sábado, 12 de julho de 2025

O arranjo do desarranjo - Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back

CartaCapital

As ameaças de Trump e as reações dos BRICS

O avesso, do avesso, do avesso. Há um clamor ou desejo nostálgico para um novo Bretton Woods, ainda mais nesses tempos turbulentos desatados sobre a moeda-reserva, o dólar. Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, as mentes saudosistas clamavam por um retorno ao padrão-ouro.

Os desarranjos do sistema monetário internacional invocam a possibilidade de um novo Bretton Woods. Desta vez, acreditamos numa adaptação digital do Bancor.

A ideia de Keynes, vencida na reunião de Bretton Woods, pretendia criar uma moeda única para todos os países amparada em uma Câmara de Compensação única, a União Internacional de Compensação (UIC), cuja diretoria seria formada por representantes de todos os países.

O Bancor seria a moeda utilizada nas trocas entre os países aderentes ao sistema e o seu valor seria lastreado numa combinação de moedas mantidas pelos bancos centrais nacionais. Cada país receberia uma cota anual de “Bancores” proporcional à sua participação no comércio mundial. Se a balança de pagamentos de alguém caísse para um déficit, seriam concedidos créditos para equilibrá-la. Se alguém acumulasse um excedente, os Bancores seriam deduzidos de sua cota.

“A proposta é complicada e nova, e talvez utópica no sentido de que não é impossível de pôr em prática, mas que pressupõe uma maior compreensão, espírito de inovação corajosa e cooperação e confiança internacionais do que é razoável supor.” (Keynes)

Na visão de Lord Maynard Keynes, o problema dos desequilíbrios entre as economias que redundaram em duas guerras mundiais eram as guerras cambiais, as guerras comerciais, os desequilíbrios dos balanços de pagamentos e o financiamento precário dos países com moedas não conversíveis.

O Bancor sucumbiu à hegemonia americana, mas houve um acordo para administrar o sistema monetário internacional mediante a vinculação do dólar ao ouro. Essa decisão estabeleceu a paridade de 35 dólares a onça-ouro.

Em 1971, diante dos desequilíbrios do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, Richard Nixon promoveu a desvinculação do dólar ao ouro. A partir de então, já em 1973, é decretado um sistema de taxas de câmbio flutuantes, seguido, mais tarde, pela abertura das contas de capital. A determinação da taxa de câmbio de cada país está sujeita aos caprichos do fluxo de dinheiro que vagueiam pelo mundo na busca de retorno alavancado sobre o diferencial de taxas de juro, a conhecida arbitragem.

Os países de moedas não conversíveis foram submetidos ao comando do movimento de capitais que promove a instabilidade das alternâncias entre valorizações e desvalorizações. Portanto, os paí­ses de moedas “fracas” não são soberanos para fixar suas taxas de juros.

Keynes percebeu, assim como outros economistas, que a taxa de câmbio define a taxa de juros, não o contrário. A taxa de câmbio define a relações de intercâmbio entre os países, determina os movimentos de preços nos emergentes e escancara as disparidades entre o valor da riqueza expresso na moeda nacional em relação à moeda estrangeira. Um caudal de opiniões dos especialistas desconsidera a determinação da taxa de juros interna pelas oscilações do câmbio flutuante.

Nas economias de moeda não conversível, como o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades monetárias do país de “moeda fraca” – com “ponto de compra” imprevisível – são tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso do câmbio. Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo financeiro elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a desconfiança na moeda local e aceleram a fuga de capitais.

A ideia de Keynes, adaptada ao modelo chinês, permite aos países liquidarem trocas comerciais em moeda local

Cabe a pergunta: como administrar a taxa de câmbio sem controlar a conta de capital?

Quem aprendeu a lição foi a China, my friends! O Banco Central Chinês controla a entrada e saída de capital estrangeiro, não adota o regime de metas de inflação e administra uma taxa de câmbio em relação ao dólar e o euro, e, também, nas relações com os parceiros comerciais asiáticos. Controla as variáveis-chave na economia, a taxa de câmbio e a taxa de juros.

A China foi além, testou internamente uma espécie de yuan digital, a CBDC, Moeda Digital de Banco Central ­(e-CNY). Mais de 134 países estão desenvolvendo sua moeda CBDC, inclusive o Brasil com o Drex. Em 2021 foi lançado o mBridge, projeto de uma câmara de compensação entre as moedas dos países participantes para competir com o Swift, a plataforma de pagamentos em dólar.

Segundo o Banco de Compensação Internacional (BIS), o projeto ­mBridge faz experiências com pagamentos internacionais usando uma plataforma comum baseada na tecnologia de registro distribuído (DLT), na qual vários Bancos Centrais podem emitir e trocar suas­ respectivas moedas digitais emitidas pelos Bancos Centrais (multi-CBDCs). A proposta do mBridge é a construção de uma plataforma multi-CBDC eficiente, de baixo custo, que possa fornecer uma rede de conectividade direta entre Bancos Centrais e participantes comerciais, aumentando significativamente o potencial para fluxos de comércio internacional e negócios transfronteiriços em geral.

Para testar essa proposta, um novo blockchain nativo – o livro-razão mBridge – foi projetado e desenvolvido por Bancos Centrais para Bancos Centrais, a fim de servir como uma implementação de plataforma especializada e flexível para pagamentos transfronteiriços em várias moedas.

Nasce a possibilidade de um novo arranjo monetário capitaneado pelos chineses, e talvez a realização do sonho de Keynes, usando o mBridge como forma de meio pagamento em várias moedas, tendo como âncora o (e-CNY). A vantagem da ideia original de Keynes, agora adaptada ao modelo chinês, permite aos países liquidar suas trocas comerciais em moeda local.

Esse projeto pretende dar fim à Era de Desequilíbrios causados pelo regime de câmbio flutuante. Fim da volatilidade e da ociosidade do dinheiro. Se vingar, retornamos a um sistema de taxas de câmbio administradas. E, mais importante, o déficit externo financiado pelas moedas locais.

“O capital-dinheiro está ocioso não apenas como música passiva e também como música do futuro, mas também como música ativa, como música do futuro.” (Marx)

Talvez se volte a cantar a música Like a Bridge Over Troubled Water, de Simon & Garfunkel. 

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

 

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