segunda-feira, 2 de julho de 2018

Opinião do dia: Fernando Henrique Cardoso*

O Brasil exige: sejamos radicais. Mas dentro da lei: que a Justiça puna os corruptos, sem que o linchamento midiático destrua reputações antes das provas serem avaliadas. Não sejamos indiferentes ao grito de “ordem!”. Ele não vem só da “direita” política, nem é coisa da classe média assustada: vem do povo e de todo mundo. Queremos punição dos corruptos e ordem para todos, entretanto, dentro da lei e da democracia.

O País foi longe demais ao não coibir o que está fora da lei, o contrabando, o narcotráfico, a violência urbana e rural, a corrupção público-privada. Devemos refrear isso mantendo a democracia e as liberdades antes que algum demagogo, fardado ou disfarçado de civil, venha a fazê-lo com ímpetos autoritários.

---------------------
*Sociólogo, foi presidente da República. ‘Sejamos radicais’, O Estado de S. Paulo e O Globo, 1/7/2018

Marcus André Melo: Direita envergonhada

- Folha de S. Paulo

Políticos brasileiros, que em outros países se definiram como de direita, rejeitam o termo

“Direita envergonhada” (“abashed right”, no original) foi a expressão utilizada pelo cientista político Timothy Power, da Universidade Oxford, para referir-se ao paradoxo de os políticos brasileiros —que em outros países se auto definiriam como de direita— recusarem essa qualificação.

Duas década após a publicação do seu livro “The Political Right in Post-Authoritarian Brazil: Elites, Institutions and Democratization”, Penn State University Press, 2000, (A Direita Política no Brasil Pós-Autoritário: Elites, Instituições e Democratização), ocorre curiosa inversão: a normalização do nosso sistema partidário, pela emergência de partidos e setores autodefinidos como de direita e ultraconservadores, tem causado perplexidade descabida.

O fenômeno da direita envergonhada não é novo, muito menos brasileiro. Albert Thibaudet registrou na década de 1930 o que chamou de sinistrismo: a diferenciação do sistema partidário na França pela proliferação de novos partidos, sempre pela esquerda. O termo direita, argumentava, havia adquirido conotação pejorativa devido à associação com a monarquia e à idolatria da república.

O mesmo aconteceu no Brasil e na América Latina em que a qualificação de direita passou a ser associada aos regimes militares e ao autoritarismo (tolerado na agenda pública em sua versão à esquerda).

O sinistrismo mudou: nas últimas décadas há uma tendência de afastamento dos antigos modelos de partidos socialistas e comunistas. Brasil, África do Sul e Índia são as únicas democracias em que ainda existem partidos comunistas não reformados com presença ativa na arena pública.

Fernando Limongi: Mata-mata

- Valor Econômico

Negociações para alianças entram em sua fase final

Durante a semana, as negociações para a formação de coligações ganharam intensidade. Sob a pressão do calendário eleitoral, os candidatos intensificaram os contatos, pois o limite para acertar os acordos acaba na primeira semana de agosto.

Um aspecto essencial dessa definição é a articulação entre os dois planos da disputa, o nacional e o estadual. Uma candidatura presidencial forte se estrutura a partir dos palanques com que conta nos Estados. O inverso também tende a ser verdade, isto é, candidatos fortes aos governos estaduais precisam se alinhar a candidatos viáveis à presidência.

Para por as coisas de uma forma diferente: nenhum partido brasileiro lança candidato à presidência e a todos os governos estaduais. Para vencer, é preciso concentrar forças e recursos, fazendo acordos que envolvem a troca de apoios. Por meio dessas negociações e acordos se reduz o número de candidaturas viáveis oferecidas aos eleitores, tanto na disputa presidencial quanto nas estaduais.

Em geral, em cada estado, somente duas ou três grandes coligações apresentam candidaturas competitivas ao governo. Nas últimas eleições, salvo raras exceções, as coligações viáveis foram comandadas por quatro partidos, a saber, PT, PSDB, MDB e PSB.

Dadas as inúmeras peculiaridades dessa eleição, as negociações para formar coligações travaram. A indefinição do PT, sem dúvida alguma, contribuiu de forma decisiva para o atraso. Todos aguardam a definição do competidor mais forte. E o competidor mais forte está preso e não poderá ser candidato. O partido de Lula insiste nele e resiste a indicar seu vice ou um provável sucessor.

Tirar Lula da prisão e garantir sua candidatura passou a ser o único objetivo do PT. Tudo gira em torno do ex-presidente ou passa por ele. Não há um negociador autorizado sequer e todos aguardam ansiosamente as diretivas do líder que, por enquanto, precisam ser deduzidas por recados e notas que envia desde o cárcere.

