sábado, 12 de julho de 2025

Lula e a luta de classes - Cristina Serra

CartaCapital

O topo da cadeia alimentar foi surpreendido pela intensidade da comunicação da esquerda e pela escolha acertada da abordagem ricos contra pobres

O governo Lula, finalmente, conseguiu pautar a discussão que interessa a quem quer melhorar o País: a luta de classes. Dois projetos se prestaram a esse debate crucial. A isenção total de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais e a redução do imposto para quem recebe entre 5 mil e 7 mil reais (ainda não votado), e o aumento do IOF para os super-ricos (rejeitado pelo Congresso). Corrigir distorções do sistema tributário brasileiro é uma das formas de fazer justiça social e de expor o abismo que divide o País­ entre os que sobrevivem com migalhas e os que se esbaldam na opulência.

Como era de se esperar, a reação do topo da cadeia alimentar veio a galope no Congresso e na mídia. Mas, desta vez, eles foram surpreendidos com a intensidade da comunicação da esquerda nas redes sociais e com a escolha acertada da abordagem: ricos vs. pobres. Sim, a boa e velha luta de classes, simples assim. Convenhamos que ter como referência da oposição ao governo um tipo como o presidente da Câmara, Hugo Motta, foi (e é) um presente para os criadores de memes, vídeos e mensagens que tomaram a ágora digital.

Motta, com sua afetação melíflua e penteado de quem passa horas em frente ao espelho, é um filhote do coronelismo. Versão mais jovem e repaginada de Odorico Paraguaçu, o personagem da novela O Bem Amado, de grande sucesso nos idos de 1970. Montado sobre a indecência que atende pelo nome de “emendas parlamentares”, Motta deixou a hipertrofia de poder do Legislativo subir-lhe à cabeça em muito pouco tempo. Decidido a afrontar Lula, traiu o acordo com o governo sobre o prazo para votação do IOF. Ganhou no plenário, impondo uma derrota ao presidente, mas não levou. Não só porque a discussão foi parar no STF – e agora está em compasso de espera –, mas porque sua imagem derreteu nas redes sociais.

Na cerimônia em que tomou posse, Motta teve a desfaçatez de comparar-se a Ulysses Guimarães. Em apenas cinco meses, o playboy do sertão tornou-se o grande vilão da novela do IOF, o despachante dos bilionários intocáveis, o algoz da população de baixa renda. “Esperteza, quando é muita, come o dono”, dizia Tancredo Neves, que sabia fazer e respeitar acordos. O prejuízo nas redes sociais, contudo, não desidrata os poderes de Motta nem os do Congresso mais hostil à democracia do Brasil contemporâneo.

É errado dizer que a composição da Câmara e do Senado espelha a sociedade brasileira. Muitos dos que ali estão foram eleitos porque souberam abocanhar o orçamento público, por meio das emendas e dos fundos partidários e eleitoral. E porque receberam vultosas doações, sabe-se lá de que origem, para suas campanhas. O resultado é uma representação distorcida da população. Um Congresso amigo dos ricos e de costas para o povo. E que não dará sossego a Lula até 2026.

No front externo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mostrou suas conexões carnais com os golpistas brasileiros. Em tom de ameaça, disse acompanhar de perto o processo a que o inelegível responde no STF e que chamou de “caça às bruxas”. Aumentou as zonas de fricção com Lula ao advertir que pode retaliar com tarifas adicionais os países dos BRICS que adotarem “políticas antiamericanas”.

O líder dos extremistas nos EUA esperneia porque está incomodado com os países emergentes. Apesar de inúmeros problemas internos, o bloco tem sido capaz de pôr em xeque a ordem internacional vigente, que se tornou obsoleta e não representa as nações do Sul Global. O bloco reivindica a reforma do Conselho de Segurança da ONU, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. E tem incentivado o uso de moedas locais nas transações entre seus integrantes em substituição ao dólar. Trump não aceita a mudança nas engrenagens do poder mundial e responde com fúria aos que não temem desafiá-lo.

É claro que no combo da tempestade perfeita à espreita de Lula (ou de quem ele apoiar), em 2026, não faltará a velha mídia autoritária. Uma pequena mostra do que ela poderá fazer foi uma “reportagem” no Jornal Nacional de quase sete minutos, atacando a campanha nas redes sociais que expõe o conflito ricos vs. pobres no debate sobre o IOF. A “reportagem” me fez lembrar momentos tristemente célebres da emissora: a edição do debate entre Lula e Collor, em 1989, e a campanha da Lava Jato. Quando percebe seus interesses afetados, a Globo não hesita em mostrar o DNA de quem apoiou a ditadura. É como o escorpião da famosa fábula. A diferença, agora, é que ela não tem mais o monopólio da fala. 

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

 

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