Regras para ações policiais em favelas do Rio são razoáveis
O Globo
Decisão do STF equilibra necessidade de
enfrentar criminosos e proteger inocentes dos tiros da polícia
Diante da situação crítica na segurança no
Rio de Janeiro, fez bem o Supremo Tribunal Federal (STF)
em flexibilizar as normas para operações policiais nas favelas, impostas em
2020, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a ADPF das
Favelas. Embora elas não proibissem as incursões, na prática engessavam o
trabalho da polícia. Foram alvo de críticas do governo do estado e da
prefeitura carioca. Em decisão consensual, a Corte retirou a exigência de
excepcionalidade para as ações. Caberá à própria polícia avaliar quando são
necessárias. É mais sensato.
Foi acertada também a decisão de acabar com restrições a helicópteros. Evidentemente, eles devem ser usados com cautela, mas a polícia não pode abrir mão de um recurso essencial no enfrentamento a criminosos cada vez mais bem armados. O poder de fogo dos bandidos ficou claro no mês passado, quando o copiloto de um helicóptero da polícia levou um tiro na cabeça ao sobrevoar uma comunidade.
Outro avanço foi a determinação para que a
Polícia Federal (PF) investigue organizações criminosas com alcance
interestadual e internacional, além de suas conexões com agentes públicos. É
uma medida óbvia, que já deveria ter sido posta em marcha há tempos. O objetivo
é identificar as quadrilhas, seus líderes e modus operandi, em especial
movimentações financeiras. Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(Coaf), Receita Federal e secretaria estadual de Fazenda deverão dar “máxima
prioridade” no atendimento à PF. A Corte ainda cobrou do estado um plano para
reocupar territórios tomados pelo tráfico e pela milícia. Outra medida óbvia,
cuja demora é inexplicável.
A ADPF das Favelas foi impetrada em 2019 pelo
PSB, num momento em que a letalidade policial no Rio explodia. Naquele ano,
1.814 civis morreram no estado, atingidos pela polícia. O número diminuiu nos
últimos anos, em grande parte como resultado das determinações da Corte, em
especial o uso de câmeras corporais nas fardas dos policiais. No ano passado,
chegou a 703.
Seria um erro imaginar que a flexibilização
representa retrocesso. Se, por um lado, o Supremo retirou as amarras que
emperravam o trabalho da polícia, por outro impôs medidas para enquadrar e
monitorar as operações. Uma delas é a obrigatoriedade de autópsia. Além disso,
ordenou melhorias nos dados sobre letalidade e deu 180 dias de prazo para que o
estado comprove a instalação de câmeras nas viaturas (nas fardas, objeto de
determinação anterior, estão em implantação). Câmeras são fundamentais para dar
transparência, mas precisam funcionar para valer, para que não aconteça como em
São Paulo, onde mortes em intervenções policiais voltaram a crescer depois de
relaxamento no uso do equipamento.
A nova decisão do STF traduz um equilíbrio
maior entre o enfrentamento à criminalidade e o combate à letalidade policial.
Não se pode ignorar que comunidades do Rio são dominadas por traficantes e
milicianos que subjugam moradores e levam terror ao estado. Essas quadrilhas
têm de ser reprimidas. Para isso, a polícia precisa ter liberdade para fazer
seu trabalho in loco. Mas isso não significa um salvo-conduto para dar tiros a
esmo, pondo a população em risco. As ações devem ser bem planejadas, respeitar
os cidadãos e proteger a vida de inocentes. Não há por que escolher entre a
redução da letalidade policial e o combate ao crime. Não são objetivos
excludentes.
Dívida de entes federativos continua a pesar
sobre os cofres públicos
O Globo
Em um ano, alta foi de 17% — e novo programa de alívio estimula endividamento ainda maior
A dívida de estados e municípios criada por
renegociações com a União aumentou 17% de 2023 para 2024 — de R$ 619 bilhões
para R$ 727 bilhões, de acordo com o último Balanço Geral da União. Os números
divulgados pelo Tesouro Nacional põem no devido contexto a última rodada de
alívio nessas dívidas, promovida pelo recém-aprovado Programa de Pleno
Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag).
