CartaCapital
As ameaças de Trump e as reações dos BRICS
O avesso, do avesso, do avesso. Há um clamor
ou desejo nostálgico para um novo Bretton Woods, ainda mais nesses tempos
turbulentos desatados sobre a moeda-reserva, o dólar. Na posteridade da Segunda
Guerra Mundial, as mentes saudosistas clamavam por um retorno ao padrão-ouro.
Os desarranjos do sistema monetário
internacional invocam a possibilidade de um novo Bretton Woods. Desta vez,
acreditamos numa adaptação digital do Bancor.
A ideia de Keynes, vencida na reunião de Bretton Woods, pretendia criar uma moeda única para todos os países amparada em uma Câmara de Compensação única, a União Internacional de Compensação (UIC), cuja diretoria seria formada por representantes de todos os países.
O Bancor seria a moeda utilizada nas trocas
entre os países aderentes ao sistema e o seu valor seria lastreado numa
combinação de moedas mantidas pelos bancos centrais nacionais. Cada país
receberia uma cota anual de “Bancores” proporcional à sua participação no
comércio mundial. Se a balança de pagamentos de alguém caísse para um déficit,
seriam concedidos créditos para equilibrá-la. Se alguém acumulasse um
excedente, os Bancores seriam deduzidos de sua cota.
“A proposta é complicada e nova, e talvez
utópica no sentido de que não é impossível de pôr em prática, mas que pressupõe
uma maior compreensão, espírito de inovação corajosa e cooperação e confiança
internacionais do que é razoável supor.” (Keynes)
Na visão de Lord Maynard Keynes, o problema
dos desequilíbrios entre as economias que redundaram em duas guerras mundiais
eram as guerras cambiais, as guerras comerciais, os desequilíbrios dos balanços
de pagamentos e o financiamento precário dos países com moedas não
conversíveis.
O Bancor sucumbiu à hegemonia americana, mas
houve um acordo para administrar o sistema monetário internacional mediante a
vinculação do dólar ao ouro. Essa decisão estabeleceu a paridade de 35 dólares
a onça-ouro.
Em 1971, diante dos desequilíbrios do balanço
de pagamentos dos Estados Unidos, Richard Nixon promoveu a desvinculação do
dólar ao ouro. A partir de então, já em 1973, é decretado um sistema de taxas
de câmbio flutuantes, seguido, mais tarde, pela abertura das contas de capital.
A determinação da taxa de câmbio de cada país está sujeita aos caprichos do
fluxo de dinheiro que vagueiam pelo mundo na busca de retorno alavancado sobre
o diferencial de taxas de juro, a conhecida arbitragem.
Os países de moedas não conversíveis foram
submetidos ao comando do movimento de capitais que promove a instabilidade das
alternâncias entre valorizações e desvalorizações. Portanto, os países de
moedas “fracas” não são soberanos para fixar suas taxas de juros.
Keynes percebeu, assim como outros
economistas, que a taxa de câmbio define a taxa de juros, não o contrário. A
taxa de câmbio define a relações de intercâmbio entre os países, determina os
movimentos de preços nos emergentes e escancara as disparidades entre o valor
da riqueza expresso na moeda nacional em relação à moeda estrangeira. Um caudal
de opiniões dos especialistas desconsidera a determinação da taxa de juros
interna pelas oscilações do câmbio flutuante.
Nas economias de moeda não conversível, como
o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir
valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de
taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades
monetárias do país de “moeda fraca” – com “ponto de compra” imprevisível – são
tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso
do câmbio. Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo financeiro
elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a desconfiança
na moeda local e aceleram a fuga de capitais.
A ideia de Keynes, adaptada ao modelo chinês,
permite aos países liquidarem trocas comerciais em moeda local
Cabe a pergunta: como administrar a taxa de
câmbio sem controlar a conta de capital?
Quem aprendeu a lição foi a China, my
friends! O Banco Central Chinês controla a entrada e saída de capital
estrangeiro, não adota o regime de metas de inflação e administra uma taxa de
câmbio em relação ao dólar e o euro, e, também, nas relações com os parceiros
comerciais asiáticos. Controla as variáveis-chave na economia, a taxa de câmbio
e a taxa de juros.
A China foi além, testou internamente uma
espécie de yuan digital, a CBDC, Moeda Digital de Banco Central (e-CNY). Mais
de 134 países estão desenvolvendo sua moeda CBDC, inclusive o Brasil com o
Drex. Em 2021 foi lançado o mBridge, projeto de uma câmara de compensação entre
as moedas dos países participantes para competir com o Swift, a plataforma de
pagamentos em dólar.
Segundo o Banco de Compensação Internacional
(BIS), o projeto mBridge faz experiências com pagamentos internacionais usando
uma plataforma comum baseada na tecnologia de registro distribuído (DLT), na
qual vários Bancos Centrais podem emitir e trocar suas respectivas moedas
digitais emitidas pelos Bancos Centrais (multi-CBDCs). A proposta do mBridge é
a construção de uma plataforma multi-CBDC eficiente, de baixo custo, que possa
fornecer uma rede de conectividade direta entre Bancos Centrais e participantes
comerciais, aumentando significativamente o potencial para fluxos de comércio
internacional e negócios transfronteiriços em geral.
Para testar essa proposta, um novo blockchain
nativo – o livro-razão mBridge – foi projetado e desenvolvido por Bancos
Centrais para Bancos Centrais, a fim de servir como uma implementação de
plataforma especializada e flexível para pagamentos transfronteiriços em várias
moedas.
Nasce a possibilidade de um novo arranjo
monetário capitaneado pelos chineses, e talvez a realização do sonho de Keynes,
usando o mBridge como forma de meio pagamento em várias moedas, tendo como
âncora o (e-CNY). A vantagem da ideia original de Keynes, agora adaptada ao
modelo chinês, permite aos países liquidar suas trocas comerciais em moeda
local.
Esse projeto pretende dar fim à Era de
Desequilíbrios causados pelo regime de câmbio flutuante. Fim da volatilidade e
da ociosidade do dinheiro. Se vingar, retornamos a um sistema de taxas de
câmbio administradas. E, mais importante, o déficit externo financiado pelas
moedas locais.
“O capital-dinheiro está ocioso não apenas
como música passiva e também como música do futuro, mas também como música
ativa, como música do futuro.” (Marx)
Talvez se volte a cantar a música Like a
Bridge Over Troubled Water, de Simon & Garfunkel.
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital,
em 16 de julho de 2025.
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