Celso Rocha de Barros: Unger

- Folha de S. Paulo

Meio poético, pensador ligado a Ciro precisa de coautor que escreva em prosa

Nesses anos todos de participação na vida política nacional, Roberto Mangabeira Unger ainda não mostrou para o público brasileiro o que Harvard viu nele. Apoiou o Ciro, rompeu com o Ciro, fez oposição radical ao Lula, virou ministro do Lula, voltou para o Ciro, e, nessa confusão toda, ninguém entendeu exatamente o que ele quer da vida.

É uma pena, porque Unger é um pensador bastante original e interessante, respeitado por pensadores do porte do filósofo Richard Rorty, do historiador Perry Anderson, do economista Dani Rodrik. Se você não lê a Ilustríssima (por que não, ô?) talvez não saiba quem são esses sujeitos, mas garanto que é gente bem inteligente.

A utopia de Unger é a seguinte: um sistema econômico de mercado em que o governo atue muito pesadamente para que todo mundo seja capaz de se mover entre as condições de assalariado qualificado, profissional independente e associado em cooperativas de gente igualmente qualificada.

Parece uma utopia liberal, mas Unger acredita que isso só será possível se o Estado for muito atuante na economia: mexendo na política educacional, na oferta de crédito, na alteração da lei dos contratos, no fornecimento da rede de segurança para quem se der mal no mercado.

O Estado que faria isso tudo também seria diferente. Unger quer uma democracia de alta intensidade, com plebiscitos, referendos, participação da população na gestão dos fundos públicos.

Mary Zaidan: Os donos da bola

- Blog do Noblat | Veja

As regras do STF são mais frouxas do que as da Fifa

Derrotada pela França, a Argentina exige a realização de um novo jogo para tentar vencer. E, enquanto a nova partida não é marcada, se comporta como campeã da Copa.

Parece absurdo – e é. Mas tem sido esse o comportamento dos vencidos no STF quanto à possibilidade de início do cumprimento da pena de condenados em segunda instância.

Sempre que podem – em decisões monocráticas ou no voto na segunda turma, onde três dos cinco ministros perdoadores e perdedores têm assento -, eles desacatam a decisão suprema da Corte para impor seus entendimentos ou vontades. Conduta que se agudizou depois de Lula ir para a cadeia.

A prisão pós-condenação em segunda instância, que vigorou por décadas antes de ser revogada por dádiva da Constituição de 1988, foi votada e autorizada pela maioria dos ministros por duas vezes, a última delas em 2016, por 6 x 5. Placar tão apertado quanto o 4 x 3 que eliminou a Argentina.

Mas as regras do STF são mais frouxas do que as da Fifa e, pior, podem ser alteradas enquanto a bola rola.

Com a já anunciada mutação de voto de Gilmar Mendes, sabe-se que a decisão em vigor será alterada, possivelmente em setembro, quando Dias Toffoli, reprovado em exames para magistratura, assumirá a Presidência do Supremo no lugar de Cármen Lúcia.

Toffoli foi voto vencido. Mas, assim como Marco Aurélio Mello, tem agido por conta própria contra a prisão sem a exaustão dos recursos em instâncias superiores, prática que garante impunidade quase eterna aos que têm dinheiro a rodo para as bancas milionárias de causídicos.

Cida Damasco: Na mesma trilha

- O Estado de S. Paulo

Candidatos divergem sobre saídas, mas já discutem a sério ajuste e reformas

Mesmo em meio à dispersão de interesses provocada pela Copa e como de costume sob desconfiança, as pesquisas eleitorais poucas vezes foram aguardadas com tanta ansiedade como agora. E fora do circuito eminentemente político. Situação mais do que compreensível, diante das incertezas que cercam a disputa pela Presidência, a pouco mais de três meses das eleições. As incertezas chegam ao ponto de incluir quem vai iniciar a corrida – não apenas quem chegará à vitória.

Espera-se que finalmente o PT ponha na mesa o nome do substituto de Lula – que, preso há três meses, ainda lidera as pesquisas, com cerca de um terço das intenções de voto. No território tucano, todo santo dia aparece alguém com alguma alternativa para substituir Geraldo Alckmin, visto que o ex-governador continua empacado bem abaixo da marca dos 10%. Também há dúvidas se o MDB levará adiante a candidatura de Henrique Meirelles, que não sai do 1% das intenções.

No meio desse emaranhado, mercados e setores produtivos tentam se animar com os candidatos à disposição e mudam de cá para lá e de lá para cá, a cada vez que aparecem novos indícios nas pesquisas. Já houve entusiasmo com Meirelles, Alckmin e, na falta de perspectivas mais favoráveis para os dois candidatos, até alguma “simpatia” por Jair Bolsonaro (PSL). Sem falar das meteóricas passagens dos outsiders Luciano Huck e Joaquim Barbosa.

A queridinha da vez é Marina Silva (Rede), que ficou tecnicamente empatada com Bolsonaro (com 13% das preferências, frente a 17% do deputado), e à frente de Ciro Gomes (PDT), com 8%, no cenário sem Lula da última pesquisa CNI-Ibope. Embalados pelo resultado, os mercados reagiram bem: a Bolsa subiu 1,6% na quinta-feira e o dólar, depois de um esticão, estabilizou.

