- O Globo
A Arena Baltika custou US$ 300 milhões e abriga 35 mil espectadores. Inaugurada para a Copa do Mundo, serviu como palco para quatro jogos. Depois do Inglaterra x Bélgica, quinta passada, receberá os jogos do time local, que atraem cerca de quatro mil torcedores. Nenhum brasileiro ficará chocado com a história de mais um elefante branco das Copas. Esse, porém, é diferente. Kaliningrado, onde se situa, é um exclave circundado por terras da Polônia e da Lituânia: um fragmento de Rússia separado do território nacional pela implosão da URSS. Intensamente militarizado, o exclave sedia a Frota do Báltico e cumpre a função simbólica de fortaleza russa entalhada no mundo da Otan. O elefante branco não tem finalidades esportivas, mas geopolíticas.
“Putin quer exibir Kaliningrado como um poderoso bastião militar contra a expansão da Otan rumo ao leste e mostrar um exclave mais próspero do que realmente é”, explicou William Courtney, um ex-representante americano em negociações militares com a Rússia. Na antiga URSS, os grandes investimentos não tinham sentido econômico, mas obedeciam à lógica de ostentar o poderio estatal. A Arena Baltika inspira-se nessa tradição soviética, retomada pelo putinismo. De fato, do ponto de vista da Rússia, toda a “Operação Copa” não se inscreve na lógica dos negócios, mas na da política.
O futebol entrelaçou-se à política desde que as bandeiras entraram em campo, na primeira Copa. No segundo evento, realizado na Itália, em 1934, sob o regime fascista, ergueram-se os novos estádios de Turim (batizado “Mussolini”), Roma, Bologna, Bari, Florença, Livorno e L’Aquila com o propósito de exteriorizar o poderio industrial do país. Depois da vitória final italiana, o jornal Il Popolo D’Italia, porta-voz do governo, celebrou a “visão de harmonia, disciplina, ordem e coragem” refletida pela atuação da equipe nacional.
Vittorio Pozzo, técnico da equipe italiana entre 1929 e 1948, era um “homem do regime”. Os italianos alcançaram o bicampeonato na França, em 1938, às vésperas da guerra. Na abertura do jogo de estreia, em Marselha, diante de uma torcida francesa que vaiava a saudação fascista dos seus jogadores, Pozzo ordenou-lhes que conservassem o gesto até que cessasse a manifestação. Na final, Mussolini enviou um telegrama público à seleção nacional com apenas três palavras: “vitória ou morte”. A Hungria foi batida (4x2), e o goleiro húngaro, Antal Szabo, comentou que tinha acabado de salvar onze vidas. Para Mussolini, assim como para a ditadura argentina em 1978, a vitória no campo verde era um objetivo político explícito. Putin, pelo contrário, não acalenta a ingênua expectativa do triunfo esportivo: na Copa, o Kremlin almeja a afirmação do lugar da Rússia entre as grandes potências.
A disputa entre seleções nacionais não é a guerra, mas uma simulação da guerra. No pleito pelo direito de sediar a Copa de 2018, o comitê inglês contratou o ex-espião Christopher Steele, encarregando-o de colher informações sobre os movimentos dos russos. Steele descobriu que, numa visita ao Qatar, em 2010, destinada a discutir um bilionário projeto de extração de gás natural, o vice-primeiro-ministro russo, Igor Sechin, negociou um intercâmbio de votos decisivo para os triunfos da Rússia e do próprio Qatar. Também colheu evidências de que os russos presentearam integrantes do ExCo, o órgão da Fifa que decide sobre as sedes das Copas, com obras retiradas do acervo do Museu Hermitage.
O Kremlin converteu a candidatura à Copa em prioridade estratégica de Estado, ultrapassando em muito o que outros governos fizeram antes. Steele, um especialista no jogo duplo, repassou suas informações ao FBI, nutrindo as investigações que devastaram a cúpula da Fifa. Mas Putin obteve o sonhado prêmio, que deveria funcionar como passaporte para a glória internacional russa.
No final de 2010, quando a candidatura russa foi declarada vencedora, Moscou tratava com a União Europeia de grandes projetos de gasodutos, e Barack Obama anunciava uma “reignição” das relações com a Rússia. Depois, a Rússia anexou a Crimeia e invadiu o leste da Ucrânia (2014), deflagrou a intervenção na Síria (2015) e interferiu nas eleições americanas (2016). O deputado alemão Michael Fuchs argumentou que a única punição efetiva contra a Rússia pela derrubada do vôo Malaysia Airlines 17, na Ucrânia, seria um boicote à Copa. Meses atrás, diante do ataque químico contra o ex-espião Sergei Skripal e sua filha, em Londres, um murmúrio sobre boicote circulou no Parlamento britânico. No fim, nada aconteceu — exceto a quase insignificante ausência dos líderes europeus na cerimônia de abertura.
A Rússia venceu a Copa antes do jogo inaugural. Putin conseguiu “normalizar” a política externa russa, inclusive a violação das fronteiras internacionais na Europa. Esqueça a glória ou o fracasso de Cristiano Ronaldo, Messi, Iniesta, Kroos ou Neymar. Cada vez que eles entram em campo, marcam goleadas para o Kremlin.
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Demétrio Magnoli é sociólogo
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