O Globo
Há alguns anos, o Supremo, diante do
descaminho autoritário do bolsonarismo, adotou a teoria da democracia
militante. A teoria foi elaborada nos anos 1930 pelo jurista alemão Karl
Loewenstein para proteger a democracia liberal das ameaças de grupos fascistas.
Segundo Loewenstein, os fascistas se valiam das liberdades asseguradas pela Constituição para se organizar com o objetivo de derrubar o próprio regime democrático. Por isso, a democracia deveria desenvolver mecanismos de autodefesa, como a proibição de que grupos políticos usem uniformes ou portem armas, a imposição de punições severas para atos de subversão da ordem democrática e, em última instância, o banimento de organizações cuja ideologia e visão de mundo sejam incompatíveis com os princípios democráticos.
Mas aplicar as ideias da democracia militante
traz desafios. Se a democracia está internamente ameaçada, é porque está em
crise, deixou de ter legitimidade para setores importantes da sociedade. O
populismo bolsonarista é justamente uma resposta a essa crise. A queixa dos
bolsonaristas é, que na democracia liberal vigente, o Estado foi capturado por
elites, progressistas e corruptas, que não deixam espaço para atores políticos
conservadores. Esse diagnóstico é responsável pela radicalidade da resposta bolsonarista,
um movimento que desde o princípio tensiona os marcos liberais da Constituição.
Ao adotar uma resposta “militante” contra o
bolsonarismo, para tentar defender a democracia, a Justiça contém certos
arroubos, mas também amplia a crise, fazendo os bolsonaristas — que já não
confiavam na democracia atual — sentirem que são ainda mais perseguidos e que
definitivamente não há lugar para eles no “sistema”. A contraofensiva populista
então se intensifica, alimentando uma espiral de radicalização. É a “armadilha
populista” — conceito que, de um jeito um pouco diferente, foi formulado pelo cientista
político Cláudio Couto, da FGV-SP.
A crise atual é vista, pelos bolsonaristas,
da seguinte maneira. Quando assumiu a Presidência, em 2019, Bolsonaro foi
tolhido pelo STF, que anulou inúmeras medidas do Executivo, principalmente no
período da pandemia. Ao agir assim, o STF sequestrou a soberania popular
expressa no voto a Bolsonaro. Depois, nas eleições de 2022, Bolsonaro foi
atrapalhado de todas as maneiras por um TSE enviesado. Mesmo depois de perder a
Presidência, ele foi prejudicado pela Justiça com uma acusação fantasiosa de
golpe de Estado, que serviu apenas para cassar seus direitos políticos. Quando
os bolsonaristas apelaram então para os Estados Unidos, em busca de socorro, o
STF respondeu colocando uma tornozeleira no ex-presidente. Agora, a prisão de
Bolsonaro é iminente. Não há mais saída para os conservadores no regime atual —
eles estão condenados a tentar destruí-lo.
Esse entendimento, que se consolida numa
parcela ampla da população, precisa ser revertido — enquanto ainda há tempo. Se
o STF entendeu que precisa adotar a tese da democracia militante, ele precisa
se tornar político por inteiro e não apenas pela metade. Hoje, ele é político
ao agir duramente na proteção das instituições democráticas, mas não é político
ao não se preocupar com como suas ações podem ampliar a crise da democracia.
A missão de uma Justiça que queira proteger a
democracia liberal é dupla: por um lado, ela precisa conter excessos
antidemocráticos com firmeza; por outro, não pode fazer isso de maneira que
seja percebida como parcial, impedindo a expressão política dos conservadores.
A Justiça tem de ser firme na proteção das instituições, mas de maneira
técnica, serena e proporcional, para que os conservadores que votam em
Bolsonaro sintam que podem contar com ela, desde que não ajam contra a
democracia. A Justiça tem falhado na segunda missão.
Se quiser evitar que a crise da democracia se
agrave, o STF precisa de sensibilidade estratégica e visão de longo prazo. Não
basta conter o populismo, é preciso também desarmá-lo. Não adianta vencer as
primeiras batalhas se essas vitórias contribuem para a derrota na guerra.
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