Angela Bittencourt: Cai chance de reformista disputar 2º turno eleitoral

- Valor Econômico

Selic sobe após eleição; lucro das empresas deve cair

Inflação mais pressionada, encerramento do ciclo de flexibilização monetária nos Estados Unidos, crescente protecionismo comercial e choque na oferta de petróleo são variáveis que justificam a piora do equilíbrio de riscos na economia global e a queda do interesse dos investidores internacionais por ativos financeiros de mercados emergentes observada nos últimos quatro meses. O Brasil está inserido nesse contexto, mas tem a administrar os seus próprios pesadelos.

Após um primeiro trimestre mais fraco - com o Produto Interno Bruto (PIB) em alta de 0,4% ante 1% esperado por analistas -, os dados econômicos ensaiaram melhora em abril. Mas quase certamente essa melhora será neutralizada pelos efeitos negativos da greve dos caminhoneiros que parou o país.

A greve poderá afetar, inclusive, o resultado da eleição presidencial, na avaliação do estrategista do UBS Wealth Management, Ronaldo Patah. Em entrevista à coluna, ele afirma que perspectivas mais sombrias para a economia já tiveram impacto sobre os brasileiros que irão às urnas. E informa: a grande maioria dos brasileiros acredita que a "economia piorou" em relação a meses atrás e pretende votar em um "líder forte com vontade de mudar" o status quo.

"As chances de um candidato reformista chegar ao segundo turno da eleição presidencial são agora menores do que eram antes da greve", afirma. O cenário base do UBS tem agora 60% de chance de que o próximo presidente seja um "quase reformista". Isto é, alguém sem forte convicção sobre as reformas que devem ser feitas no país para consertar a economia.

Ricardo Noblat: O peso da camisa nas eleições de outubro

- Blog do Noblat | Veja

A ameaça que pesa sobre as três mais antigas

Na política como no futebol certas camisas pesam, e as outras importam menos. A do PMDB, a mais antiga, só uma vez favoreceu de modo avassalador os que a vestiam. Foi em 1986 quando o partido, no embalo do Plano Cruzado que congelara preços e salários, elegeu 22 governadores em 23. Em 1989, na primeira eleição presidencial depois de 21 anos de ditadura, o candidato do PMDB colheu insignificantes 4,7% dos votos.

Uma única vez mais o PMDB disputou com candidato próprio a presidência da República, e perdeu feio. Limita-se desde então a vender seu tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão a quem pagar mais caro e, adiante, seu apoio a quem queira governar. Este ano, finge estar disposto a concorrer com a candidatura de Henrique Meirelles. Irá rifá-la para sair rodando a bolsa por aí e amigar-se com várias ao mesmo tempo.

Foi de uma costela do PMDB que nasceu o PSDB. Mas não foram os méritos do PSDB que o levaram a governar o país por oito anos seguidos. Deve-se isso ao Plano Real, bancado pelo presidente Itamar Franco, que domou a inflação e distribuiu renda. O Real elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso. Ao desvalorizar-se diante do dólar, em 2002 ajudou a eleger Lula que amargava três derrotas consecutivas a presidente.

O peso da camisa do PSDB garantiu-lhe apenas a posição de “sparing” favorito do PT nos últimos 14 anos. Neste, o PSDB está ameaçado de ficar de fora do ringue do segundo turno da sucessão presidencial. Seu candidato tem como referência o fato de ter nascido em Pindamonhangaba e governado São Paulo quatro vezes. Nada contra a cidade e o Estado. O problema de Alckmin é que ele é um candidato analógico.

Como parece destinado a voar com a desenvoltura e elegância das galinhas, não encontra quem queira lhe fazer par. A três meses das eleições, a não ser que desista delas, está condenado a ir até o fim, para a glória improvável ou a derrota previsível. O PSDB não pariu ninguém capaz de substitui-lo a essa altura. O candidato natural do partido foi soterrado pela ganância e falta de escrúpulos. Quem não tem tu, vai tu mesmo, portanto.

Onde se perdeu a camisa, aí é que se procura. A do PT desbotou depois de 38 anos de uso, a parte mais recente deles de mau uso. A lama que jorrou dos dutos da Petrobras deixou o PT ante dois caminhos: reinventar-se, o que passaria pela admissão dos seus erros, ou manter-se como era. A prisão de Lula e o aborto de sua candidatura adiou a reinvenção, será que um dia ela virá. O PT irá às urnas com o discurso e a postura de sempre.

