sábado, 24 de março de 2012

A ficha do Brasil :: Cristovam Buarque

O Brasil comemora com razão uma regra que permite impedir candidaturas de pessoas com ficha suja no passado, mas não fazemos um exercício para saber se merecemos ficha limpa por nossa história. Não merece ficha limpa um país que durante 124 anos após a Abolição ainda tem no Congresso, à espera de votação, um texto que pune os que usam trabalho escravo; e que, em 123 anos de República, tem 12 milhões de adultos que não reconhecem a própria bandeira porque não sabem ler o texto escrito nela.

Duas vezes mais pessoas privadas de saber ler do que no ano da Proclamação da República. A primeira condição para dar ficha limpa a um país é atestar o bom tratamento destinado a suas crianças. Não merece ficha limpa um país que tolera crianças submetidas à exploração sexual; que trabalhem ao invés de estudar; e com um número de assassinatos de meninos e meninas maior do que em todos os demais paíse. Não merece ficha limpa país com crianças abandonadas, trabalho infantil e prostituição. Não merece ficha limpa o país que nega ensino médio a dois terços de sua população e condena a outra parcela a uma educação sem condições de competição no mundo moderno. Não é possível dar ficha limpa a uma sociedade que escolhe, desde o nascimento da pessoa, se ela vai ou não ter educação, conforme sua classe social e a renda dos pais; e que assegura mais ou menos anos de vida conforme o poder de compra dos serviços médicos. Não é ficha limpa país que tem a 6ª economia mais rica, com R$4,14 trilhões, e não consegue pagar um piso salarial de R$1.451 aos professores de suas crianças.

A ficha limpa de um país exige que ele cuide bem de seus recursos naturais para servir às gerações futuras, e não se pode dizer que o Brasil cumpriu ou está cumprindo esta condição. Vemos uma nação ficha suja por devastação de florestas, sujeira nas águas, usinas nucleares em solo precário, vastas áreas cobertas por lagos artificiais e o ar poluído. O Brasil não merece a ficha limpa ecológica. Também temos a ficha suja pela desigualdade. Nossa ficha social é suja por causa da brutal desigualdade de renda, uma das piores do mundo, quando não a pior de todas. Nossa ficha é suja também por causa da desigualdade nos serviços públicos: alguns brasileiros têm um sistema de saúde igual aos melhores do mundo, enquanto a maioria está submetida a um sistema igual aos piores do mundo. Temos ficha suja na segurança, com cerca de 40 mil assassinatos por ano e mais de um milhão de pessoas mortas nos últimos 30 anos; e no trânsito, com mais de 50 mil pessoas mortas por ano no asfalto. Somos também ficha suja nas condições urbanas descontroladas pelo lixo, pela poluição visual, degradação habitacional e trânsito estrangulado. Não merecem fichas limpas cidades onde as pessoas perdem quase mil horas por ano, mais de mil dias de vida adulta, por causa de engarrafamentos no trânsito. Não teremos ficha limpa enquanto escondermos recantos de nossa história, por causa de acordos políticos ou por medo de enfrentar a verdade; e enquanto a Justiça não for eficiente e respeitada, independente da influência do dinheiro e das relações pessoais; nem enquanto houver dúvida se quem dá a ficha suja merece ter ficha limpa.

O país que por falta de educação das suas crianças e de investimentos em ciência e tecnologia perde competitividade internacional e mantém suas exportações baseadas em produtos primários, e que se não se transformar em produtor de bens derivados da inteligência e do conhecimento não terá ficha limpa no futuro. Como vamos dar ficha limpa a uma sociedade que tenta corretamente exigir ficha limpa de seus candidatos, mas no dia a dia tolera a corrupção nas prioridades da política? Para um político receber ficha limpa, basta não ter roubado no passado, mesmo que continue com prioridades descomprometidas com o futuro do país. A ficha limpa pode melhorar a ética dos políticos, mas não vai necessariamente mudar a ética nas políticas, fazê-la definidora de prioridades éticas. Não merece ficha limpa o país que tiver seus políticos com ficha limpa, não roubam para si, mas continuam mantendo privilégios, e investindo o dinheiro público nas mesmas prioridades de políticas em benefício das classes privilegiadas no presente, ao invés de beneficiar todo o povo e as futuras gerações.

Devemos comemorar que o Brasiltem uma Lei da Ficha Suja para eliminar políticos corruptos, mas precisamos fazer o Brasil ser um país ficha limpa.

Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).

FONTE: O GLOBO

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