Proibidos desde 1998 de se endividar com
lançamento de títulos, os estados mais uma vez poderão desafogar o caixa,
devido às condições camaradas da nova renegociação. Nas discussões técnicas,
chegou a ser aventado um cenário em que, se amortizassem 20% das dívidas com a
entrega de ativos e reduzissem a zero o pagamento de juros — como preveem as
regras do Propag —, a União lucraria R$ 5,5 bilhões até 2029. Trata-se de um
cenário puramente fantasioso. Por meio da Lei de Acesso à Informação, o jornal
Folha de S.Paulo obteve simulações do Tesouro para o socorro. Na melhor das
hipóteses, a União deixará de arrecadar R$ 797 bilhões até 2048 e, na pior, R$
1,28 trilhão. O Propag não passa, portanto, de transferência de renda da União
aos entes federativos que a ele aderirem.
Não seria um problema se as contrapartidas
exigidas impusessem aos beneficiados o rigor fiscal necessário para pôr suas
contas em ordem. Infelizmente, não é o caso. E não é a primeira vez. As rodadas
de renegociação se sucedem sem que se vislumbre solução para o endividamento de
estados e municípios. Só depois do Plano Real, houve pelo menos dois grandes
acordos, em 1997 e 2016. Os governadores receberam ajuda do governo federal,
sob o compromisso de voltar a pagar as contas em dia. Assim que o cenário apertou,
voltaram a pedir arrego.
Uma cultura política perniciosa induz
governantes a ser menos rígidos nas finanças, por acreditar que em algum
momento a União virá em seu socorro para evitar a paralisia de serviços
básicos. A cada nova rodada de alívio, aumenta o incentivo para que ignorem o
rigor fiscal — aumenta o “risco moral”, no jargão dos economistas. Não é outro
o motivo para, apesar de todos os benefícios concedidos pelo Propag, haver
mobilização entre os estados endividados para derrubar os vetos impostos ao
projeto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Quatro estados — Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás — haviam aderido ao Regime de Recuperação
Fiscal (RRF), instituído em 2017. E apenas cinco respondem por 90% das dívidas:
São Paulo, Rio, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás. Desses, o único sem
problemas fiscais é São Paulo. O Propag, porém, está à disposição de toda a
Federação. Quem se dispuser a atender às contrapartidas camaradas pode
aproveitar para alongar o perfil de sua dívida. O necessário teria sido uma
legislação mais dura com o administrador público que se mostrasse um
inadimplente contumaz. Em vez disso, continuaremos a ver as dívidas crescerem,
e os estados com contas em dia pagarem pela incúria dos fiscalmente
irresponsáveis.
Supremo e Rio amenizam debate sobre operações
policiais
Folha de S. Paulo
STF recua em algumas ações e mantém outras
para conter letalidade; caso expõe necessidade de defesa dos direitos humanos
O Supremo Tribunal Federal concluiu, na
quinta-feira (3), o julgamento da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das
Favelas. Tratava-se de um caso controverso também por levantar a questão dos
limites da atuação da mais alta corte do país.
De fato, em outras decisões recentes, o STF chegou a
invadir a seara do Executivo e do Legislativo. Em relação a essa ação, porém,
notou-se a tentativa de compatibilizar princípios constitucionais com as
necessidades do trabalho das forças de segurança no estado do Rio de
Janeiro.
A ADPF foi movida pelo PSB em 2019, com o
objetivo de disciplinar operações policiais em comunidades do Rio, e seu mérito
começou a ser analisado em novembro de 2024. Em fevereiro, o relator,
ministro Edson Fachin,
anunciou seu voto, no qual indicou medidas para conter abusos.
Antes, durante a pandemia de Covid-19, Fachin
concedera uma liminar que só permitia grandes operações em comunidades "em
hipóteses absolutamente excepcionais" e estabelecia critérios.
Tal providência gerou conflito político. O
governador do estado, Cláudio
Castro (PL),
e o prefeito da capital, Eduardo Paes (PSD), passaram a
acusar o Supremo de inibir
a atuação policial e de fortalecer o crime organizado.