O substituto de Lula, a ser lançado na undécima hora, dirá: “Eu sou Lula”. E o algoz do PT dirá do fundo do cárcere: “Eu sou ele”. Pouco tempo haverá para que o truque encante quem se quiser deixar encantar. Além de velha, desbotada e pesada, a camisa do PT tem tudo para despedir-se esfarrapada de uma competição de curta distância como será a de outubro próximo. Foi assim nas eleições municipais há dois anos.

Ivanir dos Santos: Justas e necessárias

- O Globo

Sistema de cotas faz parte das políticas de reparação às minorias representativas da nossa sociedade

No dia 19 de junho, estava previsto na Assembleia Legislativa do Rio a votação do projeto de lei, enviado pelo governo do Estado, que propõe a prorrogação por mais dez anos, no mínimo, do sistema de cotas para ingresso em universidades estaduais. Mesmo adiada a votação, provavelmente para o mês de setembro ou outubro, vale aqui uma brevíssima reflexão sobre o assunto. Sancionada no Estado do Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 2008, a Lei 5.345/ 2008 é fruto dos processos de resistências e lutas dos movimentos negros em busca de equidade e igualdade na sociedade brasileira.

Longe de ser um privilégio, a lei de cotas aprovada pelo estado fluminense assegura que: tem direitos às cotas nas universidades públicas estaduais estudantes que se autodeclaram negros e indígenas, com 20% das vagas; alunos da rede pública de ensino, com 20% das vagas, e pessoas portadoras de deficiência e filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço, com 5% das vagas.

Ingressar em uma universidade pública gratuita, para muitos alunos negros, indígenas e/ou de redes públicas de ensino é um grande sonho, mas, diante das configurações sociais, em que muitos desses alunos são arrimo de família e dividem suas horas de estudos com intensas jornadas de trabalho, esse sonho pode ficar no meio do caminho. Caminho esse construído com dificuldades num país que foi o último a erradicar o trabalho escravo e que não foi capaz de fomentar política inclusiva para negros e negras recém-libertos. Assim, precisamos compreender que o sistema de cotas, somado à lei 11.645, que institui a obrigatoriedade do ensino das histórias e das culturas africanas, indígenas e afrobrasileiras, contribuindo para visibilidade histórica das populações marginalizadas, faz parte das políticas de reparação às minorias representativas da nossa sociedade. E que tem como alicerce as políticas de ações afirmativas inclusivas fomentadas pelos movimentos negros brasileiros.

E, em contraponto ao que até então se poderia pensar, o número de evasão dos alunos cotistas é ínfimo se comparado ao número de alunos cotistas que concluem os cursos de ensino superior. Segundo os dados apresentados pela Sepplir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), em três anos, entre 2012 e 2015, 150 mil negros ingressaram em universidades por meio de cotas, diante de uma realidade, em 1997, em que o percentual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursava ou havia concluído o ensino superior era de 1,8%, e o de pardos, 2,2%. Em 2013, esses percentuais já haviam subido para 8,8% e 11%. Acredito que precisamos continuar trabalhando e fomentando ações que possam promover as ações afirmativas em nossa sociedade.

-------------------------
Ivanir dos Santos é babalaô e doutor em História Comparada pela UFRJ

Fernando Gabeira: Com alma

- O Globo

Hoje, no Brasil, só se fala no jogo com o México. Talvez o mesmo não seja verdadeiro por lá. Ontem foi dia de eleições presidenciais, e a esquerda estava bem à frente, com Andrés Manuel López Obrador. No passado, as eleições mexicanas eram decididas nos bastidores de um partido, o Revolucionário Institucional (PRI). Agora, são para valer.

Foram eleições sangrentas, pois lá, como aqui, a violência é um fato cotidiano. Quarenta e oito pessoas — candidatos ou pré-candidatos — foram assassinadas no processo, entre elas, oito mulheres. O México que joga contra o Brasil talvez não esteja preocupado com Cavani, Lukaku ou Mbappé, e sim com o presidente Trump, que é o principal adversário no horizonte.

Os argentinos deram adeus. Ao contrário de grande parte dos brasileiros, tenho simpatia por eles. Pelo menos no passado, jogavam com alma, e isso é o bastante para me conquistar. Assim como Santo Agostinho em relação ao tempo, sei o que é alma, mas, se me perguntarem, não consigo definir.

Talvez possa falar de algumas expressões de alma, uma centelha, um brilho, uma garra, que não são idênticos ao talento e à técnica. Desde menino observo a alma, essa substância invisível, translúcida, e todos os golpes que o avanço econômico aplicou nela. A rígida divisão de trabalho, burocráticos prazos, tudo isso contribui para que se façam as coisas sem alma.

Charles Chaplin, de certa forma, toca no tema no filme “Tempos modernos”, de 1936. Hoje, a situação não é a mesma, mas o trabalho tornou-se supérfluo. Como buscar sentido no ofício, se o futuro aponta para a sua destruição?

Não queria tratar desse tema com pretensões intelectuais. Baseio-me na torcida do Flamengo, que não pode ser acusada de grandes voos teóricos. Basta olhar a história do clube para constatar que muitos ídolos não o foram precisamente pelo talento e pela técnica.

