O Globo
Em 2024, a Secretaria municipal de Saúde
atendeu 20.618 pacientes machucados em acidentes com motocicleta, salto de 66%
sobre o ano anterior
Uma semana atrás, o prefeito do Rio de
Janeiro, Eduardo Paes,
anunciou um plano para conter a escalada de acidentes com motocicletas e
assinou decreto instituindo um choque de ordem nas praias cariocas. A proibição
de música, garrafas de vidro, faixas e bandeiras de identificação de barracas
na areia causou mais burburinho que as medidas para, ao menos, mitigar as
estatísticas dramáticas de infrações, mortos e feridos no trânsito. Zero
espanto para uma cidade que, em 86 quilômetros de orla, soma 98 praias — e
mantém com elas relação intensa de trabalho e lazer. Autor na Câmara Municipal
do Estatuto da Orla, o vereador Flávio Valle (PSD) informou em audiência
pública sobre o Projeto de Lei — e o Decreto — que as praias movimentam por
O secretário municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, acenou com alívio no decreto linha-dura de Paes e abriu caminho à negociação. Hoje, tem reunião com barraqueiros; segunda, com donos de quiosques. É possível imaginar um ambiente praieiro em que ambulantes e instrutores tenham mecanismos digitais e simplificados para cadastrar ocupações; barracas tenham nome e bandeira para seguirem como pontos de encontro; quiosques abriguem atrações musicais com limites de decibéis e horário; comerciantes se responsabilizem pelos vasilhames de vidro servidos à clientela; vegetação não seja vitrine de produtos; moradores consigam ter paz em casa; e banhistas possam conversar na areia.
Entre tapas e beijos, o Rio até que consegue
manter as praias como ambiente de convívio democrático, que combina beleza,
diversão, saúde, moda, relacionamentos. A intransigência será bem-vinda no
enfrentamento à barbárie no trânsito. Não há como dormir tranquilo sabendo que,
apenas na capital fluminense no ano passado, 12.900 pessoas ficaram feridas e
723 morreram em acidentes nas vias públicas. Foram duas mortes por dia, maior
número em 16 anos, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ).
Em 2024, a Secretaria municipal de Saúde
atendeu 20.618 pacientes machucados em acidentes com motocicleta, salto de 66%
sobre o ano anterior. Nos quatro primeiros meses deste ano, foram 10.094
atendimentos. Nos hospitais municipais, sete em cada dez assistências por
ocorrência em via pública envolveram motos. Dos mortos no trânsito carioca no
ano passado, 76% eram do sexo masculino e 42% tinham entre 20 e 39 anos. São
jovens adultos os que morrem, certamente ativos no mercado de trabalho;
provavelmente, chefes de família.
O Rio tentará conter a espiral limitando a
60km/h a velocidade máxima para motos. Nas pistas centrais das avenidas
Presidente Vargas (Centro), Brasil (Região Portuária à Zona Oeste) e Américas
(Barra), o tráfego será proibido. Há promessa de implementar, até 2028, 200
quilômetros de corredores exclusivos para motocicletas. Até dezembro deste ano,
50km de ciclofaixas estarão disponíveis. Um acordo com iFood e 99, aplicativos
de entrega e transporte, viabilizará intercâmbio de informações com a
prefeitura para punir infratores e educar condutores, passageiros, clientes. É
experiência que, se funcionar, poderá ser útil noutras cidades brasileiras,
igualmente assoladas pela multiplicação de ocorrências.
Na edição 2025 do Atlas da Violência, Ipea e
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) incluíram pela primeira vez um
capítulo sobre violência no trânsito. A taxa de mortalidade, alertam os
pesquisadores, se aproxima do número de homicídios. Em 2023, ano de referência
da publicação, houve 45.747 assassinatos no país; acidentes terrestres mataram
34.881 pessoas. “Um dos principais fatores relacionados com esse aumento na
mortalidade de trânsito é que as mortes de usuários de motocicletas no Brasil
cresceram mais de dez vezes nos últimos 30 anos. Esse fato é consequência
direta do grande aumento da frota e uso desses veículos no Brasil”, diz o
Atlas. Só em decorrência de tragédias com motos, morreram 13.477 pessoas.
As motocicletas multiplicaram-se como meio de
transporte particular e público em todo o país, consequência de sistemas
coletivos (trens, metrô e ônibus) colapsados em metrópoles, inexistentes no
interior. Em duas décadas, o total de motos em circulação no Brasil saiu de 6,8
milhões para quase 35 milhões. Durante a pandemia, serviços de entrega
explodiram para nunca mais recuar. Tudo movido a intermediação por plataformas
digitais tornadas alternativas de trabalho e renda, sobretudo para jovens, num
mercado precarizado e mal remunerado. Os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU preveem a redução à metade das mortes e lesões graves no
trânsito. Se não tratar do assunto com a urgência necessária, o Rio de Janeiro
e o Brasil estarão condenados a naufragar.
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