Sob o impacto da guerra do Iraque, Habermas e Joseph Hatzinger se encontaram em 2004 para discutir o tema da necessidade de o poder ser submetido a um direito comum. Os dois intelectuais analisaram a ordem política e cultural do Ocidente. A discussão também tratou de temas como a complementaridade e a oposição entre razão e fé, a crítica ao capitalismo globalizado, a necessidade de uma base moral nas sociedades pluralistas e midiáticas. Ratzinger, especialmente, tratou da interculturalidade, anunciando uma das possíveis linhas de atuação de se papado.
J. Habermas: Um ceticismo radical quanto à razão é, por princípio, estranho à tradição católica
“Uma modernização descarrilada da sociedade no seu todo poderia muito bem tornar o vínculo democrático frouxo e enfraquecer o tipo de solidariedade para o qual o Estado democrático, sem que a possa obrigar juridicamente, está orientado. Evidências para um tal esmigalhamento da solidariedade cívica mostram-se no contexto mais amplo de uma dinâmica politicamente descontrolada formada pela economia mundial e a sociedade mundial.
Mercados, que não podem ser democratizados como administrações estatais, assumem, de modo crescente, funções de comando em setores da vida que até então eram mantidos coesos de forma política ou pelas de formas de comunicação pré-políticas. Dessa forma, não somente esferas privadas, em uma taxa crescente, são redirecionadas para mecanismos de ação cuja orientação é o sucesso, orientação que em cada caso depende de preferências próprias; também a esfera que é vencida pelas pressões públicas de legitimação está encolhendo.
O privatismo cívico é fortalecido pela desencorajadora perda de função de uma formação de opiniões e vontades democráticas, que por enquanto somente funciona nas arenas nacionais pela metade e por isso não alcança mais os processos decisórios deslocados para planos supranacionais.
Também a esperança, em via desaparecer, de um poder de configuração político da comunidade internacional estimula a tendência da despolitização dos cidadãos. Em vista dos conflitos e das gritantes injustiças sociais de uma sociedade mundial altamente fragmentada, cresce a decepção com cada novo insucesso no caminho (primeiramente adotado após 1945) de uma constitucionalização do direito dos povos.
O ceticismo quanto à razão é, por princípio, estranho à tradição católica. Mas o catolicismo teve dificuldade para lidar, até os anos 60 do século passado, com o pensamento secular do humanismo, do Iluminismo e do liberalismo político. Assim, hoje novamente encontra ressonância o teorema de que uma modernidade constrita só pode ser auxiliada para fora de um beco sem saída por meio de uma orientação religiosa dirigida para um ponto de referência transcendental.
Considero melhor a questão se uma modernidade ambivalente irá se estabilizar a partir das forças seculares de uma razão comunicativa, que não deve ser levada ao extremo por meio de uma crítica da razão, mas que deve ser tratada de forma não dramática, como uma questão empírica em aberto. Com isso, não quero incluir o fenômeno da permanência da religião em um ambiente ainda secularizado como um fato puramente social.
Em oposição à moderação ética de um pensamento pós-metafísisco, do qual subrai-se todo conceito obrigatório acerca da vida boa e exemplar, nas Escrituras sagradas e nas tradições religiosas articulam-se intuições acerca do erro e da liberação, do fim salvador de uma vida experimentada como sem solução, que, por séculos, foram sutilmente soletradas até a exaustão e mantidas hermeneuticamente despertas.
Por isso, na vida comunitária de sociedades religiosas, contanto que elas somente evitem o dogmatismo e a coação moral, pode permanecer algo intacto que alhures se perdeu e que somente com o conhecimento profissional de especialistas não pode ser restabelecido – refiro-me a possibilidades suficientemente diferenciadas para uma vida fracassada, para patologias sociais, para o malogro de projetos individuais de vida e para a deformação de contextos desfigurados de vida.”
Joseph Ratzinger: A interculturalidade compõe hoje uma dimensão indispensável para a discussão acerca dos fundamentos do ato de ser humano
“Como último elemento do direito natural, o qual desejava ser, em um nível mais profundo, um direito racional, pelo menos nos tempos modernos, permaneceram os direitos humanos. Eles não são compreensíveis sem o pressuposto de que o homem como homem, simplesmente por sua filiação à espécie humana, é um sujeito de direitos, que sua existência carrega em si valores e normas que devem ser descobertos, mas não inventados.
Talvez à doutrina dos direitos humanos devesse hoje em dia ser acrescida uma doutrina acerca dos deveres humanos e dos limites do homem, e isso poderia ajudar a atualizar a pergunta se não pode haver uma razão da natureza e, portanto, um direito racional para os homens e sua posição no mundo.
Uma tal discussão deveria hoje ser constituída e exposta de maneira intercultural. Para os cristãos, tratar-se-ia da criação e do criador. No mundo indiano, a isso corresponderia o conceito de darma, a legitimidade interna do ser, na tradição chinesa, a ideia das ordenações do céu.
Para mim, a interculturalidade compõe hoje uma dimensão indispensável para a discussão acerca dos fundamentos do ato de ser humano, que não pode ser conduzida nem unicamente dentro do universo cristão nem totalmente dentro de uma tradição racional ocidental.