Celebrizado pela canção de Jorge Ben, Fio Maravilha chegava ao gol com emoção e raça. Só não entrava com bola e tudo por humildade. Fio Maravilha, nós gostamos de você. Depois dele, Obina, com o mesmo jeito atrapalhado, mas uma grande vontade e o carinho da torcida, apesar da técnica precária e de uma tenebrosa pontaria.

O futebol, como tudo, evoluiu, tornou-se mais ensaiado, mais cientificamente estudado. Talvez não exista mais lugar para Fios e Obinas. Fio Maravilha tornou-se entregador de pizza em São Francisco. Se conseguir se divertir com os bondes como se divertia com a bola, subir ladeiras abraçado numa marguerita com o fervor com que entrava nas áreas, nem tudo estará perdido.

Não se trata de negar a excelência e o avanço científico. Suspeito que o hipotético encontro de um time de hoje com um time do passado resultaria em goleada. Não creio que a vida possa ser sintetizada num jogo. Mas, se pudesse, o futebol seria muito melhor candidato do que o xadrez.

Num dia como hoje, portanto, ganhem ou percam, mas, por favor: com alma. Isso é decisivo não só contra o México, mas sobretudo contra os belgicanos, como dizia um locutor antigamente.

Talvez realize-se aí o duelo entre os dois melhores do mundo na atualidade. Há pouco espaço para cai-cai, estilista, limpeza de pele, pensem que no sofri etc. Seremos nós contra eles, e o mundo dos amantes do futebol olhando.

Demétrio Magnoli: Rússia, campeã do mundo

- O Globo

A Arena Baltika custou US$ 300 milhões e abriga 35 mil espectadores. Inaugurada para a Copa do Mundo, serviu como palco para quatro jogos. Depois do Inglaterra x Bélgica, quinta passada, receberá os jogos do time local, que atraem cerca de quatro mil torcedores. Nenhum brasileiro ficará chocado com a história de mais um elefante branco das Copas. Esse, porém, é diferente. Kaliningrado, onde se situa, é um exclave circundado por terras da Polônia e da Lituânia: um fragmento de Rússia separado do território nacional pela implosão da URSS. Intensamente militarizado, o exclave sedia a Frota do Báltico e cumpre a função simbólica de fortaleza russa entalhada no mundo da Otan. O elefante branco não tem finalidades esportivas, mas geopolíticas.

“Putin quer exibir Kaliningrado como um poderoso bastião militar contra a expansão da Otan rumo ao leste e mostrar um exclave mais próspero do que realmente é”, explicou William Courtney, um ex-representante americano em negociações militares com a Rússia. Na antiga URSS, os grandes investimentos não tinham sentido econômico, mas obedeciam à lógica de ostentar o poderio estatal. A Arena Baltika inspira-se nessa tradição soviética, retomada pelo putinismo. De fato, do ponto de vista da Rússia, toda a “Operação Copa” não se inscreve na lógica dos negócios, mas na da política.

O futebol entrelaçou-se à política desde que as bandeiras entraram em campo, na primeira Copa. No segundo evento, realizado na Itália, em 1934, sob o regime fascista, ergueram-se os novos estádios de Turim (batizado “Mussolini”), Roma, Bologna, Bari, Florença, Livorno e L’Aquila com o propósito de exteriorizar o poderio industrial do país. Depois da vitória final italiana, o jornal Il Popolo D’Italia, porta-voz do governo, celebrou a “visão de harmonia, disciplina, ordem e coragem” refletida pela atuação da equipe nacional.

Militância antiprivatização: Editorial | O Estado de S. Paulo

Na quarta-feira passada, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu, em duas ações, medidas cautelares contrárias às privatizações, em clara interferência do Poder Judiciário em seara alheia. Numa das ações, o relator justifica a urgência da liminar alegando o empenho do governo federal em levar adiante o Programa de Parcerias de Investimentos, aprovado na Lei 13.334/2016. É o uso deliberado da caneta do Judiciário para fazer oposição ao Executivo.

Proferida numa ação proposta pelo governo de Alagoas contra a União, a primeira liminar retira a empresa Companhia Energética do Estado de Alagoas (Ceal) do leilão de privatização de distribuidoras da Eletrobrás, previsto para o próximo dia 26 de julho. De acordo com o edital de venda, a Ceal tem patrimônio líquido negativo de R$ 573,8 milhões, endividamento de R$ 1,46 bilhão e prejuízo acumulado nos últimos cinco anos de R$ 923,6 milhões. Diante dessa situação financeira periclitante, a União decidiu licitá-la pelo valor simbólico de R$ 50 mil. O governo de Alagoas alega, no entanto, que teria direito a receber R$ 4 bilhões pela venda da Ceal.

