Eleições democráticas
são catástrofes - só que previstas e controladas. Isso explica por que podem
suscitar um certo medo. Foi meu caso, confesso: temi a ascensão, que parecia
resistível, mas irresistida, de Celso Russomanno à prefeitura de São Paulo.
Nada tenho contra ele pessoalmente, mas temi a vitória de um candidato menos preparado,
com propostas vagas e algum apelo autoritário.
Também senti medo nas
primeiras eleições após a ditadura. Afinal, levaram Collor à Presidência; no
Estado e na cidade de São Paulo, elegeram governantes próximos do regime
autoritário. Mas desde 1994 no Brasil, desde 2002 no Estado e desde 2000 na
cidade em que vivo, não senti mais medo de quem ganhasse as eleições. Tenho
minhas preferências a cada pleito, mas não veria ameaça à democracia, em 2010,
se elegêssemos presidente Marina Silva ou José Serra.
Uma eleição é uma
catástrofe controlada, repito. Mal comparando, é uma vacina. Vacinas podem
produzir efeitos parecidos aos da doença para a qual elas existem. Só que os
produzem de modo contido, reduzido, com a finalidade de proteger-nos dela. Uma
eleição é assim. A certa altura, tudo parece possível, inclusive a destruição
do que existe. Direitistas temem a demagogia, o confisco dos bens, uma
tributação mais elevada. Esquerdistas receiam o fim dos programas sociais, a
truculência policial contra os movimentos reivindicatórios. Daí, os medos. Para
proteger sua riqueza, a burguesia evitou o sufrágio universal ao longo do
século XIX. Acreditava que, se todos votassem, a maioria de pobres aprovaria
leis que, reduzindo a desigualdade social, tirassem parte de sua riqueza. Para
isso, também se valeu dos Senados. Como essa câmara revisora costuma ter
mandato mais longo, podia retardar a aprovação de leis populares. Isto é, se o
povo votasse pela redistribuição de renda, precisaria renovar a decisão daí a
mais quatro anos, a fim de ter também o Senado do seu lado.
O fantasma da
destruição aparece no magnífico livro de Georges Bataille, "O
erotismo". Em certas sociedades do Oriente, diz ele, quando morria o rei
seguiam-se cinco dias sem lei. Roubava-se, fazia-se sexo sem levar em conta as
proibições. Depois, assumia o novo monarca. Ninguém era punido pelos dias de
anomia. Eles eram uma espécie de carnaval, em que os interditos estavam
levantados. Mas talvez esse intervalo desse novo vigor à ordem institucional.
Porque as pessoas tinham vivido essa liberdade sem limites, talvez com prazer,
mas depois com saciedade.
Talvez um poder
precise - para ser legítimo, para convencer o povo de que ele vale a pena -
passar assim pelo risco. Quem sabe, até pelo risco de um quase-aniquilamento.
Pode parecer estranho, numa coluna sobre política, eu falar de morte, mas não
podemos esquecer que ela é nosso destino, que ela é a única certeza. Os Estados
são também mortais, embora possam alongar a duração de sua vida indefinidamente
- mas um dia hão de morrer. Quando, a cada quatro ou cinco anos, vivemos uma
pequena morte deles, conseguimos encompridar sua vida. É como se, a cada
eleição, renovássemos sua apólice de vida. Pode ser que mudemos tanto o Estado
que ele renasça como uma fênix, o pássaro mítico que se imolava numa fogueira
cada quinhentos anos para daí ressurgir, novo em folha. Pode ser que apenas
concedamos um novo mandato ao que já existia. Mas passar pelo risco é
fundamental.
Isso, porque nos
últimos séculos se tornou norma um regime político que, por milênios, foi
desconhecido ou existiu de forma apenas residual: o dos governos eleitos. Ele
permite que a oposição chegue ao poder. Antes, isso só era possível aliciando o
herdeiro do trono. Não foi raro. Na Inglaterra, Ricardo Coração de Leão se
rebelou contra o pai. A herdeira Maria Stuart foi executada para não ameaçar a
rainha Elisabeth. Finalmente, o filme "A loucura do rei George"
mostra bem o ódio que podia existir entre o pai rei e o filho herdeiro. A
oposição apoiava o príncipe contra o rei, ou o príncipe montava um partido
contra o próprio pai. Mas nunca se sabia em que data se daria a sucessão. Em
suma, alterar o governo era quase um golpe de Estado.
Não vamos esquecer
que, para levar em conta só o último meio século, vimos muitos nascimentos - e
mortes - de Estados. Primeiro, as antigas colônias europeias conquistaram a
independência. Mas também alguns países deixaram de existir, sobretudo em
função da queda do comunismo. Tchecoslováquia, Iugoslávia e União Soviética se dissolveram,
enquanto a Alemanha Oriental se extinguia. Estados podem morrer. As duas
uniões, governadas de Belgrado e Moscou, se desfizeram com grandes danos -
milhares morreram, milhões caíram na miséria. Por isso é importante tentar
garantir a vida dos Estados.
Uma das conquistas da
democracia é que a oposição - que no passado podia ser punida com a pena de
morte, sendo confundida com a traição ao rei - se tornou algo não apenas
aceito, mas essencial para os regimes políticos que pretendam ser legítimos. Mesmo
assim, o momento em que o poder é posto em jogo constitui um risco, ainda que
atenuado, de morte. É uma morte regrada. Existem regras para disputar o poder.
É uma morte reversível. O candidato ou partido derrotado terá nova chance daí a
alguns anos. E, mais importante que tudo, é uma morte-vacina. Porque ela nos
vacina contra a morte do Estado. Justamente porque o governo muda sem enormes
traumas, o Estado permanece. O Brasil é nosso país, seja governado pela direita
ou pela esquerda. E assim, sabendo embora que nosso Estado é mortal como nós,
vamos conseguindo uma sobrevida para ele, mandato após mandato.
Renato Janine Ribeiro
é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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