Folha de S. Paulo
É bem capaz que o presidente americano pague
um preço amargo pela barafunda saudosista em que está se metendo
Donald Trump chocou
o mundo com o surpreendente pacote
protecionista anunciado no dia 2 de abril, data por ele batizada de
"Dia da Libertação". Segundo
a revista britânica The Economist, a tarifa média dos EUA deve se elevar
dos atuais 2% para nada menos do que 24%, patamar inconcebível há décadas. O
presidente apresenta seu violento tarifaço como um retorno ao passado.
Reiteradamente Trump afirma que altas tarifas servirão
para reindustrializar seu país, fazendo a América "great again".
Há um fundo de verdade no saudosismo protecionista de Trump. No entanto, como é de praxe com idealizações da história que tentam trazer o passado para o presente, também há muito de engodo e cilada nesta tentativa de guinada autárquica.
A história da política comercial
estadunidense é marcada pelo protecionismo. O governo de Washington permaneceu
à margem do liberalismo do século 19, quando o Reino Unido liderou um inédito
processo europeu de abertura comercial. Na contramão do que se passava no outro
lado do Atlântico, os EUA elevaram suas tarifas para quase 50% após a Guerra
Civil, nos anos 1860. Política comercial foi, junto com escravidão, um dos
temas contenciosos do conflito.
Enquanto o Sul defendia a redução de
barreiras às importações, o Norte, em pleno processo de industrialização,
almejava reservar o mercado interno para os bens produzidos em suas fábricas. A
União nortista ganhou e levou: a escravidão acabou e o protecionismo se
recrudesceu.
Segundo o historiador econômico Robert Allen,
em seu artigo "Excepcionalismo americano como um problema na história
global" ("American exceptionalism as a problem in Global
History"), as altas tarifas ajudaram os EUA a se industrializarem. Com
vastos recursos naturais, aquela economia tinha vantagens comparativas em
commodities, assim como o resto do continente americano. Para Allen, foi graças
ao protecionismo que as fábricas estadunidenses resistiram à competição
britânica, condição necessária para que, no século 20, assumissem
a liderança industrial do mundo.
Uma segunda rodada protecionista ocorreu em
1930, no
início da Grande Depressão, quando o presidente Hoover sancionou uma
lei que elevava tarifas no intuito desesperado de conter a crise econômica. O
resultado foi uma onda de retaliações ao redor do mundo. Estudos históricos
recentes mostram que a medida influiu na abrupta queda do comércio global,
embora não tenha sido a causa da depressão. De todo modo, o aumento das tarifas
foi uma iniciativa errada em uma conjuntura difícil, tornando-a ainda pior.
Os EUA finalmente reduziram suas tarifas no
pós-guerra ao comandarem o Acordo Geral de Tarifas e Comércio. A liberalização
comercial contribuiu para o crescimento mundial verificado no período, durante
o qual economias da Ásia, Europa e América
Latina cresceram mais do que a estadunidense. A pujança global era
vista com bons olhos em Washington: entendia-se que o sucesso do comércio
mundial ajudaria a conter o comunismo. A Guerra Fria não
era o único motivo da liberalização do pós-guerra, mas certamente foi um de
seus condicionantes mais importantes.
Em retrospecto, até que demorou para que o
liberalismo do pós-guerra ruísse, haja vista que o Muro de Berlim caiu há mais
de três décadas. Desde então, a China se tornou o motor da indústria mundial e
o Ocidente —inclusive os EUA— se desindustrializou.
O protecionismo trumpista tem, portanto,
algum cabimento histórico. Mas o retorno ao passado é impossível. Os
estadunidenses simplesmente não estão aptos a trabalharem como os chineses
—o documentário
"American Factory" é uma divertida ilustração deste fato. O
tarifaço de Trump penalizará
tanto os consumidores quanto o que sobrou da indústria. Após décadas
se beneficiando de importados baratos, os EUA não estão preparados para a escassez
de bens que virá a reboque, com quebras de cadeias produtivas e alta da
inflação.
É de se esperar uma
forte reação política interna. No final, é bem capaz que o próprio Trump
pague um preço amargo pela barafunda saudosista em que está se metendo –e
levando consigo seus compatriotas e o resto do mundo.
*Doutor em história econômica pela London School of Economics, professor da FGV/EESP e autor de "Democracia negociada: política partidária no Brasil da Nova República"
Nenhum comentário:
Postar um comentário