Apesar do irrealismo do pedido, o ministro Lewandowski concedeu a liminar, numa decisão que, além de acrescentar incertezas a um processo de privatização absolutamente necessário, obriga o contribuinte a continuar custeando dívidas bilionárias de estatais mal administradas.

STF instável é motivo de preocupação nas eleições: Editorial | Valor Econômico

Para não fugir à regra, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o semestre judiciário tomando medidas de impacto, a maioria delas muito polêmicas, sobretudo no que diz respeito aos assuntos econômicos e à Operação Lava-Jato. No primeiro caso, enquadra-se, por exemplo, a liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski suspendendo o leilão das concessionárias de energia elétrica, nos três níveis de governo, sem prévia autorização do Legislativo.

Espécie de líder sindical no Supremo, Lewandowski é o mesmo ministro que, no final do ano passado, concedeu liminar mandando o governo pagar o aumento dos servidores públicos concedido ainda pela ex-presidente Dilma Rousseff e que o Palácio do Planalto, temendo o impacto nas contas públicas, suspendera por meio de uma medida provisória. Liminar, é bom que se diga, que até hoje não foi julgada em caráter definitivo pela mais alta instância judiciária do país.

Ficou para as calendas.

Também agora no fim do semestre judiciário, o ministro Edson Fachin, em outro movimento favorável ao sindicalismo, tentou restaurar o imposto sindical obrigatório, mas foi derrotado pela maioria dos ministros do STF, que considerou constitucional a mudança feita na legislação trabalhista pelo Congresso Nacional.

O ministro Ricardo Lewandowski é apenas um exemplo da sem-cerimônia com que o Supremo interfere na decisão de outros poderes. Grande parte das vezes por meio de decisões monocráticas. Neste semestre, os órgãos colegiados (as duas turmas e o plenário) julgaram 6.169 processos, enquanto os 11 ministros que integram o Tribunal proferiram 58.203 decisões monocráticas. Ou seja, individuais, como aquela que assegurou o pagamento do aumento aos servidores - e o governo que se virasse para arrumar recursos para honrar a folha salarial.

A imagem que passa o Supremo é a de que o interesse dos ministros prevalece sobre o que seria básico, o melhor interesse da Justiça. Vê-se isso claramente agora quando está em jogo o futuro da Operação Lava-Jato. Quando interessa ao ministro Edson Fachin, relator dos processos, ele envia os julgamentos à Segunda Turma do Supremo, da qual é parte integrante; quando percebe que será derrotado, imediatamente recorre ao plenário.

O comportamento das duas turmas do Supremo é neurótico. O preso da Lava-Jato tem mais chances de ser solto ou mandado para casa com tornozeleira eletrônica, se cair na Segunda Turma. Na primeira turma, suas chances praticamente desaparecem.

Eleitores na mira: Editorial | Folha de S. Paulo

Com Datena, PSDB corteja parcelas conservadoras da opinião pública que pendem a Bolsonaro

Mal se iniciaram as movimentações políticas com foco nas eleições de outubro, o que torna arriscadas previsões quanto à estratégia e às prioridades de cada candidato na campanha que se aproxima.

Ainda assim, não resta dúvida de que os expressivos índices obtidos nas pesquisas pelo presidenciável direitista Jair Bolsonaro (PSL) produzem no momento uma inflexão ideológica no cenário político.

Nada garante que persistam os níveis de preferência popular atualmente obtidos por esse postulante, cujas possibilidades se veem ameaçadas pela falta de estrutura partidária, de tempo na TV e de equilíbrio nas atitudes e propostas.

Seja como for, outros concorrentes parecem atentos ao fenômeno. À esquerda, Ciro Gomes (PDT) parece estimulado a intensificar uma imagem que, até há pouco, parecia prejudicá-lo —a de um político intempestivo, apto ao confronto verbal, à ofensa e ao destempero.

É como se disputasse com Bolsonaro a preferência dos que associam a crise brasileira a um problema de autoridade, de mando. Os anos de teimosia e arrogância de Dilma Rousseff (PT) aparentemente não contam nessa avaliação.

Situam-se no PSDB, entretanto, as mais nítidas tentativas de cortejar os eleitores à direita.

Se já é antiga a opinião do candidato Geraldo Alckmin no sentido de reduzir a maioridade penal, nota-se agora a ênfase que dedica ao tema da liberação do porte de armas na zona agrícola.

Na mesma linha, cabe lembrar seu comentário sobre o ataque a tiros organizado contra a caravana de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em março passado, segundo o qual os petistas estavam “colhendo o que plantaram”.

O mérito em questão: Editorial | O Globo

A melhor ação afirmativa é uma educação pública de alta qualidade

A proposta de renovação das cotas raciais em universidades estaduais fluminenses, por mais dez anos, era esperada. Este é um tipo de benefício que, mesmo com prazo de validade, nunca é revogado, porque nenhum político, com raras exceções, irá contra essas ações. Mesmo que a avaliação das cotas fosse negativa. A questão é saber que tipo de balanço deve ser feito delas.

