sexta-feira, 23 de maio de 2025

Urgência absoluta – Flávia Oliveira

O Globo  

Em 2024, a Secretaria municipal de Saúde atendeu 20.618 pacientes machucados em acidentes com motocicleta, salto de 66% sobre o ano anterior

Uma semana atrás, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anunciou um plano para conter a escalada de acidentes com motocicletas e assinou decreto instituindo um choque de ordem nas praias cariocas. A proibição de música, garrafas de vidro, faixas e bandeiras de identificação de barracas na areia causou mais burburinho que as medidas para, ao menos, mitigar as estatísticas dramáticas de infrações, mortos e feridos no trânsito. Zero espanto para uma cidade que, em 86 quilômetros de orla, soma 98 praias — e mantém com elas relação intensa de trabalho e lazer. Autor na Câmara Municipal do Estatuto da Orla, o vereador Flávio Valle (PSD) informou em audiência pública sobre o Projeto de Lei — e o Decreto — que as praias movimentam por

O secretário municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, acenou com alívio no decreto linha-dura de Paes e abriu caminho à negociação. Hoje, tem reunião com barraqueiros; segunda, com donos de quiosques. É possível imaginar um ambiente praieiro em que ambulantes e instrutores tenham mecanismos digitais e simplificados para cadastrar ocupações; barracas tenham nome e bandeira para seguirem como pontos de encontro; quiosques abriguem atrações musicais com limites de decibéis e horário; comerciantes se responsabilizem pelos vasilhames de vidro servidos à clientela; vegetação não seja vitrine de produtos; moradores consigam ter paz em casa; e banhistas possam conversar na areia.

Entre tapas e beijos, o Rio até que consegue manter as praias como ambiente de convívio democrático, que combina beleza, diversão, saúde, moda, relacionamentos. A intransigência será bem-vinda no enfrentamento à barbárie no trânsito. Não há como dormir tranquilo sabendo que, apenas na capital fluminense no ano passado, 12.900 pessoas ficaram feridas e 723 morreram em acidentes nas vias públicas. Foram duas mortes por dia, maior número em 16 anos, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ).

Em 2024, a Secretaria municipal de Saúde atendeu 20.618 pacientes machucados em acidentes com motocicleta, salto de 66% sobre o ano anterior. Nos quatro primeiros meses deste ano, foram 10.094 atendimentos. Nos hospitais municipais, sete em cada dez assistências por ocorrência em via pública envolveram motos. Dos mortos no trânsito carioca no ano passado, 76% eram do sexo masculino e 42% tinham entre 20 e 39 anos. São jovens adultos os que morrem, certamente ativos no mercado de trabalho; provavelmente, chefes de família.

O Rio tentará conter a espiral limitando a 60km/h a velocidade máxima para motos. Nas pistas centrais das avenidas Presidente Vargas (Centro), Brasil (Região Portuária à Zona Oeste) e Américas (Barra), o tráfego será proibido. Há promessa de implementar, até 2028, 200 quilômetros de corredores exclusivos para motocicletas. Até dezembro deste ano, 50km de ciclofaixas estarão disponíveis. Um acordo com iFood e 99, aplicativos de entrega e transporte, viabilizará intercâmbio de informações com a prefeitura para punir infratores e educar condutores, passageiros, clientes. É experiência que, se funcionar, poderá ser útil noutras cidades brasileiras, igualmente assoladas pela multiplicação de ocorrências.

Na edição 2025 do Atlas da Violência, Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) incluíram pela primeira vez um capítulo sobre violência no trânsito. A taxa de mortalidade, alertam os pesquisadores, se aproxima do número de homicídios. Em 2023, ano de referência da publicação, houve 45.747 assassinatos no país; acidentes terrestres mataram 34.881 pessoas. “Um dos principais fatores relacionados com esse aumento na mortalidade de trânsito é que as mortes de usuários de motocicletas no Brasil cresceram mais de dez vezes nos últimos 30 anos. Esse fato é consequência direta do grande aumento da frota e uso desses veículos no Brasil”, diz o Atlas. Só em decorrência de tragédias com motos, morreram 13.477 pessoas.

As motocicletas multiplicaram-se como meio de transporte particular e público em todo o país, consequência de sistemas coletivos (trens, metrô e ônibus) colapsados em metrópoles, inexistentes no interior. Em duas décadas, o total de motos em circulação no Brasil saiu de 6,8 milhões para quase 35 milhões. Durante a pandemia, serviços de entrega explodiram para nunca mais recuar. Tudo movido a intermediação por plataformas digitais tornadas alternativas de trabalho e renda, sobretudo para jovens, num mercado precarizado e mal remunerado. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU preveem a redução à metade das mortes e lesões graves no trânsito. Se não tratar do assunto com a urgência necessária, o Rio de Janeiro e o Brasil estarão condenados a naufragar.

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