O Estado de S. Paulo
O exame dos fatos deve ser a fonte indicativa
da tipificação precisa, a produzir, então, reprimenda justa e proporcional
Hoje, conhecida a trama que redundou na
tentativa de golpe, percebe-se que atos desatinados de Bolsonaro, desde abril
de 2020, constituíam plano bem urdido visando a anular eleição eventualmente
perdida.
Para a denúncia, “especificamente em relação
ao sistema eletrônico de votação e aos ministros do Supremo Tribunal
Federal/Tribunal Superior Eleitoral, as ações da célula de contrainteligência
intensificaram-se a partir da radicalização dos discursos públicos de Jair
Bolsonaro, em meados de 2021, caracterizando o início coordenado da execução do
plano maior de ruptura com a ordem democrática”. Destaque-se que Bolsonaro
chegou a impor às Forças Armadas para não concluírem pela regularidade das
urnas eletrônicas.
O plano previa intervir no Tribunal Superior Eleitoral, anular o resultado das eleições e convocar novas, sendo Bolsonaro consagrado em farsa eleitoral “auditável”.
O presidente requereu, em palácio, dos três
chefes das Armas adesão ao golpe. A higidez do Estado de Direito já era, então,
colocada em perigo com o fato de o presidente da República apresentar aos
chefes militares plano de intervenção ilegal.
Impedida a consumação do golpe, com a
discordância dos chefes do Exército e da Aeronáutica, deu-se continuidade à
ação por outras formas. Adeptos de Bolsonaro foram incitados a acampar à frente
de quartéis, sendo alimentados stricto sensu e por mensagens de esperança do
próprio Bolsonaro, (pelo perfil @bolsonaro.tv, com emoji “sino cortado”,
significando não se desmobilizarem, como mostrou reportagem do Estadão ( Como
Bolsonaro se comunica com os manifestantes nas portas dos quartéis? Entenda,
30/11/2022). O ministro da Justiça Anderson Torres passou a ser secretário da
Segurança do Distrito Federal, garantindo a omissão da Polícia Militar a
propiciar o avanço da infantaria dividida organizadamente em três grupos, cada
qual para uma sede de Poder.
O roteiro deste outro momento do golpe brota
do depoimento dos invasores. Por exemplo: na Ação Penal 1.067, explicaram serem
contra o aborto e a legalização das drogas, mas dotados de especial intenção:
derrubar o governo empossado. É suficiente lembrar as palavras da ré Cibele, a
professora aposentada: “O objetivo era ocupar os prédios, sentar e esperar até
vir uma intervenção militar para não deixar o Lula governar”.
Estes depoimentos mostram ser a invasão uma
continuidade, com a “mão do gato”, do plano de barrar o governo Lula. Quais
crimes foram praticados?
O Código Penal, no artigo 359-L, prevê que o
crime de abolição do Estado Democrático consiste em “tentar, com emprego de
violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou
restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. E, no artigo 359-M,
estatui ser crime de golpe de Estado “tentar depor, por meio de violência ou
grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
Os fatos indicam, portanto, que o impedimento
do exercício dos Poderes constituía um meio para alcançar o desiderato final de
depor o governo legítimo, pondo fim ao mandato de Lula.
Sendo assim, aplica-se o princípio da
consunção, segundo o qual o crime mais grave absorve o menos grave, bem como o
crime por via do qual se vem a realizar outro, o crime-meio, é absorvido pelo
crime-fim.
Assinala-se, em julgado da Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça, STJ (HC n.º 97.872/SP, ministro relator Arnaldo
Esteves Lima), que, de acordo com o princípio da consunção, haverá a relação de
absorção quando uma das condutas típicas for meio necessário ou fase normal de
preparação ou execução do delito de alcance mais amplo.
Por este princípio da consunção, busca-se
solução de conflito aparente de normas quando duas normas incidem sobre o mesmo
fato. Dessa maneira, os delitos que servem de fase preparatória ou de execução,
anteriores de outro delito mais amplo, consuntivo, ficam por este absorvido
(STJ – Agravo Regimental no Recurso Especial n.º 1344850/PR, relatoria ministra
Maria Thereza Assis Moura).
O crime-meio, efetuado como passagem
necessária à prática do crime-fim, é implicitamente subsidiário deste
crime-fim, sendo por este absorvido. Por essa razão, Mariângela de Magalhães
Gomes ( Direito Penal - Jurisprudência em Debate, páginas 631 e 638) explana
que, se determinado crime (norma consumida) é fase da realização de outro
(norma consuntiva) ou é uma forma regular de transição para o último, o
conteúdo do tipo penal mais amplo absorve o menos amplo, por constituir etapa
daquele.
Como se percebe, os relatos dos membros da
infantaria mostram, de um lado, a responsabilidade dos homens por detrás, os
mandantes que, como organização criminosa, recorreram à invasão pela infantaria
reunida na frente dos quartéis como meio para provocar a intervenção: “sentar e
esperar até vir uma intervenção militar para não deixar o Lula governar”.
Esses relatos, de outra parte, permitem fazer
a exata qualificação típica das ações de todos, os da frente e os de trás, pois
o certo é o crime de golpe de Estado absorver o crime de abolição de Poder
constituído, na linha do voto do ministro Luís Roberto Barroso.
O exame dos fatos deve ser a fonte indicativa
da tipificação precisa, a produzir, então, reprimenda justa e proporcional.
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