Um dos aspectos a averiguar é o do rendimento dos cotistas. As pesquisas disponíveis são positivas, porque concluem que não haveria diferenças entre o rendimento de cotistas e não cotistas.

Abre parêntese: o comentário a fazer sobre essas pesquisas é que, se não importa se o vestibulando entrou na faculdade ajudado por ações afirmativas como as cotas, porque ele terá o mesmo rendimento que os demais estudantes, talvez devesse o país criar uma multiplicidade de novas portas de entrada no ensino superior, à margem do vestibular ou Enem. Afinal, garantem as pesquisas, não há maiores diferenças no aprendizado dos alunos. Fecha parêntese.

Não se pode desconhecer os desníveis de renda e de qualidade de vida entre brasileiros. E, sem dúvida, a educação é o melhor caminho para a ascensão social. Também é indiscutível que, por não ter havido políticas compensatórias para integrar a população de libertos da escravidão à sociedade, incluindo a educação, há mais negros entre os pobres, nos bairros periféricos, em favelas etc.

Mexicanos vão as urnas e votam por mudança

Agências internacionais | Valor Econômico

Milhares de mexicanos, fartos da crescente violência e corrupção, votaram ontem esmagadoramente no candidato antiestablishment Andrés Manuel López Obrador, na eleição presidencial, segundo apontaram todas as pesquisas de boca de urna. Logo após a divulgação das pesquisas o candidato governista José Antonio Meade (PRI), admitiu a derrota e desejou boa sorte a López Obrador.

Pesquisa de boca de urna da Parametria apontava a vitória do ex-governador da Cidade do México, conhecido como Amlo, com uma votação entre 53% e 59%. A pesquisa do jornal "El Financiero" também indicava Amlo como provável vencedor da corrida presidencial, com 49% dos votos, contra apenas 27% de Ricardo Anaya (PAN) e 18% de José Antonio Meade (PRI). A boca de urna da GEA/ISA projetava uma vitória de López Obrador com uma votação entre 46,8% e 50,2%. Por último, a pesquisa Televisa/Consulta Mitofsky, indicava a eleição de Amlo, com uma votação entre 43% e 49%.

Durante toda a campanha presidencial, López Obrador sustentou uma esmagadora vantagem, que chegou a 20 pontos percentuais, em relação aos seus adversários. As pesquisas de boca de urna também indicam que seu partido, o Movimento Nacional de Regeneração (Morena), estava à frente em pelo menos quatro eleições para governadores: Veracruz, Morelos, Chiapas e Tabasco. A pesquisa de boca de urna da Consulta Mitofsky cobriu seis das nove corridas do governo regional de domingo, e também confirmava o favoritismo do Morena na Cidade do México.

Para muitos eleitores, a palavra do dia foi "mudança". Mudança de partidos políticos tradicionais vistos como corruptos, da escalada na violência e de um modelo econômico de livre mercado que provocou um forte crescimento nos investimentos, mas ainda tem que reduzir os níveis de pobreza ou desigualdade.

Margarita Silva, uma professora de inglês de 45 anos no centro do Estado de Hidalgo, disse à Dow Jones Newswires que votou a favor do presidente Enrique Peña Nieto em 2012, mas que desta vez estava votando López Obrador. "Ele não será capaz de se livrar da corrupção de um dia para o outro, mas pelo menos ele pode começar", disse ela enquanto aguardava sua vez na fila de votação.

Cerca de 89 milhões de mexicanos estavam aptos a votar na eleição presidencial, na Câmara dos Deputados (500 membros), Senado (128 membros), nove governos e milhares de autoridades estaduais e municipais e legisladores.

'Haverá liberdade empresarial e de expressão', diz presidente eleito do México

Resultados preliminares indicam vitória de Andrés Manuel López Obrador por 53,8% dos votos

Sylvia Colombo | Folha de S. Paulo

CIDADE DO MÉXICO - Com a promessa de ir “contra a máfia do poder”, Andrés Manuel López Obrador, 64, foi eleito presidente do México neste domingo (1º), na primeira vitória de um esquerdista em um país que nos últimos anos optou pela centro-direita.

Mesmo antes de saírem os dados oficiais, os dois candidatos rivais a AMLO (como é chamado), José Antonio Meade e Ricardo Anaya reconheceram a derrota.

O resultado preliminar do INE (órgão eleitoral), apresentado às 23h, confirma a vitória por ampla margem de Andrés Manuel López Obrador, com 53,8% dos votos. Em segundo lugar, com 22,8%, aparece Anaya e, com 16,3%, Meade.

A participação foi de 62% dos eleitores.

Por volta das 21h30 locais (23h30 em Brasília), as principais avenidas que levam ao Zócalo (praça histórica da capital mexicana) começaram a ficar congestionadas. No local também está instalado um telão para transmitir os jogos do México na Copa --e em que algumas horas seria ligado para mostrar a partida entre Brasil e México.