Apesar de o número de operações ter caído
logo após a liminar, ele voltou a subir. De todo modo, as mortes por
intervenção policial despencaram de 1.814 em 2019 para 703 em 2024, segundo
dados do Ministério
da Justiça.
Em
sua decisão definitiva, consensual, o Supremo ampliou o prazo, de 120 para
180 dias, para que o estado comprove a instalação de câmeras em viaturas e
fardas policiais e derrubou determinações de 2020, como restrições para ações
em áreas próximas a escolas e com helicópteros.
Negou, ainda, a exigência de lugar, motivo e
objetivo de diligência para mandado de busca e apreensão domiciliar —tais
ações, no entanto, só podem ocorrer durante o dia. No caso de mortes em
operações, as autópsias devem ser concluídas em até 10 dias, o Ministério
Público precisa ser acionado e um delegado tem de ir ao local, que
deve ser preservado para a perícia.
Medidas de inteligência, fundamentais para
combater facções criminosas, foram determinadas, com atuação da Polícia
Federal articulada com a Receita
Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Mirou-se ainda o fortalecimento do controle
externo da atividade policial. Um colegiado coordenado pelo Conselho Nacional
do Ministério Público, em conjunto com as corregedorias locais, produzirá
relatórios de acompanhamento semestrais.
A decisão foi celebrada pelo outrora crítico
governador do estado, o que eleva as esperanças de que o tema venha a ser
pacificado desta vez. O fundamental é que o urgente combate à criminalidade
respeite princípios básicos de direitos humanos.
Paraguai espionado
Folha de S. Paulo
País vizinho reage à revelação de operação da
Abin sobre Itaipu no governo Bolsonaro; há lacunas na explicação do Brasil
A relação entre Brasil e Paraguai vive
sob estresse desde que o UOL revelou, no último dia 31, uma operação de
espionagem da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sobre as
posições de Assunção em duas negociações em torno da energia gerada pela
binacional Itaipu —ambas, por sinal, de interesse dos consumidores do país.
O governo de Santiago Peña tratou o episódio
como quebra de confiança na relação entre os sócios do Mercosul, além
de violação do direito internacional. O presidente do país vizinho disse
nesta sexta-feira (4) que "velhas feridas" foram abertas.
Seria improvável uma avaliação mais
complacente diante dos fatos trazidos a público e das lacunas ainda visíveis
nas explicações do governo brasileiro.
De pronto, Assunção suspendeu as negociações
da nova versão do chamado Anexo C do Tratado de Itaipu, que definirão as novas
bases financeiras da empresa binacional —a assinatura estava prevista para 30
de maio. Um pré-acordo já alcançado previa a redução de tarifa pela
hidrelétrica a partir de 2026.
Na seara diplomática, o imbróglio escalou com
a convocação a Assunção do embaixador do Paraguai em Brasília, Juan Ángel
Delgadillo, e o
chamado do embaixador brasileiro, José Antônio Marcondes de Carvalho, para
explicar-se à chancelaria paraguaia —duas tradicionais demonstrações de crise
nascente.
Conforme a reportagem do UOL, a Polícia
Federal abriu investigação ao identificar que a Abin autorizara a
invasão de dispositivos informáticos do governo, do Congresso e de autoridades
do Paraguai em junho de 2022, durante a administração de Jair
Bolsonaro (PL).
A finalidade da operação seria extrair
informações sigilosas sobre as posições do país vizinho no Anexo C e também no
acordo de preços da parcela de energia de Itaipu que cabe aos paraguaios e é
vendida ao Brasil.
Por meio de nota, o governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) negou seu
envolvimento na espionagem e informou
tê-la "tornado sem efeito" em março de 2023, ao tomar
conhecimento do caso. Entretanto, deixou sem respostas questões ainda capazes
de afetar a negociação relativa à Itaipu e à própria relação bilateral.
Primeiro, sobre o fato de o atual
diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Corrêa, ter dado aval ao início da
operação, como integrante da diretoria da agência em 2022. Igualmente relevante
—e bem mais difícil— será demonstrar que as informações colhidas não
influenciaram as posições brasileiras nas negociações.
