"Nem direita, nem esquerda", afirmou a ex-ministra Marina Silva no lançamento da Rede Sustentabilidade, em Brasília, no sábado 16 de fevereiro. Ela pretende transformar sua rede num novo partido político, que não será nem de situação, nem de oposição. "Se Dilma estiver fazendo algo bom, vamos apoiar. Se não, não. Parece ingênuo, mas não tem nada ingênuo."
Aí, você para e pergunta: como assim? Se essa tal rede não tem um lado, que posições ela tomará? Como pode um partido que não seja nem oposição, nem situação? Será um muro em cima do qual todos os ecologistas vão se aboletar? Ou será simplesmente uma ameba apartidária? Marina diz que não é nada disso. "Estamos à frente", diz. "Estamos indo para o mundo do paradoxo."
Se você não entendeu nada, espere um pouquinho mais. O mais espantoso na fala de Marina Silva é que ela pode ser, mais do que sincera, verdadeira. Um partido que não se deixe aprisionar por dogmas da esquerda ou da direita é possível. Mais ainda: um partido que não seja necessariamente de situação ou de oposição sistemática, e que saiba promover causa coletiva (o bem comum) acima de seus interesses imediatos, é necessário (ainda que pareça inacreditável). Não que a Rede Sustentabilidade seja um milagre, uma epifania verde. Está longe disso. Só afirmo que a intenção de estar à frente e acima dessa polarização pode conter uma novidade real, embora, de início, ela pareça apenas mais um eco da dissimulação ideológica tão característica dos palanques brasileiros.
Bem sabemos que a política pátria é feita por gente que vive dizendo não ser o que é. A começar pelos líderes de direita, que nunca se declaram de direita. Em 2011, o então prefeito paulistano, Gilberto Kassab, lançou sua nova legenda, o PSD, com um fraseado inesquecível. "O Partido Social Democrático não será de direita, não será de esquerda, nem de centro." Atenção para o detalhe: nem mesmo de centro. Em vez disso, seria "um programa a favor do Brasil". A favor do que mesmo? Em 2012, o PSD ensaiou apoiar a candidatura de Fernando Haddad para a prefeitura de São Paulo. Depois acabou apoiando José Serra. Em 2013, desenvolto e solto, se dá bem com o governo Dilma Rousseff e com o governador Geraldo Alckmin. O PSD está mesmo a favor do Brasil - e também das autoridades brasileiras e de tudo o mais. Eis aí um partido a favor de tudo.
Para Kassab, cujas origens estão no malufismo e cuja trajetória é bastante heterodoxa, os conceitos de esquerda, direita e centro acabam não fazendo grande diferença. Rigorosamente, ele não distingue uma categoria da outra. Por isso, tem legitimidade para dizer que não pertencê a nenhuma das três.
Kassab, sejamos justos, não está sozinho no esporte de pular fora das ideologias. O PMDB está por cima e está cada dia mais prosa. Cazuza cantava que queria uma ideologia para viver. Com o PMDB, é o contrário: se lhe arranjarem uma ideologia, ele morre. O PMDB é a prova monumental de que esse negócio de se enclausurar na esquerda ou na direita não dá camisa a ninguém. O próprio ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre fez piada com o assunto. Desde muito cedo, quando lhe perguntavam se ela era socialista, dizia: "Não sou socialista, sou torneiro mecânico". O bordão se desdobrou em variações: "Não sou de esquerda, sou torneiro mecânico". Ou essa: "Se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problema".
Em resumo, Kassab não toma conhecimento da bifurcação histórica que separou a esquerda da direita. O PMDB milita para sepultar para sempre essa bifurcação. E Lula, ao caçoar dos esquerdistas, avisa que não reza pela cartilha de ninguém, que fará o que bem entende. Os fundamentalistas que se acomodem. Ou que se mudem.
Marina, voltemos a ela, achou melhor mudar. Deixou o PT, deixou o governo, disputou a Presidência da República em 2010 pelo Partido Verde e, agora, vem aí com a Rede Sustentabilidade, que ainda é uma incógnita. Quando ela diz que está além da esquerda e da direita, pode ser confundida com alguns dos discursos mais antigos da política brasileira. Num ponto, porém, pode ter razão: a poluição não é de esquerda, nem de direita; existe tanto na China como nos Estados Unidos. O princípio da tolerância não é de esquerda, nem de direita, e exige uma democracia em que ateus convivam com crentes e, também, em que gente de esquerda dialogue com gente de direita, sem que um precise eliminar o outro. Se estiver falando disso, Marina estará dizendo a verdade e poderá, quem sabe, nos desafiar a pensar além dos velhos formatos.
Fonte: Revista Época
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