sábado, 12 de julho de 2025

Jogo duro - André Barrocal

CartaCapital

O governo derrota o Congresso nas ruas e nas redes no caso do IOF. Agora, tenta vencer a batalha no Supremo

Na quinta-feira 10, houve uma manifestação popular em São Paulo em defesa da taxação dos super-ricos. Tinha sido convocada pela Frente Povo Sem Medo, cujo rosto mais conhecido é o deputado Guilherme ­Boulos, do PSOL. Na manhã daquele dia, a Frente Parlamentar de Combate às Desigualdades, criada por iniciativa de ­Boulos em 2023, reunira-se no Congresso. Um documento apresentado ali pela Oxfam Brasil, entidade integrante de uma rede mundial de justiça fiscal, trazia uma arqueologia da injustiça tributária brasileira e destacava uma vergonha. Enquanto os 10% mais pobres gastam 32% da renda com impostos, o 0,1% mais rico desembolsa 10%. Claro, o peso da taxação do consumo é maior do que na renda e no patrimônio, ao contrário do que se vê no mundo rico. Eis uma das razões da pornográfica concentração de renda no País.

O presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, abraçaram a causa da justiça tributária, promessa eleitoral em 2022 que, convertida em bandeira de governo, levou o PT a virar o jogo contra a oposição nas redes sociais. O pivô da virada foi a queda de braço com o Congresso quanto à alta do Imposto sobre Operações Financeiras. A batalha do IOF segue inconclusa, porém, graças a uma liminar de 4 de julho do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. No dia 15, governo e Congresso sentarão frente a frente, por ordem do juiz, para tentar um acordo.

O espírito de Lula e da equipe econômica não é de conciliar com o Legislativo, e sim de convencer o STF de que o decreto do IOF, derrubado pelos parlamentares, tem de ser ressuscitado. “Não estou participando de nenhuma mesa de negociação”, declarou o presidente na segunda-feira 7, no Rio de Janeiro. “O Congresso resolveu fazer uma coisa, na minha opinião, totalmente anticonstitucional.”

Moraes concorda. A alegação dos legisladores para derrubar o decreto lulista era de que a norma é inconstitucional, embora os motivos reais a movê-los tenham sido a defesa de endinheirados, a bronca com a situação das emendas parlamentares – na mira da Polícia Federal e do próprio STF – e a antecipação da eleição de 2026. O togado destacou o óbvio, ao anular a decisão congressual. Cabe ao Supremo, e não a ­deputados e senadores, resolver controvérsias constitucionais. Após a liminar, oito partidos ingressaram na Corte com uma ação tal qual a sugerida pelo juiz. Entre eles, três estão no alto escalão governamental. Detalhe: o PL de Jair Bolsonaro havia recorrido ao STF em junho, embora tivesse proposto a derrubada parlamentar do decreto presidencial.

Moraes estava em Lisboa ao dar a liminar contra a derrubada. Participava do convescote anual de políticos, empresários e magistrados organizado por um colega de Corte, Gilmar Mendes. Quem compareceu ao evento diz que Moraes teve vários momentos com congressistas. Estava por lá a orquestra da derrota imposta ao decreto lulista, como o presidente da Câmara, Hugo Motta, o antecessor dele, ­Arthur Lira, e o senador Ciro Nogueira, chefe do PP. Não surpreende que Moraes tenha, na mesma decisão de 4 de julho, barrado a alta do IOF. Ao zerar o jogo, deu uma vitória ao Legislativo, ainda que momentânea. A alta do tributo, por ora, deixou de existir. “Havendo fundada dúvida sobre a finalidade da edição do decreto presidencial”, escreveu o magistrado, “é importante analisar se houve ou não desvio de finalidade, com a intenção arrecadatória.”

A disputa judicial opõe, de um lado, quem diz que o governo tem poder legal para calibrar o IOF só com propósitos regulatórios e, de outro, quem sustenta que o objetivo arrecadatório também admite a norma. Haddad quer convencer Moraes de que a subida da arrecadação será consequência de uma nova regulação. O decreto presidencial tinha alterado o IOF em operações de previdência privada do tipo VGBL, na compra de dólares e em antecipação de receitas empresariais. Nas três situações haveria distorções de mercado atacadas com a nova regulação, segundo o governo.

Na noite da terça-feira 8, Haddad e a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, reuniram-se com ­Hugo Motta e o presidente do Senado, Davi­ ­Alcolumbre. Segundo relatos de quem soube do que se passou na residência oficial do deputado, o ministro da Fazenda insistiu que o decreto é adequado. Mais: lembrou que a controvérsia só existe porque, no fim de 2023, o Congresso impediu a retomada, a partir de 2024, da cobrança de contribuição patronal sobre a folha salarial. Depois de uma querela que também chegou ao STF, a cobrança voltou em 2025, de forma gradual.­ Nada do que Haddad falou foi música para os ouvidos de Motta e Alcolumbre.

Lula e a equipe econômica não estão dispostos a conciliar com o Legislativo

“Existe essa prerrogativa (do presidente de calibrar o IOF por decreto) e nas conversas com o Congresso nós estamos dizendo isso”, afirmou o ministro em 10 de julho, em entrevista coletiva online da qual CartaCapital participou.

O líder do PT na Câmara, ­Lindbergh Farias, acredita que o Congresso não aguentará o embate com o governo. Por dois motivos: a Casa tem alta impopularidade de modo geral e leva adiante uma pauta idem. Segundo pesquisa recente do instituto AtlasIntel, 90% dos brasileiros confiam pouco ou nada no Legislativo. Em relação ao governo, são 48%. O levantamento, registre-se, foi feito entre 27 e 30 de junho, antes de a ideia “Congresso inimigo do povo” inundar as redes sociais no embalo do caso IOF.

A pauta de deputados e senadores tende a reforçar a má vontade das ruas e das redes. Ao derrubar o veto de Lula numa certa lei em junho, os parlamentares vão encarecer a conta de luz, e em um momento em que o governo tenta barateá-la com uma Medida Provisória de isenção total ou desconto parcial para 115 milhões de pessoas. Por iniciativa da cúpula da Câmara, em junho nasceu um projeto que permite a congressistas acumularem salário do mandato atual com aposentadoria por mandatos passados. Em 2018, uma entidade internacional, a União Interparlamentar, havia constatado que só nos EUA um legislador custava mais que no Brasil.

A despesa total com o Congresso ficará maior, se virar lei um projeto aprovado pelos parlamentares e à espera de decisão de Lula: a do aumento do número de deputados de 513 para 531. A proposta surgiu em 2023, por obra da deputada Dani Cunha, do União Brasil do Rio. Ela é filha do famigerado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara e mentor de Motta.

Lula, diz um colaborador, cogita vetar o projeto ou não fazer nada. Nessa última hipótese, caberia ao Parlamento promulgar o texto, após vencido o prazo para a decisão presidencial. Em junho, a Casa promulgou uma lei sobre a qual Lula tinha decidido não decidir. Foi a que instituiu o Dia da Amizade (12 de abril) entre Brasil e Israel. Alcolumbre, que é judeu, promulgou-a, na condição de comandante do Congresso. Disse nos últimos dias que repetirá a dose no caso do aumento do número de deputados. 

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

 

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