastreabilidade das vacinas, a eficácia da distribuição e a alocação racional de recursos. Em 2023, mais de 30 milhões de doses das vacinas infantis foram perdidas por vencimento de prazo de validade, gerando um prejuízo de mais de R$ 400 milhões, 14% do orçamento para compra de vacinas. A ausência de uma logística racional e baseada em dados fragiliza toda a cadeia de imunização, do abastecimento à aplicação.

O TCU aponta ainda inoperância nas estratégias de recuperação de coberturas vacinais e busca ativa, e também acusa defasagens na coordenação do financiamento à pesquisa, desenvolvimento e inovação em imunizantes.

Como concluiu o relator da auditoria, ministro Bruno Dantas, “a queda sustentada das coberturas vacinais, as perdas elevadas por vencimentos de vacinas, os episódios de desabastecimento, a baixa adesão aos sistemas de informação e as deficiências da Rede Frio evidenciam a necessidade de uma resposta urgente, coordenada e estruturante por parte do Ministério da Saúde e dos demais entes federativos”.

Por milênios a humanidade esteve completamente indefesa contra inimigos invisíveis. Hoje o Brasil tem a expertise e o arsenal necessários para vencer a guerra contra os micróbios homicidas. Cada criança perdida por negligência é um pecado que clama aos céus.

O repto ao Tribunal Penal Internacional

O Estado de S. Paulo

Decisão da Hungria de se retirar do TPI é apenas o abalo mais recente no organismo

A Hungria informou que iniciará procedimento de retirada do país do Tribunal Penal Internacional (TPI), único fórum global permanente para o julgamento de crimes de guerra e genocídio.

Anunciada em meio à presença do premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, em Budapeste, para encontro com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, a decisão é só mais um passo no processo de desvalorização do TPI.

Por ser membro do tribunal, a Hungria teria de cumprir o mandado de prisão que o TPI expediu contra Netanyahu e entregá-lo para um centro de detenção em Haia, sede do tribunal. O TPI entende que o israelense cometeu crimes de guerra em Gaza, em razão da brutal resposta ao ataque terrorista do Hamas que matou mais de 1.200 israelenses, a maioria civis, em 7 de outubro de 2023. O tribunal também emitiu pedido de prisão contra Mohammed Deif (posteriormente falecido), um dos principais líderes do Hamas.

Mas bastou a emissão do mandado do TPI contra Netanyahu, em novembro de 2024, para que Orbán deixasse claro sua intenção de descumpri-la. Logo no dia seguinte, ele convidou o israelense a visitá-lo, em evidente provocação ao órgão internacional.

Inspirado em Donald Trump, que em fevereiro deste ano impôs sanções contra integrantes do TPI, Orbán dobrou a aposta e aproveitou a presença do aliado israelense em Budapeste para divulgar a saída do tribunal, descrito pelo húngaro como uma corte “política”. Os EUA, que não são membros do TPI, sancionaram o órgão em retaliação ao mandado de prisão contra Netanyahu.

Embora haja toda uma discussão jurídica sobre se a Hungria pode ou não descumprir a decisão porque oficialmente continua no TPI – e o processo de efetivação da saída levaria cerca de um ano –, a realidade é que a ordem não foi acatada.

Como o TPI não tem sua própria polícia, depende da aderência dos países signatários para a prisão de líderes procurados por crimes contra a humanidade. A ação de Orbán demonstra que tal aderência não é garantida – depende de circunstâncias políticas.

Recentemente, o ex-presidente das Filipinas Rodrigo Duterte foi preso em Manila e extraditado para Haia; lá será julgado pelo TPI por sua truculenta política de guerra às drogas. A extradição de Duterte ocorreu porque segundo o atual presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos Jr., o país cumpriu com “suas obrigações legais”. Marcos e Duterte são inimigos políticos.

Expostos os limites do TPI, agora é esperar que Lula da Silva não siga os passos de Orbán. Lula já chegou a dizer que o autocrata russo Vladimir Putin, sobre quem pesa uma ordem de prisão emitida pelo TPI, não seria preso caso viesse ao Brasil e igualmente ameaçou retirar o País do tribunal. Lula teve de atenuar sua declaração pouco depois, ante a evidente afronta à Constituição brasileira, mas manteve suas dúvidas sobre o interesse do Brasil em permanecer no TPI.

Sempre é possível discutir a conveniência da permanência do Brasil no TPI, mas, quando se observa que a hostilidade ao tribunal parte majoritariamente de gente com vocação autocrática, como Orbán, Netanyahu, Trump e Putin, parece claro de que lado o País deve estar.

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