Trump e o ‘Grande Salto para Trás’
O Estado de S. Paulo
Trump deu um golpe mortal na globalização que
os EUA ajudaram a construir. As nações amigas do livre comércio perderam um
grande aliado, mas só estarão desamparadas se não souberem se unir
Numa canetada, o presidente dos EUA, Donald
Trump, decretou o retorno do mundo ao século 19. Se Mao Tsé-tung condenou à
fome quase 45 milhões de chineses com seu Grande Salto para a Frente, o plano
de industrialização forçada que arruinou a China entre 1958 e 1962, Trump deu o
que se pode chamar de “Grande Salto para Trás”, para forçar a
reindustrialização dos EUA à custa da globalização – que durante décadas ajudou
a construir a pujança americana.
O “Dia da Libertação” anunciado por Trump
elevou as barreiras tarifárias de seu país a um nível acima do verificado na
época da Grande Depressão e mesmo no século 19. Segundo Trump, os EUA se
“libertaram” neste momento das nações que têm “saqueado, pilhado, estuprado e
roubado” os americanos. Nada mais falso.
A integração arquitetada pelos líderes do
pós-guerra, com os EUA à frente, foi justamente uma reação à fragmentação da
primeira metade do século 20 que contribuiu para a Depressão e a 2.ª Guerra. Ao
invés de um nacionalismo econômico de soma zero, projetou-se uma cooperação
global de soma positiva, na qual cada país venderia livremente o que produz de
melhor para comprar o que os outros produzem de melhor, participando um do
sucesso do outro, fortalecendo laços de confiança e cimentando a estabilidade geopolítica.
Com a queda do Muro de Berlim, esse movimento, até então circunscrito ao
Ocidente e seus parceiros, assumiu um caráter verdadeiramente global. Nunca na
história humana a pobreza, o analfabetismo e a mortalidade infantil caíram
tanto como nos últimos 35 anos.
A experiência histórica do protecionismo, ao
contrário, é de desaceleração do crescimento e atritos geopolíticos. Barreiras
à importação encarecem bens de consumo e produção, desestimulam a inovação e a
competitividade e convidam outros países a erguer barreiras às exportações.
Como explicar essa espécie de masoquismo econômico nos EUA?
É matematicamente demonstrável que os
benefícios para países ricos ou pobres que se integraram mais à economia global
superaram os custos. No entanto, os benefícios são diluídos entre todos; os
custos frequentemente são concentrados em alguns grupos – como operários
industriais nos países ricos, os “deixados para trás”. Outra razão são as
falhas no sistema. A China, por exemplo, se beneficiou do livre comércio, mas
frequentemente burlando as regras com subsídios e dumpings.
Ainda assim, os benefícios para um país como
os EUA, a economia que mais cresceu no G-7, superaram largamente os custos, e a
racionalidade demandaria reformas no sistema. Se Trump decidiu implodi-lo é por
uma lógica política. Ele crê que, sem regras, o poder econômico e militar dos
EUA lhe garantirá melhores negócios. Nos últimos 20 anos a sensação de
insegurança aumentou após a irrupção da crise financeira, mudanças climáticas,
pandemia e guerras, e os populistas habilidosos sabem excitar os medos ao ponto
da paranoia para concentrar mais poder.
“Muros” e “proteção” estão por toda parte na
agenda trumpista. Não só nas suas políticas comerciais, mas geopolíticas,
imigratórias e culturais, Trump está sempre obstruindo fluxos de ideias,
contatos, alianças. “A essência da agenda de Trump poderia ser: não gostamos
desses malditos estrangeiros”, resumiu o articulista do The New York Times David
Brooks.
Os EUA foram uma nação erguida por
estrangeiros e, como todas as grandes nações da História, fizeram-se grandes
fazendo negócios com outras nações. O isolacionismo não fará o país grande de
novo, ao contrário. Mas, se os EUA renunciam às razões de sua grandeza, o resto
do mundo não precisa seguir esse caminho.
