CartaCapital
O topo da cadeia alimentar foi surpreendido
pela intensidade da comunicação da esquerda e pela escolha acertada da
abordagem ricos contra pobres
O governo Lula, finalmente, conseguiu pautar a discussão que interessa a quem quer melhorar o País: a luta de classes. Dois projetos se prestaram a esse debate crucial. A isenção total de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais e a redução do imposto para quem recebe entre 5 mil e 7 mil reais (ainda não votado), e o aumento do IOF para os super-ricos (rejeitado pelo Congresso). Corrigir distorções do sistema tributário brasileiro é uma das formas de fazer justiça social e de expor o abismo que divide o País entre os que sobrevivem com migalhas e os que se esbaldam na opulência.
Como era de se esperar, a reação do topo da
cadeia alimentar veio a galope no Congresso e na mídia. Mas, desta vez, eles
foram surpreendidos com a intensidade da comunicação da esquerda nas redes
sociais e com a escolha acertada da abordagem: ricos vs. pobres. Sim, a boa e
velha luta de classes, simples assim. Convenhamos que ter como referência da
oposição ao governo um tipo como o presidente da Câmara, Hugo
Motta, foi (e é) um presente para os criadores de memes, vídeos e mensagens
que tomaram a ágora digital.
Motta, com sua afetação melíflua e penteado
de quem passa horas em frente ao espelho, é um filhote do coronelismo. Versão
mais jovem e repaginada de Odorico Paraguaçu, o personagem da novela O Bem
Amado, de grande sucesso nos idos de 1970. Montado sobre a indecência que
atende pelo nome de “emendas parlamentares”, Motta deixou a hipertrofia de
poder do Legislativo subir-lhe à cabeça em muito pouco tempo. Decidido a
afrontar Lula, traiu o acordo com o governo sobre o prazo para votação do IOF.
Ganhou no plenário, impondo uma derrota ao presidente, mas não levou. Não só
porque a discussão foi parar no STF – e agora está em compasso de espera –, mas
porque sua imagem derreteu nas redes sociais.
Na cerimônia em que tomou posse, Motta teve a
desfaçatez de comparar-se a Ulysses Guimarães. Em apenas cinco meses, o playboy
do sertão tornou-se o grande vilão da novela do IOF, o despachante dos
bilionários intocáveis, o algoz da população de baixa renda. “Esperteza, quando
é muita, come o dono”, dizia Tancredo Neves, que sabia fazer e respeitar
acordos. O prejuízo nas redes sociais, contudo, não desidrata os poderes de
Motta nem os do Congresso mais hostil à democracia do Brasil contemporâneo.
É errado dizer que a composição da Câmara e
do Senado espelha a sociedade brasileira. Muitos dos que ali estão foram
eleitos porque souberam abocanhar o orçamento público, por meio das emendas e
dos fundos partidários e eleitoral. E porque receberam vultosas doações,
sabe-se lá de que origem, para suas campanhas. O resultado é uma representação
distorcida da população. Um Congresso amigo dos ricos e de costas para o povo.
E que não dará sossego a Lula até 2026.
No front externo, o presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump, mostrou suas conexões carnais com os golpistas
brasileiros. Em tom de ameaça, disse acompanhar de perto o processo a que o
inelegível responde no STF e que chamou de “caça às bruxas”. Aumentou as zonas
de fricção com Lula ao advertir que pode retaliar com tarifas adicionais os
países dos BRICS que adotarem “políticas antiamericanas”.
O líder dos extremistas nos EUA esperneia
porque está incomodado com os países emergentes. Apesar de inúmeros problemas
internos, o bloco tem sido capaz de pôr em xeque a ordem internacional vigente,
que se tornou obsoleta e não representa as nações do Sul Global. O bloco
reivindica a reforma do Conselho de Segurança da ONU, do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial. E tem incentivado o uso de moedas locais nas
transações entre seus integrantes em substituição ao dólar. Trump não aceita a
mudança nas engrenagens do poder mundial e responde com fúria aos que não temem
desafiá-lo.
É claro que no combo da tempestade perfeita à
espreita de Lula (ou de quem ele apoiar), em 2026, não faltará a velha mídia
autoritária. Uma pequena mostra do que ela poderá fazer foi uma “reportagem” no
Jornal Nacional de quase sete minutos, atacando a campanha nas redes sociais
que expõe o conflito ricos vs. pobres no debate sobre o IOF. A “reportagem” me
fez lembrar momentos tristemente célebres da emissora: a edição do debate entre
Lula e Collor, em 1989, e a campanha da Lava Jato. Quando percebe seus interesses
afetados, a Globo não hesita em mostrar o DNA de quem apoiou a ditadura. É como
o escorpião da famosa fábula. A diferença, agora, é que ela não tem mais o
monopólio da fala.
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital,
em 16 de julho de 2025.
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