O Globo
Como cantar as glórias do presidente dos EUA
quando é o Brasil inteiro que está na mira?
O poeta nostálgico errou. As aves daqui
gorjeiam igualzinho às de lá. Transliteram, imitam, transcrevem, copiam,
macaqueiam. O boné vermelho de Tarcísio
de Freitas, a bandeira das 50 estrelas na mão dos militantes “patriotas”, a
pátria é outro país, uma nostalgia invertida, o permanente exílio ideológico.
Não podia dar certo, como provou Trump no dia da sanção política que, graças à
tentação do autoengano, ainda nomeamos “tarifa”.
Fogo no aviário. Naquele dia, as aves já não sabiam o que gorjear. Tarcísio, Zema, Caiado responsabilizaram Lula, que nem sequer foi mencionado na carta do herói deles. Os filhotes Bolsonaros, fiéis ao texto sagrado e a seus interesses profanos, culparam o STF — ou seja, Alexandre de Moraes. Todos, porém, na primeira hora, cederam ao impulso neural do alinhamento à pátria estrangeira: Trump tem razão.
O tempo acentuou a algaravia. Tarcísio
guardou o boné, vestiu o uniforme de governador e, na vã esperança de que
esqueçam o que gorjeou ontem, engajou-se numa cômica exibição de “negociações”
com um auxiliar do subsíndico diplomático americano. Flávio, o Zero Um, citou
Hiroshima, alertou sobre Nagasaki e implorou pela rendição nacional diante de
uma potência suprema. Eduardo, o Zero Três, exilado na pátria de escolha,
clamou por anistia prévia, figura desconhecida no universo jurídico, gorjeando
ainda mais alto o canto ritual de louvor ao comandante das forças invasoras.
A unidade da direita foi sempre uma película
delgada: fantasia de conveniência. A crise da sanção quebrou o encanto. O Zero
Três acusou o governador paulista de “subserviência servil às elites” por não
reivindicar o “fim do regime de exceção”. Na sequência, Bolsonaro entrou no
jogo para restaurar a fachada de um palácio destruído. Um pito no filhote, a
descrição de Tarcísio como “irmão mais novo”, a advertência de que “não podemos
dividir”. Da intervenção, nasceu a “pacificação”, na forma de uma postagem conciliatória
do filho relocalizado.
Sem conserto. Uma pesquisa Quaest iluminou
as consequências. Para 72%, Trump erra ao impor a sanção tarifária, 79%
imaginam que o golpe afetará suas vidas pessoais, e 57% negam à Casa Branca o
direito de opinar sobre o processo contra a camarilha golpista. À sombra do
pendão auriverde, a desaprovação de Lula, que subira de 43% para 57% em menos
de um ano, retrocedeu até 53%. Montado num ginete branco, o chefe do Maga
resgata Lula no meio do precipício.
Pacificação ilusória, impossível. A
tarifa-sanção descortina os limites da política da imitação. Como cantar as
glórias de Trump quando é o Brasil inteiro que está na mira? Como conciliar as
prioridades da direita extremista, “anti-Sistema”, com os imperativos
eleitorais da direita institucional? O “bolsonarismo moderado” é uma quimera —
eis o dilema insolúvel da direita.
O autoexílio do Zero Três implica uma cisão
absoluta:
— Não estou buscando convencimento da
população, estou buscando pressionar o Moraes.
Sua aventura subversiva não serve nem mesmo
ao Zero Um, um senador que depende de votos, ou ao réu Bolsonaro, agora com
tornozeleira, descrito pelo filho pródigo como “refém do Sistema”. O primeiro
insistiu no indulto, mas deplorou a sanção. O segundo declarou-se inocente, ao
menos desse crime:
— Não existe nenhum lobby meu.
Não é boa hora para desfraldar a bandeira das
estrelas.
Sobretudo, porém, a nuvem tóxica impôs aos
governadores da direita uma penosa transição discursiva. Zema corrigiu-se,
finalmente qualificando a sanção como “injusta”. Tarcísio abandonou seu perene
exercício de equilibrismo, agarrando-se à barra mais baixa:
— Neste momento, estou olhando para São
Paulo, para o seu setor industrial, para sua indústria aeronáutica, de máquinas
e equipamentos, para nosso agronegócio, para nossos empreendedores e
trabalhadores.
Anistia prévia, indulto? As aves daqui podiam
gorjear como as de lá enquanto o estandarte do perdão aos chefes golpistas
circunscrevia-se à esfera da política nacional. A intervenção de Trump ergue o
desafio de uma escolha: America First ou Brasil First. De agora em diante, as
aves com pretensões eleitorais terão de reaprender a gorjear.
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