Ambas parecem, de acordo com o modo como se compreendem, universais e pretendem sê-lo também de direito. Na realidade, elas precisam reconhecer que atingem somente partes da humanidade e também somente são inteligíveis a partes da humanidade. O número de culturas concorrentes é, de fato, muito mais limitado do que quer parecer em um primeiro olhar.
E’ importante, sobretudo, notar que dentro dos espaços culturais não há mais unidade, mas que todos os espaços culturais são moldados por tensões profundamente arraigadas em sua própria tradição cultural. No Ocidente, isso é bem evidente.
Mesmo quando a cultura secular de uma racionalidade restrita, acerca da qual Habermas nos deu um impressionante retrato, é amplamente dominante e entende a si mesma como elo, o entendimento cristão da realidade é, como tem sido até o momento, uma força efetiva. Ambos os polos encontram-se em proximidade ou tensão diversas, em uma disposição de aprendizagem recíproca ou em uma recusa, mais ou menos enfática, de um em relação ao outro.
O espaço cultural islâmico também é moldado por semelhantes tensões; do absolutismo fanático de um Bin Landen até as posturas que estão abertas a uma racionalidade tolerante estende-se um vasto arco.
O terceiro grande espaço cultural, a cultura indiana, ou melhor, os espaços culturais do hinduísmo e do budismo, são, por sua vez, moldados por tensões semelhantes, mesmo que elas, ao menos para o nosso olhar, distinguem-se de maneira dramática. Também essas culturas se veem sujeitas tanto à reivindicação da racionalidade ocidental quanto às interpelações da fé cristã, estando ambas presentes ali.
As culturas tribais da África e as culturas tribais da América Latina, novamente lembradas por certas teologias cristãs, completam esse quadro. Elas se mostram, de uma maneira ampla, como alicerce de uma racionalidade ocidental mas também como alicerces da reivindicação universal da revelação cristã.
O que decorre de tudo isso? Primeiramente, assim me parece, a não-universalidade factual das duas grandes culturas de Ocidente – a cultura da fé cristã assim como a cultura da racionalidade secular–, por mais que as duas, em todo o mundo e em todas as culturas, cada um do seu modo, contribuam em sua configuração.
Nossa racionalização secular, por mais que ilumine nossa razão formada no Ocidente, não é sensata para qualquer “ratio”; ela, como racionalidade, em sua tentativa de se fazer evidente, se depara com limites. Sua evidência está factualmente vinculada a deterninados contextos culturais e precisa reconhecer que, como tal, não pode ser compreendida por toda a humanidade e, por isso, nela, não pode operar nem mesmo de modo geral.
Em outras palavras, a fórmula mundial, seja ela racional, ética ou religiosa, com a qual todos concordam e que poderia então sustentar o todo, não existe. Em todo caso, ela é atualmente inalcançável. Por isso, o assim chamado etos mundial permanece também uma abstração.
O que há então para ser feito? Em relação às consequências práticas, eu concordo amplamente como o que Habermas expôs acerca de uma sociedade pós-secular, acerca da disposição de aprendizagem e da auto-limitação de ambos os lados. Eu gostaria então de resumir minha própria visão em duas teses e concluir com isso.
Duplos limites
1) Nós vimos que há patologias na religião que são extremamente perigosas e que tornam necessárto a luz divina da razão e por assim dizer, órgão de controle, a partir do qual a religião sempre deve se deixar purificar e organizar novamente, o que foi, aliás, também a noção dos padres da igreja.
Em nossa reflexão, porém, mostrou-se que também há patologias da razão (do que, hoje a humanidade em geral não tem consciência), uma hybris da razão, a qual não é menos perigosa, ao contrário, devido à sua potencial eficiência, muito mais ameaçadora, a bomba atômica, o homem como produto. Por isso, por outro lado, a razão também deve ser lembrada em seus limites e aprender a disposição de ouvir as grandes tradições da humanidade. Quando ela se emancipa completamente e coloca de lado essa disposição de ouvir, essa capacidade de correlação, ela se torna destruidora.
Eu falaria de uma necessária correlação entre razão e fé, entre razão e religião, as quais são convocadas para uma purificação e salvação recíproca, que se carecem mutuamente e que precisam ser reconhecidas.
2) Essa regra fundamental então deve ser concretizada, no contexto de nossa atualidade de forma prática. Sem dúvida, são a fé cristã e o racionalismo secular as duas partes principais dessa correlação. Pode e deve-se dizer isso sem falso eurocentrismo.
Ambas as partes determinam a situação mundial em uma medida tal como nenhuma outra dentre as forças culturais . Mas isso não significa que dever-se-colocar de lado as outras culturas como uma espécie de ”quantité négligeable” (em francês no original: “quantidade negligenciável”). Isso seria com certeza uma hybris ocidental, pela qual nós pagariamos caro e, em parte, já pagamos.
É importante para esses dois componentes da cultura ocidental deixarem-se comprometer com um ouvir, com uma verdadeira correlação com essas culturas. É importante levá-las para dentro na tentativa de um correlação polifônica, na qual elas próprias se abram para uma complementaridade entre razão e fé de modo que um processo universal de purificação possa se desenvolver, no qual as normas e os valores essenciais de alguma forma conhecidos ou pressentidos por todos os homens possam adquirir uma nova intensidade luminosa de sorte que novamente possa vigorar na humanidade aquilo que segura o mundo.”
[Cf. Folha de São Paulo, Mais!, 24 de abril de 2005].
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