terça-feira, 13 de maio de 2025

"Fumacinha...", me lembra o "charutão" da Universidade - Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*

Essa história de "fumacinha”, nas gírias da língua portuguesa, é intrigante mesmo. Lembra-me um "fumacê”.  Nunca fumei ou consumi algo tóxico. Para dizer a verdade, nem cigarro. Mas não deixo de ser cúmplice indireto na fabricação e consumo amplo de um “charutão” que apareceu  na Universidade Católica de Brasília, durante um  encontro nacional de comunicação,  nas  férias de julho,  produzido clandestinamente pelos estudantes  para aquecerem-se e se divertirem naquela  noite gelada de inverno no campus .   

Como sói acontecer em eventos estudantis, eles sempre deixam para escolher a universidade anfitriã já próximo do da data do evento. Reitores, diretores, assessores das escolas superiores do Distrito Federal, consultados de última hora recusaram-se dar guarita à reunião. Mas a minha universidade, a dos padres, topou. Foi uma confusão, porque eram estudantes de quase 200 cursos de jornalismo, publicidade, relações públicas, marketing e, como não podia deixar de ser, também de sociologia.  Aproximadamente mil estudantes de comunicação.

As salas de aula foram rapidamente transformadas em dormitórios. Cada estudante deveria trazer seu colchonete. Mas não foi bem assim. Alguns mal trouxeram a roupa do corpo, imaginando uma temperatura amena em Brasília. Para compensar improvisaram à noite, pelo campus, várias pequenas fogueiras.  

 

Para apoiar logisticamente a organização do evento, representando a nossa   progressista reitoria, foram convidados vários professores. Todos declinaram, com desculpas. Sobrou para mim, com uma folha corrida pretérita no movimento estudantil na UnB, e mais uma professora, com quem não tinha muita relação. De tal forma que não conseguíamos formular uma ação em conjunto. Cada um desempenhava no encontro um papel distinto e isolado. O campus da Católica é grande, com muitos prédios, muitos pátios e estacionamentos, tudo com intensas e contínuas atividades multidisciplinares. 

 

Logo no segundo dia do início do encontro, um jornal local amanheceu com uma chamada de primeira página: “Estudantes fumam  "charutão" de maconha no campus".  Entre foguetes e as pequenas fogueiras havia aparecido um grande charuto recheado com cannabis, cujas tragadas eram disputadas, em festa, a noite inteira, pelos estudantes.  Eu e a professora não tínhamos conhecimento daquilo. No final da noite, com tudo mais calmo, havíamos nos retirado para   casa.

 

O pânico foi geral. Mantenedores, reitoria, dirigentes administrativos, professores e estudantes mesmo, todos sendo convocados, ainda naquela manhã, para prestar depoimentos na delegacia de polícia. Ninguém foi preso, mas o evento foi suspenso e aberto um primeiro inquérito policial contra a Universidade, deixando os religiosos em alvoroço. 

 

Coincidência ou não,  antes do evento da Católica - e teria sido por isso que fora lembrado -  já havia presenciado, como estudante,  de um encontro similar   na UnB, quando o delegado de uma Divisão de Combate aos Tóxicos e Entorpecentes da Polícia Federal desembarcara no campus para  fazer uma palestra no auditório Dois Candangos -  por onde transitavam reitores, autoridades de governo, visitantes ilustres e realizavam-se assembleias estudantis.  O delegado desenvolvia uma campanha nacional antitóxica, e tentava fazer ali o seu lançamento, com uma demonstração pedagógica dos efeitos da maconha. Eu estava lá...

 

A minha experiência com drogas era, entretanto, nula. Na UnB, via, pelo campus, debaixo   das árvores, um ou outro   estudante puxando um fuminho sem consequências. Nada extraordinário. Meus diretores na Católica - não sei como - tinham conhecimento disso e acreditando, talvez, na minha expertise no trato com estudantes, escolheram-me para apoiar o encontro de Comunicação.

 

Assistira, apenas   curioso, a palestra do delegado destinada a esclarecer a comunidade da UnB como reconhecer o uso de drogas num espaço coletivo. Durante sua fala, numa atitude pretensiosamente pedagógica, ele queimou uma porção da erva num prato para que todos conseguissem identificar aquele odor num ambiente coletivo.  Em um segundo   prato, ele colocou outra porção para que os ouvintes pudessem tocar e sentir a textura da erva.  Mandou repassar ao auditório. Em poucos minutos, o prato voltou sem nada. Os que estavam nas fileiras atrás reclamaram: "Tá vazio!". Ele se surpreendeu, mas mandou colocar no prato mais uma porção, que retornou novamente limpo. Ele já não gostou, mas mandou fazer um terceiro suprimento.   No outro dia, os jornais abriram chamadas agressivas nas primeiras páginas: "Delegado distribui maconha para estudantes da UnB".  "Delegado queima maconha em auditório na UnB!".

 

Então, essa história de "fumacinha", "fumacê", "charuto", "charutão”, não é uma linguagem com a qual tenha grande  intimidade. Trauma, também não. Mas, sem dúvida, fiquei assustado. Em depoimento na delegacia de polícia, tive uma extensa lição sobre o assunto. Tomei conhecimento de que os usuário fumam maconha, enrolando porções da erva em uma pequena folha de papel, que chamam de baseado, spliff, bone, nail ou, quando fumado até a ponta, roach. Outros usam um cachimbo de vidro ou de água chamado bong.  Surpreendi-me com a existência de mais de mil nomes e gírias usados para o reconhecimento usual da cannabis sativa. É um universo paralelo. A polícia tinha e tem tudo catalogado: a de boa qualidade, de baixa qualidade, quantidades, pacotes, consumo, efeitos, consumidores, locais de acesso, variedades, preços e até portais, tudo estigmatizado semanticamente.

 

O "fumacinha", usado pelo Vaticano para registrar a eleição do papa não tem qualquer relação direta com o uso da cannabis. ´Trata-se de uma resina aromática queimada à busca da presença de Deus. O “fumacê” é uma prática comum do vulgo consumidor. Mas ambos fazem parte desse glossário que vai dos registros policiais, aos shows artísticos, rituais e até cerimônias religiosas. Vi "fumacinhas” subirem em eventos públicos e privados, aos quais comparecia por obrigação ou a convite.

 

A maioria dos nomes e gírias que carimbam a maconha, o haxixe e outras drogas datam da era do jazz, quando eram conhecidos como gauge, jive, reefer, weed. Novos nomes de gírias, como trees, entraram em uso no início do século XXI. Pot, foi um dos apelidos mais genéricos para a cannabis. Mereceu buliçosas manifestações pelas grandes cidades dos Estados Unidos.

 

Depois da rebelião estudantil de 1968, do Festival de Woodstock, em Nova York, e outros promovidos pela juventude da Califórnia, Londres, Paris e Amsterdam, nos quais minha geração se apoiava, aprendeu-se que "É proibido proibir". O tema ganhou as ruas com grandes manifestações, faixas e cartazes: "Legalize pot now!" Só eu e a professora não tínhamos a dimensão do universo em que o “charutão" se inseria. Passamos perto de sermos demitidos.  A nossa ingenuidade nos salvou.


*Jornalista, professor

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