Os EUA, que dão as costas ao livre comércio,
e a China, que o distorce, são grandes. Mas justamente um dos benefícios da
globalização foi que a fatia das duas potências juntas no comércio global
diminuiu nos últimos 20 anos. Se as nações amigas do livre mercado souberem
reverter a fragmentação e cimentar blocos cada vez maiores baseados numa
competição justa e aberta, têm uma chance de trazer os EUA de volta à razão e
disciplinar o capitalismo de Estado chinês, para benefício de todos. Se não,
elas serão, para triunfo de Trump, artífices do fim da globalização.
O Programa Nacional de Imunizações está
doente
O Estado de S. Paulo
O PNI foi responsável por um salto
civilizacional no Brasil. Mas as defasagens do programa cinquentenário estão
pondo vidas em risco e ele precisa urgentemente de cuidados terapêuticos
A luta por uma humanidade sadia sempre foi
majoritariamente uma luta contra micróbios. Por quase toda a história humana,
nós estávamos do lado perdedor. Há 150 anos nem sequer conhecíamos o inimigo.
As doenças infecciosas matavam cerca de metade das crianças. A grande virada
veio com as vacinas. Estima-se que só nos últimos 50 anos elas tenham salvado
100 milhões de crianças. Quando você terminar a leitura deste editorial, as
vacinas terão salvado 30 crianças.
Desde os tempos de Oswaldo Cruz, no início do
século 20, o Brasil esteve na vanguarda da contraofensiva contra os germes. Em
1973, foi criado o Programa Nacional de Imunizações (PNI) para coordenar ações
de imunização até então intermitentes e episódicas. Antecipando princípios do
Sistema Único de Saúde (SUS) – como a assistência universal, integral e
gratuita prestada por uma rede federativa hierarquizada e integrada –, o PNI
foi responsável pela erradicação de rubéola, tétano, sarampo e pólio, e se tornou
uma referência global.
Desde 2016, no entanto, a cobertura vacinal
vem caindo. Em 2023, a cobertura de todas as cinco vacinas prioritárias para
crianças de até um ano estava em média mais de 10 pontos porcentuais abaixo da
meta de 95% e bem abaixo dos índices de 2015 (98%).
A hesitação vacinal – motivada tanto pela
passividade difusa de uma geração já imunizada e esquecida da importância das
vacinas quanto pela atividade virulenta de militantes antivacina – é um
fenômeno mundial que foi acentuado pela politização da pandemia. Mas a
complacência e o negacionismo são só uma parte do problema, e no Brasil
provavelmente não são a principal. Ainda que fragilizada, a cultura de
vacinação dos brasileiros é robusta e os índices de adesão e confiança nas
vacinas são maiores do que nos EUA ou na Europa.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a
imunização contra a covid-19 – com a criação, produção e distribuição das
vacinas em tempo recorde – foi um triunfo para a ciência imunológica, ela
também provocou rupturas nas cadeias de vacinação. A queda na cobertura vacinal
foi drástica. Ainda assim, o declínio começou antes da pandemia e, como
averiguou uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), tem razões
crônicas. A gestão do PNI está avariada, em nível macro ou micro, em todos os
elos da cadeia e nas três esferas da Federação, mas particularmente na espinha
dorsal do sistema, o Ministério da Saúde.
O tribunal constatou deficiências na
infraestrutura e manutenção dos equipamentos, a Rede Frio. É expressivo o uso
de geladeiras domésticas, em vez de câmaras frias. Mais de 70% das centrais de
vacinação não têm contratos de manutenção preventiva. Os sistemas de informação
estão desagregados e são mal alimentados, o que prejudica a gestão dos estoques
e o controle das perdas, comprometendo a rastreabilidade das vacinas, a
eficácia da distribuição e a alocação racional de recursos. Em 2023, mais de 30
milhões de doses das vacinas infantis foram perdidas por vencimento de prazo de
validade, gerando um prejuízo de mais de R$ 400 milhões, 14% do orçamento para
compra de vacinas. A ausência de uma logística racional e baseada em dados
fragiliza toda a cadeia de imunização, do abastecimento à aplicação.
O TCU aponta ainda inoperância nas
estratégias de recuperação de coberturas vacinais e busca ativa, e também acusa
defasagens na coordenação do financiamento à pesquisa, desenvolvimento e
inovação em imunizantes.