A multidão gritava "Obrador, Obrador" e agitava bandeiras do Morena, partido do candidato, e bandeiras vermelhas.

Presidentes de outros países felicitaram AMLO, como o colombiano Juan Manuel Santos e o americano Donald Trump.

Às 23h15 locais, López Obrador deu seu discurso de vitória pedindo "reconciliação" aos mexicanos. AMLO disse que "as mudanças serão profundas, mas com apego à ordem legal estabelecida. Não haverá expropriação nem apropriação de bens".

E acrescentou: "haverá liberdade empresarial, de expressão, civis e políticos". Disse que o novo governo "manterá a disciplina fiscal e respeitará os tratados e contratos assumidos antes". Disse estar convencido de que a "corrupção desatou a violência em nosso país, portanto combater a corrupção será prioridade".

Meade foi o primeiro a sair admitindo a derrota, dizendo que "as pesquisas não me favorecem" e admitindo que AMLO será o próximo presidente do México. Agradeceu ao presidente Enrique Peña Nieto e à sua mulher, Juana Cuevas. Para López Obrador, pediu que governe "um país para todos e com responsabilidade".

"Porque sou um democrata e respeito a democracia, os vários números que tenho das bocas de urna mostram que López Obrador venceu essa eleição. Já liguei para ele para felicitá-lo e admito minha derrota", disse Anaya.

Roberto Freire: Momento político do País exige união para evitar riscos à democracia

O presidente do PPS, Roberto Freire (SP), afirmou, em ato político em defesa do Manifesto “Por um polo democrático e reformista” (veja vídeo abaixo), promovido pela Roda Democrática na semana passada, em São Paulo, que os partidos comprometidos com o País precisam buscar unidade para evitar riscos à democracia. O dirigente defendeu o diálogo entre as candidaturas do centro democrático para a Presidência da República, dentre elas do PSDB, Rede e Podemos, com o objetivo de evitar extremos de direita e esquerda nas eleições de outubro.

“Precisamos buscar a unidade porque a democracia está em risco de forma concreta. Pela crise que vem, persiste e que ainda não foi superada. Isso vai exigir do novo governo muita persistência para superar a crise que foi profunda. Dois desses contendores [à Presidência da República] não têm nenhum compromisso com essa transição democrática”, ao referir-se às candidaturas do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo ele, “um foi responsável direto por chegarmos nesta situação” de crise na política e na economia, e “o outro não” tem compromisso com a democracia. “Cabe a nós, portanto, não ficarmos apenas na ideia de que precisamos de unidade. É chegado o momento de começarmos a discutir e concretizar [ações contra os dois extremos no processo eleitoral]”, defendeu.

Quebrar a inércia
Roberto Freire destacou que os partidos de centro precisam “quebrar a inércia” e que os candidatos à Presidência da República do PSDB, Rede e Podemos não podem ser um empecilho na formulação de uma unidade política para que se possa oferecer “novos rumos” para o País.

“É evidente que ninguém vai defender o seu candidato em nome da unidade, mas tem que oferecer, concretamente, que seu candidato não seja um empecilho da unidade. Embora ele possa vir a ser o candidato da unidade. Alguns passos precisam ser dados e esse é o grande desafio que teremos daqui para frente: como isso será feito. Neste sentido, é preciso dizer a importância do que significou o Manifesto e essa reunião. É gratificante estarmos juntos com as forças políticas sérias desse País. Mas, o mais importante, é que daqui a gente saia dizendo que é preciso quebrar a inércia e efetivamente trabalharmos pela unidade”, disse.

Dorival Caymmi - Maracangalha

Castro Alves: Ode ao dois de julho

(Recitada no Teatro de São Paulo)

Era no Dous de Julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
"Neste lençol tão largo, tão extenso,
"Como um pedaço roto do infinito ...
O mundo perguntava erguendo um grito:
"Qual dos gigantes morto rolará?! ...
Debruçados do céu. . . a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era tocha - o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma - o vasto chão!
Por palmas - o troar da artilharia!
Por feras - os canhões negros rugiam!
Por atletas - dous povos se batiam!
Enorme anfiteatro - era a amplidão!

Não! Não eram dous povos os que abalavam
Naquele instante o solo ensangüentado...
Era o porvir - em frente do passado,
A liberdade - em frente à escravidão.
Era a luta das águias - e do abutre,
A revolta do pulso - contra os ferros,
O pugilato da razão - com os erros,
O duelo da treva - e do clarão! ...

No entanto a luta recrescia indômita
As bandeiras - corno águias eriçadas -
"Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis!

Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina.
Eras tu - liberdade peregrina!
Esposa do porvir - noiva do Sol!...

Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio - no infinito...
Um trapo de bandeira - n'amplidão!. ..