Como concluiu o relator da auditoria,
ministro Bruno Dantas, “a queda sustentada das coberturas vacinais, as perdas
elevadas por vencimentos de vacinas, os episódios de desabastecimento, a baixa
adesão aos sistemas de informação e as deficiências da Rede Frio evidenciam a
necessidade de uma resposta urgente, coordenada e estruturante por parte do
Ministério da Saúde e dos demais entes federativos”.
Por milênios a humanidade esteve
completamente indefesa contra inimigos invisíveis. Hoje o Brasil tem a
expertise e o arsenal necessários para vencer a guerra contra os micróbios
homicidas. Cada criança perdida por negligência é um pecado que clama aos céus.
O repto ao Tribunal Penal Internacional
O Estado de S. Paulo
Decisão da Hungria de se retirar do TPI é
apenas o abalo mais recente no organismo
A Hungria informou que iniciará procedimento
de retirada do país do Tribunal Penal Internacional (TPI), único fórum global
permanente para o julgamento de crimes de guerra e genocídio.
Anunciada em meio à presença do premiê de
Israel, Benjamin Netanyahu, em Budapeste, para encontro com o primeiro-ministro
húngaro, Viktor Orbán, a decisão é só mais um passo no processo de
desvalorização do TPI.
Por ser membro do tribunal, a Hungria teria
de cumprir o mandado de prisão que o TPI expediu contra Netanyahu e entregá-lo
para um centro de detenção em Haia, sede do tribunal. O TPI entende que o
israelense cometeu crimes de guerra em Gaza, em razão da brutal resposta ao
ataque terrorista do Hamas que matou mais de 1.200 israelenses, a maioria
civis, em 7 de outubro de 2023. O tribunal também emitiu pedido de prisão
contra Mohammed Deif (posteriormente falecido), um dos principais líderes do
Hamas.
Mas bastou a emissão do mandado do TPI contra
Netanyahu, em novembro de 2024, para que Orbán deixasse claro sua intenção de
descumpri-la. Logo no dia seguinte, ele convidou o israelense a visitá-lo, em
evidente provocação ao órgão internacional.
Inspirado em Donald Trump, que em fevereiro
deste ano impôs sanções contra integrantes do TPI, Orbán dobrou a aposta e
aproveitou a presença do aliado israelense em Budapeste para divulgar a saída
do tribunal, descrito pelo húngaro como uma corte “política”. Os EUA, que não
são membros do TPI, sancionaram o órgão em retaliação ao mandado de prisão
contra Netanyahu.
Embora haja toda uma discussão jurídica sobre
se a Hungria pode ou não descumprir a decisão porque oficialmente continua no
TPI – e o processo de efetivação da saída levaria cerca de um ano –, a
realidade é que a ordem não foi acatada.
Como o TPI não tem sua própria polícia,
depende da aderência dos países signatários para a prisão de líderes procurados
por crimes contra a humanidade. A ação de Orbán demonstra que tal aderência não
é garantida – depende de circunstâncias políticas.
Recentemente, o ex-presidente das Filipinas
Rodrigo Duterte foi preso em Manila e extraditado para Haia; lá será julgado
pelo TPI por sua truculenta política de guerra às drogas. A extradição de
Duterte ocorreu porque segundo o atual presidente das Filipinas, Ferdinand
Marcos Jr., o país cumpriu com “suas obrigações legais”. Marcos e Duterte são
inimigos políticos.
Expostos os limites do TPI, agora é esperar
que Lula da Silva não siga os passos de Orbán. Lula já chegou a dizer que o
autocrata russo Vladimir Putin, sobre quem pesa uma ordem de prisão emitida
pelo TPI, não seria preso caso viesse ao Brasil e igualmente ameaçou retirar o
País do tribunal. Lula teve de atenuar sua declaração pouco depois, ante a
evidente afronta à Constituição brasileira, mas manteve suas dúvidas sobre o
interesse do Brasil em permanecer no TPI.
Sempre é possível discutir a conveniência da permanência do Brasil no TPI, mas, quando se observa que a hostilidade ao tribunal parte majoritariamente de gente com vocação autocrática, como Orbán, Netanyahu, Trump e Putin, parece claro de que lado o País deve estar.
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